No Brasil nunca houve tribunal do Santo Ofício ou da Inquisição. O país achava-se sob a competência do tribunal de Lisboa. Durante o século XVI, a Inquisição agiu discretamente. São conhecidos três processos e uma visita do Santo Ofício, sem graves consequências. Misturavam-se, às vezes, fatos reais de índole religiosa ou político-social com faltas graves aparentes ou supostas ou tendências perniciosas no campo religioso e social. A Inquisição no Brasil foi extinta em 1774 quando o Santo Ofício foi oficialmente transformado em tribunal régio, sem autonomia ou completamente dependente da Coroa.
A Inquisição de Portugal contava três distritos: Évora, Coimbra e Lisboa, tendo este a jurisdição sobre o Brasil. Seja brevemente examinado o seu funcionamento no Brasil.
1. Século XVI
Como a Inquisição no Brasil estivesse sob a jurisdição do Tribunal de Lisboa, não houve na colônia, em nenhuma época, um tribunal próprio. Assim sendo, os processos eram levados para a Corte. No Brasil, os Inquisidores eram os Bispos. Mas, visto o grande número de novos convertidos, foi nomeado Inquisidor Apostólico D. Antonio Barreiros. Seus poderes limitavam-se aos cristãos-novos; era-lhe recomendado usar de prudência, moderação e respeito. A ação do Santo Ofício foi discreta, sendo conhecidos três processos e uma visita do Inquisidor de Portugal.
1.1. Os Processos
Processo de Pero de Campo Tourinho, donatário da capitania de Porto Seguro, acusado de opor-se ao clero e ao Papa, e de desrespeitar as leis da Igreja. O processo iniciou-se no Brasil (1546) e terminou em Lisboa (1547). Não se sabe a conclusão. Supõe-se que o acusado tenha sido absolvido.
Processo de João de Bolés (Jean Cointha, seigneur des Boulez), francês que viera com Villegaignon. Em 1557 começou a difundir doutrinas Calvinistas e luteranas em São Paulo e depois na Bahia. O processo, iniciado no Brasil (1560), foi levado a Portugal, tendo João de Bolés lá chegado em 1563. Retratou-se, mas pouco depois começou novamente a difundir suas idéias, sendo então desterrado para as índias, onde foi condenado à morte, em 1572, como relapso e herege.
Processo do Pe. Antonio de Gouveia. Oriundo dos Açores, foi ordenado sacerdote em Portugal. Em 1555 entrou na Companhia de Jesus, sendo dela despedido tempos depois. Deu-se à necromancia e, por isto, foi acusado no Tribunal da Inquisição. Preso, fugiu em 1564. Recapturado, foi degredado para os Açores. Tendo novamente fugido, foi descoberto de 1567 e desterrado para Pernambuco. Aqui conseguiu uso de ordens, mas, continuando as atividades “mágicas”, foi preso e enviado ao Santo Ofício de Lisboa, embarcando em 1571. Em 1575 seu processo continuava, mas a partir desta data nada mais se sabe dele.
1.2. A primeira visitação do Santo Ofício
De 1591 a 1595 deu-se a primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil. A causa próxima foi a passagem da Colônia ao domínio espanhol em 1580. Como o rei da Espanha possuísse ideias mais rígidas quanto aos cristãos novos, julgou necessária uma visita do Santo Ofício.
O Visitador nomeado, Heitor Furtado de Mendonça, chegou à Bahia em julho de 1591. Poucos dias depois publicou o “Edito da Graça”, período de trinta dias (de 28/7 a 27/8) em que haveria “muita moderação e misericórdia” aos que fossem acusados ou se viessem acusar. Houve muitas denúncias, versando sobre suspeitas de heresia, de judaísmo, escravização dos indígenas, bigamia etc. Em 1594 o Visitador passou a Pernambuco onde, após um período de “Graça”, iniciou as audiências, seguindo até o ano de 1595, quando retornou a Lisboa. A par de algum erro ou imprevidência, não parece ter sido severo, usando, em muitos casos, de moderação.
2. Século XVII
Data deste século a segunda visita do Santo Ofício. Esta ocorreu entre setembro de 1618 e janeiro de 1619, sendo Inquisidor D. Marcos Teixeira. Os motivos devem prender-se à preocupação da Coroa Espanhola com os cristãos-novos, temendo que pudessem aliar-se aos holandeses, que naquele tempo pressionavam o Reino Unido. A colônia, de fato, tornara-se lugar de refúgio e de segredo para os novos convertidos, que aqui se achavam em grande número. O Pe. Antonio Vieira, nessa época, defendeu a tolerância para com os cristãos-novos, ideia que se generalizou e continuou viva mesmo após a restauração, em 1640.
3. Século XVIII
Surgindo as minas de ouro, para as quais ia grande número de estrangeiros de todos os Credos, a política de tolerância vigente no século anterior começou a mudar. Intensificou-se a ação da Inquisição no Brasil.
No reinado de D. José I (1750-77), a Inquisição decaiu, chegando praticamente a anular-se. Dois fatores contribuíram para a sua queda, ambos ligados à personalidade do Marquês de Pombal. Primeiramente, o Primeiro-ministro considerou-a contrária aos interesses da Corte, embora anos antes (1761) a tivesse utilizado contra o Pe. Gabriel Malagrida, por ter este, na ocasião do terremoto de Lisboa (1755), acusado de erros morais os membros da Corte. Além disto, em virtude de um desentendimento entre Pombal e o Santo Ofício em Portugal, chegou o rei D. José I a procurar minorar a ação do Tribunal.
Assim é que em 1773 foram baixadas leis que acabaram com a distinção entre cristãos-novos e outros cristãos, e que proibiam qualquer discriminação por ascendência judaica. Em 1774 o Santo Ofício foi transformado num tribunal régio, sem autonomia, completamente dependente da Coroa, o que significou na prática a sua desativação. “Não obstante as falhas que se podem apontar contra todo e qualquer sistema repressivo, não é lícito nem honesto ver na atuação da Inquisição ou Santo Ofício somente a face negativa. Houve também vantagens para a fé e os bons costumes, evitando-se tolerância em demasia com desvantagens para a pureza da fé ou com tropelos dos mandamentos divinos, visto que a Inquisição não empregava somente a repressão, mas também a persuasão para corrigir desvios na fé ou nos costumes. Ademais, para muita gente que se deixa levar mais pelo temor que pelo amor, por muitas causas que não é o caso de abordar, toda ação coercitiva, quando psicologicamente bem orientada, pode ter seus reflexos positivos. Aliás, o Santo Ofício era, antes do mais, um tribunal eclesiástico que tinha em mente mover o culpado a reconhecer seu pecado, detestá-lo e prometer emenda. Só em casos de pertinácia agia com penas que variavam segundo a gravidade do delito e a renúncia ao perdão. No Brasil, felizmente, durante o século XVI, não temos a lamentar a pena capital entre os nascidos na terra, mesmo quando encaminhados ao tribunal de Lisboa” (RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil. Origem e desenvolvimento (Século XVI), vol. 1. Santa Maria, n Pallotti, 1981, p. 284).
Dom Estevão Bettencourt
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Fonte:Revista “Pergunte e Responderemos” – set./2000