sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Direito Canônico: Francisco aproxima códigos da Igreja Latina e das Igrejas Orientais


O Papa Francisco aprovou ontem um ‘Motu Proprio’ que estabelece maior concordância entre os Códigos de Direito Canónico (Igreja Latina) e o Código dos Cânones das Igrejas Orientais.

A constituição apostólica ‘De concordia inter Codices’ pretende aproximar “alguns pontos que não estavam em perfeita harmonia”, afirma o documento.

Os Códigos, que regulam a Igreja de rito latino e de rito oriental, comportam normas comuns, mas também algumas que refletem a peculiaridade destas tradições.

Com este documento o Papa Francisco quer reforçar a concordância entre ambas, particularmente “nos casos em que devem ser reguladas as relações entre membros pertencentes, respetivamente à Igreja Latina e a uma Igreja Oriental”.

Francisco justifica esta aproximação com o aumento da mobilidade da população, que determinou a presença de um “número notável” de fiéis orientais em territórios latinos.

Esta nova situação, afirma o Papa, gera múltiplas questões pastorais e jurídicas, as quais requerem normas apropriadas.

Cardeal alerta ante possível “conquista islâmica da Europa”


O Arcebispo de Viena (Áustria), Cardeal Christoph Schönborn, alertou sobre uma possível “conquista islâmica da Europa”, no último dia 11 de setembro, enquanto celebrava uma Missa junto a um grupo de fiéis na Catedral local.

O Purpurado disse aos presentes que esse dia se celebrava uma vitória decisiva de uma coalizão cristã sobre o Império turco na Batalha de Viena de 1683.

“Há exatamente 333 anos Viena se salvou. Haverá agora uma terceira tentativa de uma conquista islâmica da Europa? Muitos muçulmanos pensam nisso e o esperam”, disse o Cardeal.

Estes muçulmanos, indicou o Cardeal, “dizem: ‘a Europa está no seu fim’. Mas acredito que o que devemos nos perguntar sobre a Europa é o que Moisés faz nesta leitura de hoje e o que Deus misericordioso faz pelo filho mais novo: Senhor, dá-nos outra oportunidade! Não esqueças que somos o teu povo como Moisés. Eles são teu povo, tu os salvaste, os santificaste, eles são teu povo”.

O Cardeal Schonborn disse também que a Europa “esbanjou e desperdiçou” a sua herança cristã, como o filho pródigo da parábola que Jesus relata nas Escrituras.

“O que será da Europa? ”, questionou o Cardeal antes de concluir a sua homilia com uma oração.

“Senhor, não nos abandone! Não abandone esta Europa, que gerou tantos Santos. Não nos abandone, porque nos convertemos em mornos com relação à fé. Tem misericórdia do teu povo, tem misericórdia da Europa, que está quase perdendo a sua herança cristã! ”

Fé generosa e firme


Cipriano a Cornélio, seu irmão. Tive notícias, irmão caríssimo, dos gloriosos testemunhos de vossa fé e fortaleza. Recebemos com tanta exultação a honra de vossa confissão que também nos julgamos participantes e companheiros de vossos merecidos louvores. Pois se em nós e na Igreja só há um modo de pensar e indivisa concórdia, qual o sacerdote que não se rejubilaria como próprios com os louvores dados a seu irmão no sacerdócio? Ou que fraternidade não se alegraria com o júbilo de todos os irmãos?

Impossível expressar como foi grande esta exultação e alegria, quando fui informado de vossas vitórias e atos de coragem. Nisto foste o primeiro, durante o interrogatório dos irmãos. O testemunho do chefe ainda foi acrescido pela confissão dos irmãos. Enquanto vais à frente na glória, fazes muitos companheiros nesta glória e estimulas o povo a dar testemunho por estares preparado, primeiro que todos, a confessar em nome de todos. Não sabemos o que primeiro elogiar em vós: se vossa fé decidida e estável, se o indefectível amor fraterno. Aí se provou de público a virtude do bispo indo à frente, e se revelou a união da fraternidade que o seguia. Já que em vós só há um coração e uma só voz, foi toda a Igreja Romana que testemunhou.

