Em um artigo
recentemente publicado, e disponível na internet, um procurador regional
eleitoral trata do “abuso do poder religioso”, e propõe a necessidade de
“desincompatibilização” de ministros religiosos que venham a candidatar-se a
cargos públicos. Nesse artigo, o procurador faz uma analogia entre, por um
lado, a necessidade de reprimir o abuso do poder político, econômico e mesmo
sindical para a lisura das eleições, a fim de evitar constrangimentos
intoleráveis à liberdade dos eleitores, e, por outro, determinados abusos que
são cometidos por líderes religiosos e seitas, que se valem do carisma pessoal
e do apelo ao sobrenatural para promover seus candidatos junto a fiéis não
somente pouco esclarecidos como espiritualmente desarmados em razão da
ascendência natural que líderes religiosos têm sobre seus seguidores.
De fato, há
notícias, nos corredores do Ministério Público Eleitoral, de candidatos que se
apresentam em templos religiosos com desrespeito a limitações de prazo e lugar
para campanhas eleitorais, em meio a névoas artificiais e luzes feéricas, e são
apresentados aos fiéis como verdadeiros “enviados de Deus” em quem todos devem
votar, supostamente por ordem dos céus.
Como católico,
não pude deixar de alegrar-me por acreditar que a Igreja Católica não age
assim. Como membro do Ministério Público, tenho um impedimento constitucional
para a vida partidária, e sei que há um impedimento um tanto similar para os
sacerdotes católicos no Código Canônico. Documentos magisteriais como a
Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” consagram a distinção entre as
realidades temporais, cuja ordenação cabe legitimamente aos leigos, mormente
naquilo que está no âmbito do opinável, e as questões de fé e de moral, as
quais todo leigo deve submeter ao juízo da Igreja. Não se pode deixar de louvar
a sabedoria do Magistério católico – que promove a distinção das esferas sem
separá-las - ao reconhecer que a vida temporal tem uma legítima autonomia que
impede que o sacerdócio católico se transforme numa casta teocrática através
do mundo. A Igreja deve ser a casa de todos os católicos que abraçam alguma
dentre as diversas opções ideológicas possíveis, daquelas que legitimamente se
apresentam nas diversas sociedades e culturas. É o que ensina a Nota Doutrinal
sobre Algumas Questões Relativas à Participação e Comportamento dos Católicos
na Vida Política, publicada pela Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano:
“Não cabe à
Igreja formular soluções concretas – e muito menos soluções únicas – para
questões temporais, que Deus deixou ao juízo livre e responsável de cada um,
embora seja seu direito e dever pronunciar juízos morais sobre realidades
temporais, quando a fé ou a lei moral o exijam.”
Foi quando uma
pessoa me alertou que as coisas, na prática, poderiam não ser bem assim. Ele me
mostrou, na internet, uma proposta de reforma política que está sendo não
somente subscrita e divulgada pela CNBB, como promovida positivamente e
propagandeada nos corredores eclesiais brasileiros. Procedi às pesquisas e
deparei-me com todo o material.
Trata-se de um
projeto de lei movido por um pretexto aparentemente bom: a necessidade de
reformar o sistema eleitoral brasileiro.
Mas é realmente
quase impossível discernir por qual motivo as regras procedimentais eleitorais
poderiam representar matéria de fé e moral nos termos definidos pela doutrina
católica, ou, mesmo necessitando de reforma, continuam como questões
estritamente políticas, opináveis, inseridas no âmbito da legítima autonomia
das coisas temporais.
É interessante
notar que outras cinquenta e oito entidades assinam o projeto de lei junto com
a CNBB. Dentre elas, diversas organizações sindicais – a maioria absoluta
composta de sindicatos e organizações de servidores públicos federais, outras
ainda na qualidade de centrais sindicais ou “movimentos de reivindicação
social” notoriamente ligadas a partidos de esquerda, algumas autarquias
federais que são entidades de classe e, como outro grupo muito representativo,
associações de gays, lésbicas e transgêneros das quais pude distinguir a GGB –
Grupo Gay da Bahia, a ABGLT, a Associação Brasileira de Lésbicas e a Associação
de Transgêneros. Algumas entidades identificam-se como evangélicas e outras
como associações católicas de laicato e de pastorais sociais.
Três tópicos me
chamaram a atenção, e são destacados inclusive por chamadas capitulares no
sítio eletrônico: a defesa da “paridade de gênero” na lista eleitoral, com um
artigo no próprio projeto que dirige “recursos financeiros extraordinários”
para “segmentos sociais sub-representados” (art. 18, § 2º da proposta), a
proibição da participação das empresas privadas (pessoas jurídicas) no
financiamento de campanhas e o estabelecimento de “listas fechadas” para as
eleições proporcionais do legislativo.
