- “O que significa o número da besta do Apocalipse (13,18)?”
(Nivaldo - Brasília-DF).
Esta questão tem ocupado calorosamente leitores e comentadores do Apocalipse desde o séc. II da nossa Era. Com efeito, Santo Ireneu (140-202) refere que já em seu tempo os códices do Apocalipse exibiam duas variantes do dito número ("666" e "616"), sem que se soubesse qual o seu significado exato (Adv. haer. 5,30,2).
Contudo, será preciso reconhecer que o enigma devia ter sentido evidente para os leitores imediatos do Apocalipse, ou seja, para os cristãos da Ásia Menor aos quais no fim do século I d.C. São João se dirigia; era justamente com o intuito de os orientar que o Apóstolo escrevia o texto de Apocalipse 13,18; não lhes queria propor um «quebra-cabeça», mas algo de que pudessem tirar proveito, porque sabia que tinham os meios para o decifrar; infelizmente, porém, desde cedo se apagou nos cristãos a reminiscência dos elementos necessários à elucidação (perdeu-se a chave do enigma).
Vejamos o que hoje, coligindo alguns dados seguros, se pode dizer de mais provável sobre o assunto.
1) O misterioso número deve designar algum homem, pois o hagiógrafo adverte que é «número de homem» (13,18). E como o designa?
Os gregos e hebreus atribuíam valor numérico a cada uma das letras do seu alfabeto (os romanos, ao contrário, só a algumas o atribuíam); baseados nisto, compraziam-se em contar o valor numérico de determinado nome e, em consequência, de determinada pessoa. Este proceder, que constituía a arte chamada «gematria», era muito usual entre os povos do Mediterrâneo (em Pompeia, por exemplo, no Sul da Itália, foi encontrada a seguinte inscrição: «Amo aquela cujo número é 545» (cf. Sogliano, "Rendiconti della Reale Accademia dei Lincei, 1901, pp.256-259).
2) São João, em Apocalipse 13,18, usou de modo de falar obscuro, provavelmente porque entendia proferir um juízo sinistro sobre algum dos dignitários (ou monarcas) do Império Romano; não queria incorrer no crime de lesa-autoridade ou de lesa-majestade nem tornar os seus leitores suspeitos disto; o livro do Apocalipse podia cair em mãos de pagãos que, se compreendessem a alusão à autoridade, se vingariam dos cristãos (as primeiras perseguições já tinham sido desencadeadas por Nero em 64), Por isto, se referia a Roma mencionando Babilônia (cf. cap.16), à semelhança do que fizera São Pedro em 1Pedro 5,13. Disto se segue que se deve procurar o personagem designado pelo número 666 entre os chefes do Império contemporâneos ou anteriores a São João. Sim; se os leitores do Apocalipse não tivessem de antemão certo conhecimento do varão mencionado, jamais poderiam decifrar o enigma proposto.
3) Consequentemente vê-se que será no vocabulário grego ou no hebraico (com os quais estavam familiarizados os destinatários do Apocalipse) que se deverá buscar a solução. Não entra em questão o latim, pois este, no século I da nossa Era, não passava de dialeto confinado ao Lácio (península itálica), dialeto que ficava alheio às cogitações dos leitores imediatos da obra de São João.
4) Feitas estas aproximações, só restam três soluções mais ou menos plausíveis para o nosso enigma: os nomes
- GAIOS KAISAR (Gaio César, designação de Calígula Imperador); ou
- KAISAR THEÓS (César é Deus). Estas são duas expressões gregas cujas letras somadas dão o total de 616; ou então
- QESAR NERON (César Nero), termos gregos que, escritos em caracteres hebraicos, perfazem a soma de 666: Q = 100; S = 60; R = 200; N = 50; R = 200; O - 6; N = 50 (as vogais "e" e "a" não se contavam em hebraico).
Destas três interpretações, a mais plausível é a última. Proposta pela primeira vez entre 1830 e 1840 por Fritzsche, Bénary, Hitzig, tem aliciado grande número de exegetas. Oferece, entre outras vantagens, a de explicar as variantes "666" e "616" dos antigos códices: alguns copistas influenciados pela forma latina Nero terão omitido o "n" final que figura no nome grego "Neron", diminuindo assim de 50 unidades a soma total das letras. Note-se que, das duas variantes do número, a que parece originária e merece a clara preferência, tanto de Santo Ireneu (séc. II) como dos melhores códices, é 666. Teríamos, pois, em Apocalipse 13,18, uma alusão ao famoso Imperador Nero.
Verdade é que este soberano já morrera quando São João escrevia o Apocalipse; o Apóstolo, porém, tomava-o como personificação do poder imperial hostil aos cristãos, pois Nero fora o iniciador das perseguições e ficava marcado, na reminiscência dos pósteros, como o tipo do perseguidor cruel e vicioso ou como a figura do Anticristo.