Tornou-se evidente, irmão caríssimo, a fé que o Apóstolo já tinha louvado em vós. Já então ele previa a virtude louvável e a firmeza da coragem, atestando com isso vossos méritos futuros. O elogio aos pais era estímulo aos filhos. Por serdes assim unânimes, assim fortes, destes exemplo de unanimidade e de fortaleza aos outros irmãos. Sinais da providência do Senhor nos avisam, e palavras salutares da divina misericórdia nos advertem de que já se aproxima o dia de nossa grande luta.  

Por isto, como podemos irmão caríssimo, pela mútua caridade que nos une, nós vos exortamos a não esmorecer. Nos jejuns, nas vigílias e orações com todo o povo. São estas armas celestes que fazem ficar de pé e perseverar com denodo; são estas as defesas espirituais, as lanças, que protegem.  

Lembremo-nos um do outro, concordes e unânimes, mutuamente oremos sempre por nós, suavizando as tribulações e angústias pela caridade recíproca.



Das Cartas de São Cipriano, bispo e mártir

(Epist. 60,1-2.5:CSEL3,691-692.694-695)           (Séc.III)

Como distinguir os Livros inspirados por Deus?


- “Quais os critérios para se discernir se um livro é inspirado por Deus ou não?” (S.A. - Rio de Janeiro-RJ).

1. Diversos têm sido, nos últimos séculos, os critérios propostos para se resolver tal questão. Eis os mais invocados:

a) A índole mesma do livro examinado, ou seja, a sublimidade de sua doutrina, o encanto singular de seu estilo, a sua aptidão a suscitar sentimentos piedosos;

b) A experiência do respectivo leitor, o qual durante a leitura da Bíblia sentiria alegria e deleite, ou seria movido à compunção ou - como queria principalmente Calvino - perceberia o testemunho interno do Espírito Santo;

c) O fato de ter sido o seu autor Profeta, Apóstolo ou discípulo de Profeta ou Apóstolo;

d) O testemunho de homens eruditos e a constância dos mártires ao confessarem a índole inspirada de determinado livro;

e) O estudo da história do cânon (ou catálogo) bíblico.

Todavia estes critérios são, sem exceção, assaz falhos:

"a" e "b" >> A sublimidade da doutrina e do estilo, assim como as experiências íntimas do leitor, estão sujeitas à apreciação pessoal de cada um, podendo ser diversamente estimadas; além disto, tais características podem convir a qualquer livro religioso (até mesmo ao Corão maometano, na medida em que este corresponde à índole mística da natureza humana). Constituem, por isto, insuficiente indício de que Deus é o Autor do respectivo texto.

"c" >> Quanto à dignidade de Apóstolo, Profeta ou discípulo, ela não se identifica por si com a de escritor inspirado; Deus pode dar a alguém o carisma para pregar sem lhe dar luz especial para escrever ou para se tornar autor de um livro bíblico. Ademais, há partes da Sagrada Escritura das quais não se sabe indicar com segurança o respectivo autor (por exemplo: muitos dos axiomas do livro dos Provérbios se devem a anciãos anônimos da corte de Israel; pergunta-se: qual o autor da epístola aos Hebreus, de João 7,53-8.11 e de Marcos 14,9-20?).

De outro lado, sabe-se que há genuínos escritos dos Apóstolos que se perderam (por exemplo, as cartas de Paulo mencionadas em 1Coríntios 5,9; Colossenses 4,16),

Ademais, alguns escritos na Antiguidade eram explicitamente atribuídos a Apóstolos ou discípulos de Apóstolos, sem que fossem tidos como inspirados; tal é o caso da carta dita "de Barnabé", que Tertuliano e São Jerônimo asseveravam haver sido escrita por Barnabé, "Apóstolo dos gentios", mas não pertencer ao cânon dos livros sagrados (cf. Tertuliano, De pudicitia 20; São Jerônimo, De viris illustribus 6).

