Recebi a seguinte – e dolorosíssima – mensagem de um leitor, seguida de várias perguntas:
Faz alguns dias, na minha cidade de Monterrey, no México, uma jovem mulher sacrificou sem piedade o próprio filho de apenas 3 anos durante um ritual satânico realizado dentro da sua casa. Horror dos horrores: o pequeno indefeso foi queimado vivo. O que diz a Igreja sobre essas almas que, em nome de outras, são oferecidas ao demônio? Era uma criança! Acredito eu que, nessa idade, ele nem conhecia o pecado! O que acontece com ele? Vai ser condenado ou, pela justiça divina, devemos ter a certeza de que ela está na Casa de Deus? Podemos fazer algo por essas almas?
A famosa tragédia de Fausto vem da obra literária do alemão Goethe: um médico vende a alma ao diabo para conseguir poder e conhecimento. Fausto, o personagem, faz um pacto com o diabo vendendo-lhe corpo e alma para obter prazeres e poderes durante alguns anos. Aceitando o trato, o diabo concede ao Dr. Fausto o gozo dos prazeres do pecado. Seu destino parece selado. Quando o prazo se cumpre, porém, Fausto tenta frustrar os planos do diabo e enfrenta uma morte espantosa.
Essa história funciona como metáfora do preço do pecado, mas não tem embasamento bíblico nem teológico. A Sagrada Escritura não relata nenhum caso de pessoa que tenha literalmente “vendido” a alma a Satanás. Teológica e filosoficamente falando, tampouco é algo fundamentado.
Consideremos 5 coisas:
1 – Ninguém pode vender ao diabo a própria vida ou a vida alheia pela simples razão de que a vida não pertence a nós próprios. Todos pertencemos a Deus e somos d’Ele (Sal 8, 6-7; Ef 2, 10).
Quando se diz que uma pessoa vendeu a alma ao diabo, o que se quer dizer é que tal pessoa fez uma aposta cega em meios espiritualmente opostos a Deus a fim de tentar conseguir a qualquer custo os seus objetivos, sem se importar com a própria condenação. É uma figura metafórica. É possível optar livremente por afastar-se de Deus – e também é sempre possível decidir livremente converter-se e voltar para Ele. Deus SEMPRE perdoa: basta querermos com sinceridade. Por isso, não existe nenhum tipo de “contrato definitivo” com o diabo (o que não quer dizer que “valha a pena” tentar enganá-lo, pois brincar com a própria salvação é, no mínimo, muito arriscado). O diabo simplesmente não tem qualquer possibilidade de “exigir” que Deus lhe ceda uma alma quando essa alma deseja sinceramente voltar para Deus – ou quando essa alma jamais optou por se afastar de Deus, como é o caso da criança inocente que foi sacrificada de modo covarde e absurdo. Essa criança é de Deus. A mãe dela não tem qualquer “autoridade” para dá-la ao diabo. A mãe foi apenas mais uma estúpida vítima de um engano pavoroso e cometeu um crime brutal ao ceder a tamanho engano.
Aliás, assim como no caso da alma, também são perfeitamente sem sentido as afirmações de quem acha que tem controle absoluto sobre o próprio corpo. Há muita gente que, insensatamente, afirma coisas como “O corpo é meu e eu posso fazer com ele tudo o que quiser”, ou “Eu tenho direito de decidir o que quiser sobre o meu corpo”. Goste-se ou não, o seguinte fato é objetivo: não temos “poder” absoluto sobre nós mesmos. Para começar, não fomos nós que nos criamos. Igualmente, não temos como determinar de modo absoluto o nosso fim, nem mesmo quando, por desgraça, cometemos suicídio: não temos como afirmar que este é o “fim”, já que, ainda que duvidemos da eternidade, não temos como provar que ela não existe. Pela fé, sabemos que fomos criados e que somos chamados a administrar a vida que Deus nos deu. Até podemos cometer estupidezes com o nosso corpo e com a nossa alma, pois Deus respeita a nossa liberdade inclusive quando a usamos mal: isso não significa, porém, que esse mau uso da liberdade vá nos fazer mais felizes; muito pelo contrário: ao contrariarmos a nossa natureza, nos afastamos da nossa realização, que pressupõe a nossa integração com a nossa natureza. Mesmo quem não acredita em Deus e na alma pode enxergar, se tiver o mínimo do bom senso, que, na tarefa de administrar a nossa própria vida, encontramos evidentes limites naturais para aquilo que podemos ou não podemos fazer. Toda vez que tentamos derrubar esses limites naturais estamos apenas sendo estúpidos, não livres, e enfrentamos consequências físicas, psíquicas e espirituais.
2 – Embora pertençamos a Deus, Ele não nos obriga a ficar do Seu lado. A parábola do pai misericordioso e do seu filho pródigo (Lc 15,11-22) nos confirma que, muito a seu pesar, o pai respeita a liberdade do filho mesmo quando ele decide ir embora. Se optamos conscientemente por nos afastar do Pai, Ele acata a nossa decisão mesmo sofrendo por saber que estamos apenas rumando para a infelicidade. Cristo nos libertou para sermos livres do pecado (Gl 5, 1), não para nos enganarmos achando que a liberdade equivale a sermos escravos das nossas próprias paixões ilusórias. A liberdade nos permite fazer escolhas: não garante, porém, que as nossas escolhas sejam as melhores. O verdadeiro e pleno uso da liberdade consiste em escolher o Bem apesar de podermos rejeitá-lo.