A Heresia Anti-litúrgica
Servo de Deus Dom Prosper Louis Paschal Guéranger, OSB
Abade de Solesmes*
Para se dar uma ideia dos estragos da
seita anti-litúrgica, parece-nos necessário resumir a marcha dos pretensos
reformadores do cristianismo ao longo de três séculos, e apresentar o conjunto
de suas ações e de sua doutrina sobre a purificação do culto divino. Não há
espetáculo mais instrutivo e mais apropriado para se fazer compreender as
causas da rápida propagação do protestantismo. Certamente aí se verá a obra de
uma sabedoria diabólica agindo e levando infalivelmente a vastos resultados.
I. A primeira característica da heresia
anti-litúrgica é o ódio pela
Tradição nas fórmulas do culto divino. Não se pode negar esta
característica especial em todos os hereges, desde Vigilâncio até Calvino, e a
razão é fácil de se explicar. Todo sectário, querendo introduzir uma nova
doutrina, encontra-se inevitavelmente na presença da Liturgia, que é a tradição
em seu mais alto poder, e não consegue encontrar repouso até ter feito calar
esta voz, até estarem rasgadas as páginas que contêm a fé dos séculos passados.
Com efeito, como se estabeleceram e se mantiveram em meio às massas o
luteranismo, o calvinismo e o anglicanismo? Tudo se consumou através da
substituição dos livros e fórmulas antigos por livros e fórmulas novos. Nada
mais incomodaria os novos doutores; poderiam pregar à vontade: a fé das gentes
estava doravante sem defesas. Lutero cumpriu esta doutrina com uma sagacidade
digna de nossos jansenistas, dado que no primeiro período de suas inovações, à
época em que se via obrigado ainda a guardar uma parte das formas exteriores do
culto latino, estabeleceu o seguinte regulamento para a Missa reformada:
“Nós aprovamos e conservamos os
intróitos dos domingos e das Festas de Jesus Cristo, a saber, da Páscoa, de
Pentecostes e de Natal. Nós preferiríamos
de bom grado os salmos inteiros de que são tirados estes intróitos, como se
fazia outrora, mas queremos bem nos conformar ao uso presente. Nem mesmo
culpamos aqueles que desejam reter os intróitos dos Apóstolos, da Virgem e dos
outros Santos, desde que estes
três intróitos sejam tirados dos Salmos ou de outras passagens da Escritura”.
Ele tinha grande ódio dos cânticos
sacros compostos pela própria Igreja para expressão pública da fé. Neles ele
sentia pesado o vigor da Tradição que ele desejava banir. Reconhecendo à Igreja
o direito de unir sua voz, nas santas assembleias, aos oráculos das Escrituras,
ele se exporia a ouvir milhões de bocas a anatematizar os seus novos dogmas.
Portanto, ódio a tudo que, na Liturgia, não era exclusivamente extraído das
Sagradas Escrituras.
II. Com efeito, é o segundo princípio
da seita anti-litúrgica a substituição das
fórmulas de estilo eclesiástico pelas leituras da Sagrada Escritura. Ela aí encontra
duas vantagens: a primeira, a de fazer calar a voz da Tradição que ela sempre
teme; em seguida, um meio de propagar e de apoiar os seus dogmas, pela via da
negação ou da afirmação. Pela via da negação, passando em silêncio, através de
escolhas astutas, os textos que exprimem a doutrina oposta aos erros que eles
querem fazer prevalecer; pela via da afirmação, pondo à luz passagens cortadas
que só apresentam um lado da verdade, escondendo o outro dos olhos dos mais
simples. Sabe-se, desde muitos séculos, que a preferência dada, por todos os
hereges, às Sagradas Escrituras sobre as definições eclesiásticas, não tem
outra razão que a facilidade que eles têm de fazer dizer pela Palavra de Deus
tudo o que quiserem, apresentando-a segundo o que lhes convém. (...) Quanto aos
protestantes, eles quase reduziram a Liturgia inteira à leitura da Escritura,
acompanhada de discursos nos quais ela é interpretada pela razão. Quanto à
escolha e à determinação dos livros canônicos, acabaram por cair no capricho do
reformador, que, como último recurso, decide não somente o sentido da palavra
de Deus, mas se esta palavra é verdadeira ou não. Assim, Martinho Lutero
conclui, em seu sistema panteísta, que a inutilidade das obras e a suficiência
da fé são dogmas a serem estabelecidos e a partir daí declara que a Carta de
São Tiago é uma carta de palha, e não uma carta
canônica, somente pelo fato de aí se ensinar a necessidade das obras para a
salvação. Em todos os tempos e sob todas as formas, funcionará sempre do mesmo
jeito: nada de fórmulas eclesiásticas, somente a Escritura, mas interpretada,
escolhida e apresentada por aquele ou por aqueles que sabem tirar proveito para
a inovação. A armadilha é perigosa para os simples, e somente depois de um
longo tempo é que se percebe o engano em que se caiu, e que a palavra de Deus,
esta espada de dois gumes, como diz o Apóstolo, abriu grandes feridas, pois foi
manuseada pelos filhos da perdição.
III. O terceiro princípio dos hereges
acerca da reforma da Liturgia é, digamos, depois de ter expulsado as fórmulas
eclesiásticas e proclamado a necessidade absoluta de se empregar apenas as
palavras da Escritura no serviço divino, visto que a Escritura nem sempre se
dobra, como eles gostariam, a todas as suas vontades, fabricar e introduzir fórmulas novas, cheias de
perfídia, pelas quais as pessoas sejam mais solidamente ainda acorrentadas ao
erro, e todo o edifício da ímpia reforma venha a se consolidar pelos séculos.