Apesar destas considerações, alguns exegetas julgam que todos os Apóstolos e discípulos de Apóstolos gozavam do carisma da inspiração bíblica sempre que escreviam; pode-se aceitar esta sentença, contanto que se admita outro critério, mais amplo e seguro, para se afirmar a índole inspirada de determinado livro.

"d" >> Não se poderia dar valor absoluto ao testemunho de homens eruditos e dos mártires. Embora muito valiosas, nada nos garante que tais asserções gozem de autoridade superior à falível autoridade de homens.

"e" >> O estudo da formação do cânon bíblico mostra ao historiador o que se deu no decorrer dos séculos, mas não dá a ver com que direito isso se deu. Feita a averiguação do que aconteceu, seria preciso ainda discutir a autoridade dos diversos elementos que influíram na formação do cânon; em outros termos: seria preciso discutir a autoridade dos bispos, escritores e Concílios que, de um modo ou de outro, concorreram para a estipulação do catálogo sagrado. De onde se vê que o simples estudo da história do cânon não basta; requer-se um critério, deduzido de outra fonte, que indique quem tinha e quem não tinha autoridade para falar no assunto. Em consequência, muitos protestantes reconhecem que a história do cânon não fornece solução plenamente segura para o problema (cf. R. Knopf, "Einfuehrung in das Neue Testament", Bonn, 1919, p.142; F. Watson, "Inspiration", 1906, p.178).

Como se entende, vão seria apelar para a Bíblia mesma em vista de uma solução, pois nela não se encontra o catálogo dos livros inspirados.

São Cornélio


Cornélio nasceu em Roma. Foi eleito para o pontificado, depois de um período vago na Cátedra de São Pedro. O Papa Cornélio foi eleito quase por unanimidade, mas precisou enfrentar a ousadia de Novaciano. Sem que ninguém esperasse, Novaciano fez-se ordenar bispo e proclamou-se anti-papa. Nesta condição se criou o primeiro cisma da Igreja. 

Segundo os partidários de Novaciano, Cornélio teria adotado um discurso e postura muito indulgente, boa e compreensiva, para com os desertores da fé católica, os chamados “lapsi”. Para socorrer a postura de Cornélio, um bispo de Catargo, chamado Cipriano, entrou em cena. Este bispo ajudou Cornélio a defender a verdadeira autoridade papal. 

Assim, a Igreja viu-se dividida entre duas posturas: os seguidores de Cornélio eram favoráveis a admissão dos cristãos pecadores de volta à Igreja, enquanto os adeptos de Novaciano defendiam a exclusão total dos pecadores. 

Porém, pressionado pelo imperador Valeriano, um grande perseguidor dos cristãos, Cornélio, na sua atitude compreensiva e misericordiosa, acabou sendo exilado, onde viveu seus úlitmos dias. Seu único amigo e defensor era Cipriano, que se correspondia com ele, animando-o através de cartas. Esta amizade custou caro a Cipriano, que também foi condenado a morte. 

Cornélio morreu em junho de 253, sendo sentenciado ao martírio pelo imperador, por não aceitar prestar o culto aos deuses pagãos. Foi sepultado no cemitério de São Calixto. 



Deus eterno e todo-poderoso, quiseste que São Cornélio governasse todo o vosso povo, servindo-o pela palavra e pelo exemplo. Guardai, por suas preces, os pastores de vossa Igreja e as ovelhas a eles confiadas, guiando-os no caminho da salvação. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso filho, na unidade do Espírito Santo. Amém. 

São Cipriano de Cartago


A história conhece um São Cipriano que foi bispo do Cartago, no Norte da África entre 249 e 258. Deixou numerosos escritos teológicos, hoje em dia editados, que nada tem a ver com magia ou ocultismo. Gozou de grande fama e estima após a sua morte, pois foi um mártir heróico, que marcou a Igreja do seu tempo.