São três
propostas que, coincidentemente ou não, refletem diretrizes partidárias do
partido político que está no governo federal, atualmente. Têm consequências
graves no processo eleitoral – não necessariamente no seu aperfeiçoamento – e
representam, na questão do gênero, uma frontal desatenção ao Magistério moral
da Igreja em matéria de vida familiar e sexual. Além, é claro, de embutirem um
profundo viés antidemocrático, ao menos na visão de alguns juristas sérios – e
circunstancialmente católicos, embora não filiados às ONGs e militantes
multicores que circundam o logo da CNBB no referido sítio. Há outras propostas
de reforma política, e não há justificativa junto à fé católica para que
justamente esta receba o beneplácito da CNBB.
Tome-se a questão
da lista fechada. Há uma outra proposta de reforma, abraçada por outros
partidos de viés menos esquerdista mas igualmente lícitos aos católicos, que
defendem o voto distrital ou distrital misto. Pessoalmente, não consigo
entender qual a razão de crer, como propõe este projeto, que a manutenção do
quociente partidário combinado com uma lista de candidatos imposta pelo partido
possa ser um progresso político. Lutamos outrora pelas “diretas já”, e agora
somos levados a acreditar que precisamos de mais eleições indiretas. Sabe-se lá
por que a CNBB resolveu chancelar uma dentre as diversas opções eleitorais
lícitas aos leigos.
Quanto à promoção
da “paridade de gêneros” e do incentivo financeiro extra para “segmentos
sociais sub-representados”, esconde outra armadilha antidemocrática: trata-se
de comparar o resultado das eleições com os dados estatísticos do IBGE sobre a
população, para dar mais dinheiro aos candidatos que representem facções
sociais cuja representação no legislativo seja menor que sua população
censitária. Isto embute a ideia de que quando um eleitor está votando em alguém
que não pertence ao seu próprio “grupo populacional” e ideológico, ele está
votando mal, e ferindo a democracia. Se, digamos, alguém se identifica como
homossexual perante o IBGE, o projeto de lei presume que ele deve votar em
homossexuais, para que seu “número populacional” se reflita no número de
políticos eleitos. Se não o faz, o estado deve liberar mais dinheiro para os
candidatos gays na eleição seguinte, para restabelecer a “representatividade”.
Ora, se é assim, então a representatividade não decorreria mais dos votos, mas
do censo. A eleição deveria apenas chancelar o censo populacional, creem os
autores deste projeto. Esta noção parece muito com propostas fascistas e
corporativas da primeira metade do século XX. Nega que, por exemplo, os fiéis
católicos eventualmente identificados como homossexuais possam livremente ter
escolhido um candidato que defende a família tradicional, e não um ativista
GLS.
O financiamento
de campanhas por pessoas jurídicas foi banido, o que corresponde a um consenso
que está sendo violentamente imposto pelos acadêmicos de esquerda, pelo partido
atualmente no poder e pela imprensa com ele comprometida, que transforma os
empresários, que são responsáveis pelo recolhimento da maior parte dos impostos
que serão retirados da saúde e educação para financiar políticos e suas
campanhas, em párias eleitorais.
Estabeleceu-se
contra o setor privado a presunção absoluta de que somente colocam recursos
privados em campanhas para locupletar-se ilicitamente. Ora, ao retirar sua
legitimidade para influir nas eleições em busca de seus eventuais legítimos
interesses políticos, o projeto colabora para que o setor privado não possa
contribuir para a retirada do poder de algum grupo que ali se abolete através
de demagogia e oprima o setor privado com medidas ditatoriais e se
retroalimente dos próprios recursos públicos e dos “movimentos sociais”
(corporativos e sexuais) para se perpetuar ali sem que o setor produtivo possa
legitimamente organizar-se no sentido da alternância democrática de poder. O
caminho para uma ditadura obtida por meio eleitoral, como a que ocorreu na
Alemanha de Hitler – que chegou ao poder pelo voto popular – ou na Venezuela de
Hugo Chávez, onde a Igreja séria sofre sob a opressão estatal após o setor
privado ter sido exaurido pelo poder do partido hegemônico. Quem financiará
eventuais adversários aos majoritários ocupantes do Estado em dado momento?
Pelo projeto, ninguém o poderá.
Há conversas de
que a CNBB colherá assinaturas em favor deste projeto em todas as paróquias do
Brasil. Muitos fiéis confiantes no presumível bom senso de um órgão como a CNBB
assinarão, e certamente não o fariam se conhecessem as companhias e o teor.
Talvez, de um modo não tão distante daquelas seitas que usam gelo seco e luzes
feéricas para manipular sentimentos religiosos em favor de ambições políticas
bem pouco cristãs.
Paulo Vasconcelos Jacobina
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Fonte: ZENIT
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