São Cipriano é «o primeiro bispo que na África alcançou a coroa do martírio».

Sua fama, como testemunha o diácono Pôncio, o primeiro em escrever sua vida, está também ligada à criação literária e à atividade pastoral dos treze anos que se passaram entre sua conversão e o martírio (cf. «Vida» 19, 1; 1,1). Nascido em Cartago no seio de uma rica família pagã, depois de uma juventude dissipada, Cipriano se converte ao cristianismo aos 35 anos. Ele mesmo narra seu itinerário espiritual: «Quando ainda jazia como em uma noite escura, escreve meses depois de seu batismo, me parecia sumamente difícil e fatigoso realizar o que me propunha a misericórdia de Deus… Estava ligado a muitíssimos erros de minha vida passada, e não cria que pudesse libertar-me, até o ponto de que seguia os vícios e favorecia meus maus desejos… Mas depois, com a ajuda da água regeneradora, ficou lavada a miséria de minha vida precedente; uma luz soberana se difundiu em meu coração, um segundo nascimento me regenerou em um ser totalmente novo. De maneira maravilhosa começou a dissipar-se toda dúvida… Compreendia claramente que era terreno o que antes vivia em mim, na escravidão dos vícios da carne, e pelo contrário, era divino e celestial o que o Espírito Santo já havia gerado em mim» («A Donato», 3-4).

Imediatamente depois da conversão, Cipriano, apesar de invejas e resistências, foi eleito ao ofício sacerdotal e à dignidade de bispo. No breve período de seu episcopado, enfrentou as duas primeiras perseguições sancionadas por um edito imperial, a de Décio (250) e a de Valeriano (257-258). Depois da perseguição particularmente cruel de Décio, o bispo teve de empenhar-se com muito esforço por voltar a pôr disciplina na comunidade cristã. Muitos fiéis, de fato, haviam abjurado, ou não haviam tido um comportamento correto ante a prova. Eram os assim chamados «lapsi», ou seja, os «caídos», que desejavam ardentemente voltar a entrar na comunidade. O debate sobre sua readmissão chegou a dividir os cristãos de Cartago em laxistas e rigoristas. A estas dificuldades é preciso acrescentar uma grave epidemia que atingiu a África e que propôs interrogantes teológicos angustiantes, tanto dentro da comunidade como em relação aos pagãos. Deve-se recordar, por último, a controvérsia entre Cipriano e o bispo de Roma, Estevão, sobre a validez do batismo administrado aos pagãos por parte de cristãos hereges.

Nestas circunstâncias realmente difíceis, Cipriano demonstrou elevados dotes de governo: foi severo, mas não inflexível com os «caídos», dando-lhes a possibilidade do perdão depois de uma penitência exemplar; ante Roma, foi firme na defesa das sãs tradições da Igreja africana; foi sumamente compreensivo e cheio do mais autêntico espírito evangélico na hora de exortar os cristãos à ajuda fraterna aos pagãos durante a epidemia; soube manter a justa medida na hora de recordar aos fiéis, muito temerosos de perder a vida e os bens terrenos, que para eles a verdadeira vida e os autênticos bens não são os deste mundo; foi inquebrantável na hora de combater os costumes corruptos e os pecados que devastam a vida moral, sobretudo a avareza.

«Passava dessa forma os dias», conta o diácono Pôncio, «quando por ordem do procônsul, chegou inesperadamente à sua casa o chefe da polícia» («Vidas», 15,1). Nesse dia, o santo bispo foi preso e depois de um breve interrogatório enfrentou valorosamente o martírio no meio de seu povo.

Cipriano compôs numerosos tratados e cartas, sempre ligados a seu ministério pastoral. Pouco proclive à especulação teológica, escrevia sobretudo para a edificação da comunidade e para o bom comportamento dos fiéis. De fato, a Igreja é seu tema preferido. Distingue entre «Igreja visível», hierárquica, e «Igreja invisível», mística, mas afirma com força que a Igreja é uma só, fundada sobre Pedro.

Não se cansa de repetir que «quem abandona a cátedra de Pedro, sobre a qual está fundada a Igreja, fica na ilusão de permanecer na Igreja» («A unidade da Igreja Católica», 4). Cipriano sabe bem, e o disse com palavras fortes, que «fora da Igreja não há salvação» (Epístola 4, 4 e 73,21), e que «não pode ter Deus como Pai que não tem a Igreja como mãe» («A unidade da Igreja Católica», 4). Característica irrenunciável da Igreja é a unidade, simbolizada pela túnica de Cristo sem costura (ibidem, 7): unidade que, segundo diz, encontra seu fundamento em Pedro (ibidem, 4) e sua perfeita realização na Eucaristia (Epístola 63, 13). «Só há um Deus, um só Cristo», exorta Cipriano, «uma só é sua Igreja, uma só fé, um só povo cristão, firmemente unido pelo fundamento da concórdia: e não pode separar-se o que por natureza é um» («A unidade da Igreja Católica», 23).

Falamos de seu pensamento sobre a Igreja, mas não podemos esquecer, por último, o ensinamento de Cipriano sobre a oração. Gosto particularmente de seu livro sobre o «Pai Nosso», que me ajudou muito a compreender melhor e a rezar melhor a oração do Senhor: Cipriano ensina que precisamente no «Pai Nosso» se oferece ao cristão a maneira reta de rezar; e sublinha que esta oração se conjuga no plural «para que quem reza não reze só por si mesmo. Nossa oração — escreve — é pública e comunitária e, quando rezamos, não rezamos só por nós, mas por todo o povo, pois somos uma só coisa com todo o povo» («A oração do Senhor» 8). Deste modo, oração pessoal e litúrgica se apresentam firmemente unidas entre si. Sua unidade se baseia no fato de que respondem à mesma Palavra de Deus. O cristão não diz «Pai meu», mas «Pai nosso», inclusive no segredo de seu quarto fechado, pois sabe que em todo lugar, em toda circunstância, é membro de um mesmo Corpo.

«Rezemos, portanto, irmãos queridos, escreve o bispo de Cartago, como Deus, o Mestre, nos ensinou. É uma oração confidencial e íntima rezar a Deus com o que é seu, elevar a seus ouvidos a oração de Cristo. Que o Pai reconheça as palavras de seu Filho quando elevamos uma oração: que quem habita interiormente no espírito esteja também presente na voz… Quando se reza, também é preciso ter uma maneira de falar e de rezar que, com disciplina, mantenha calma e reserva. Pensemos que estamos ante o olhar de Deus. É necessário ser gratos ante os olhos divinos, tanto com a atitude do corpo como com o tom da voz… E quando nos reunimos junto aos irmãos e celebramos os sacrifícios divinos com o sacerdote de Deus, temos de fazê-lo com temor reverencial e disciplina, sem jogar ao vento por todos os lados nossas orações com vozes desmesuradas, nem lançar com tumultuosa verborréia uma petição que deve ser apresentada a Deus com moderação, pois Deus não escuta a voz, mas o coração (‘non vocis sed cordis auditor est’)» (3-4). Trata-se de palavras que continuam sendo válidas também hoje e que nos ajudam a celebrar bem a santa Liturgia.

Em definitivo, Cipriano se encontra nas origens dessa fecunda tradição teológico-espiritual que vê no «coração» o lugar privilegiado da oração. Segundo a Bíblia e os Padres, de fato, o coração é o íntimo do ser humano, o lugar onde mora Deus. Nele se realiza esse encontro no qual Deus fala ao homem, e o homem escuta Deus; no qual o homem fala a Deus e Deus escuta o homem: tudo isso acontece através da única Palavra divina. Precisamente neste sentido, seguindo São Cipriano, Emaragdo, abade de São Miguel, nos primeiros anos do século IX, testifica que a oração «é obra do coração, não dos lábios, pois Deus não vê as palavras, mas o coração orante» («A diadema dos monges», 1).

Tenhamos este «coração que escuta», do qual nos falam a Bíblia (cf. 1 Reis 3, 9) e os Padres: isso nos faz muita falta! Só assim poderemos experimentar em plenitude que Deus é nosso Pai e que a Igreja, a santa Esposa de Cristo, é verdadeiramente nossa Mãe.



Deus eterno e todo-poderoso, que a vossos pastores associastes São Cipriano, a quem destes a graça de lutar pela justiça até a morte, concedei-nos, por sua intercessão, suportar por vosso amor as adversidades, e correr ao encontro de vós que sois a nossa vida. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

A Mãe de Cristo estava junto à cruz


O martírio da Virgem é recordado tanto na profecia de Simeão como na história da paixão do Senhor. Diz o santo ancião acerca do Menino Jesus: Este foi predestinado para ser sinal de contradição; e, referindo‑se a Maria, acrescenta: E uma espada trespassará a tua alma.
 
Na verdade, ó santa Mãe, uma espada trespassou a vossa alma. Porque nunca ela podia atingir a carne do Filho sem atravessar a alma da Mãe. Depois que aquele Jesus – que é de todos, mas especialmente vosso – expirou, a cruel lança que Lhe abriu o lado, sem respeitar sequer um morto a quem já não podia causar dor alguma, não feriu a sua alma mas atravessou a vossa. A alma de Jesus já não estava ali, mas a vossa não podia ser arrancada daquele lugar. Por isso a violência da dor trespassou a vossa alma, e assim, com razão Vos proclamamos mais que mártir, porque os vossos sentimentos de compaixão superaram os sofrimentos corporais do martírio.
 
Não foi, porventura, para Vós mais que uma espada aquela palavra que verdadeiramente trespassa a alma e penetra até à divisão da alma e do espírito: Mulher, eis o teu Filho? Oh que permuta! Entregam‑Vos João em vez de Jesus, o servo em vez do Senhor, o discípulo em vez do Mestre, o filho de Zebedeu em vez do Filho de Deus, um simples homem em vez do verdadeiro Deus. Como não havia de ser trespassada a vossa afectuosíssima alma ao ouvirdes estas palavras, quando a sua simples lembrança despedaça o nosso coração, apesar de ser tão duro como a pedra e o ferro?
 
Não vos admireis, irmãos, de que Maria seja chamada mártir na sua alma. Admire‑se quem não se recorda de ter ouvido Paulo mencionar entre as maiores culpas dos pagãos o facto de não terem afecto. Como isso estava longe do coração de Maria! Longe esteja também dos seus servos.
 
Mas talvez alguém possa dizer: «Porventura não sabia Ela que Jesus havia de morrer?». Sem dúvida. Não esperava Ela que Jesus havia de ressuscitar?». Com toda a certeza. «E apesar disso sofreu tanto ao vê‑l’O crucificado?». Sim, com terrível veemência. Afinal, que espécie de homem és tu, irmão, e que estranha sabedoria é a tua, se te surpreende mais a compaixão de Maria do que a paixão do Filho de Maria? Ele pôde morrer corporalmente e Ela não pôde morrer com Ele em seu coração? A morte de Jesus foi por amor, aquele amor que nenhum homem pode superar; o martírio de Maria teve a sua origem também no amor, ao qual depois do de Cristo, nenhum outro amor se pode comparar.



Dos Sermões de São Bernardo, abade
(Sermo in dom. infra oct. Assumptionis, 14-15: Opera omnia, ed. Cisterc. 5 [1968], 273-274) (Sec. XII)

Bíblia: ao pé da letra ou não?


- “Haverá algum critério seguro para se distinguir na Bíblia o que é real e o que é poesia? E o que é dogma de fé e o que não é?” (Aníbal - Rio de Janeiro-RJ).

1. Em primeiro lugar, removamos dois conceitos errôneos neste setor.

Os critérios que nos levam a interpretar certas passagens da Bíblia em sentido literal e outras em sentido alegórico, não são:

a) O caráter maravilhoso ou milagroso como tal dos trechos bíblicos. As intervenções do sobrenatural na natureza não assustam o cristão; este reconhece que são sinais muito lógicos da Onipotência Divina, que ele professa. Note-se, porém, que nem por isto o cristão há de admitir milagres a esmo na História Sagrada. Por serem expressões da Sabedoria Divina, o Senhor realiza sempre os seus portentos — derrogações às leis que o próprio Criador incutiu à natureza — em vista de um fim proporcionalmente grande, e não para ostentar sua Onipotência. Tendo Deus comunicado aos elementos sua maneira própria de agir, o Senhor costuma respeitar o curso ordinário das coisas e utilizá-lo ou encaminhá-lo para obter os efeitos intencionados pela Providência (serve-se habitualmente das chamadas «causas segundas»). Por isto, ensina a exegese que, embora o milagre seja uma realidade na História, a realização de um milagre deve ser provada ou deduzida das expressões mesmas do texto sagrado; não pode ser simplesmente pressuposta; o fato de ser Deus todo-poderoso não implica que tenha realmente manifestado sua Onipotência todas as vezes que a piedade ou a fantasia do leitor da Bíblia o julgue,

b) Também não são as descobertas da Ciência moderna, como tais, que levam o exegeta a dar sentido figurado a muitas expressões da Bíblia. Em outras palavras: não é para estar de acordo com os últimos resultados das pesquisas da astronomia, da geologia, da antropologia etc. (norteando-se diretamente pelas teorias das Ciências Naturais) que o cristão «arranja» suas conclusões exegéticas. Esta atitude, de todo errônea, tem o nome de «Concordismo» (isto é, procura de concórdia, às vezes alheia ao texto bíblico, entre a Ciência e a Escritura).

E por que é errônea? Haverá então discórdia ou apenas semiconcórdia?

É errônea simplesmente porque pressupõe que a Bíblia tenha a mesma finalidade que a Ciência, isto é, que vise ensinar aos homens qual a natureza intrínseca dos fenômenos biológicos, astronômicos, geológicos. Se as Escrituras tivessem em mira ensinar isto, então é claro que haveria justificativa para procurarmos ler as teorias da Ciência Moderna, clara ou veladamente formuladas, na Bíblia. — Acontece, porém, que a Sagrada Escritura visa apenas expor aos leitores o sentido religioso que cabe às criaturas e aos seus fenômenos no plano de Deus; não quer senão dizer de onde vêm os seres, para onde vão, qual o seu valor e a sua função aos olhos de Deus e do cristão, sem se preocupar com a estrutura físico-química das criaturas.

Em consequência, a Bíblia, tendo que aludir aos diversos elementos deste mundo, menciona-os na linguagem simples de seus primeiros leitores, que eram judeus rudes (esta linguagem é suficiente à finalidade da Sagrada Escritura), e começa seu ensinamento propriamente dito onde o cientista termina suas afirmações. Este analisa o que lhe cai sob os olhos e vai retrocedendo no curso dos fenômenos até chegar aos mínimos componentes da matéria; depois disto, nada mais sabe dizer. Pois bem, é justamente neste ponto que as Escrituras começam a ensinar; expõem a metafísica ou o sentido transcendente da matéria, do homem e das suas atividades neste mundo. Não há, pois, coincidência entre o ponto de vista das Ciências Naturais e o da Bíblia. De onde se vê quão absurdo seria interpretar tal ou tal passagem escriturística em sentido alegórico a fim de a acomodar às últimas teorias científicas.