A
tentação de apresentar um cristianismo sem cruz revela-se, aos
poucos, decepcionante, porque é somente na cruz que se descobre o
amor de Deus. A cruz possui um significado inegociável para o
cristianismo. É somente por meio do Cristo crucificado que se pode
compreender “o poder de Deus” – (1Cor 1, 24) e a sua
ação salvífica entre os homens. Por isso, na pregação evangélica
de Jesus, tudo se resume a esta exortação: “Se alguém quiser vir
comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” – (Mt
16, 24). Não se trata de mera retórica, mas da apresentação de um
dado incontestável: Não
há redenção sem Cruz. O
homem que quiser se salvar, deverá, necessariamente, apegar-se às
cruzes do dia a dia, renunciando-se a si mesmo, tal qual o Filho do
Homem fez no lenho da salvação. A
Igreja deve seguir o caminho do Esposo. Renegar a cruz seria como que
um adultério. A tentação
de apresentar um cristianismo sem cruz, no intuito de satisfazer o
gosto da clientela, aos poucos, mostra-se frustrante. Sem o Cristo
crucificado se perde o dom gratuito do Pai que, amando o mundo de tal
maneira, entrega Seu Filho único em holocausto. É nisto que
conhecemos o amor. Não há mensagem mais urgente, mais necessária,
mais imprescindível para o homem que a mensagem do amor de Deus.
Nenhum esforço humano, nenhuma sabedoria humana, nenhuma teologia da
“libertação” ou da “prosperidade” é realmente capaz de
libertar o homem e fazer com que ele progrida na santidade. É Cristo
crucificado que nos traz a redenção, porque foi para isto que Ele
se manifestou: “para
destruir as obras do demônio”– (1
Jo 3, 8). É, portanto, na morte crucificada, que se encontra a
verdadeira vida.
Publico
abaixo, um texto de Santo Afonso Maria de Ligório, em que ele
faz uma reflexão da Paixão de Jesus sob a perspectiva da Cruz. As
palavras da Tradição da Igreja são sempre importantes quando
falamos dos mistérios da nossa fé, ainda mais desse nobre doutor da
Igreja, Santo Afonso! Ele expõe de maneira clara nesse texto, o amor
que todo cristão deve ter pela Cruz de Jesus. Diz o Santo:
“Jesus
Cristo quis morrer crucificado para nos livrar do amor ao mundo
perverso. Tendo-nos chamado ao seu amor, quer que nos coloquemos
acima das promessas e ameaças do mundo. Quer que não façamos caso
nem das censuras do mundo nem das suas aprovações, e nos alegremos
por sermos odiados e perseguidos como o próprio Jesus. Para
alcançarmos um fim tão elevado, habituemo-nos a prever já de manhã
as contrariedades e os desprezos que nos possam vir do correr do dia,
e preparemo-nos para os sofrer com paciência. Quem ama a Jesus
Cristo com amor verdadeiro, alegra-se quando se ve tratado pelo mundo
assim como foi tratado Jesus Cristo, que por ele foi odiado,
vituperado e perseguido até morrer de dor, suspenso num patíbulo
infame. – O mundo é diametralmente oposto a Jesus Cristo: e por
isso, odiando a Jesus, odeia a todos os que o servem. Pelo que o
Senhor animava os seus discípulos a sofrerem com paz as
perseguições, dizendo-lhes que, já que tinham abandonado o mundo,
não podiam deixar de ser dele odiados – (Io. 15, 19). Ora,
como as almas amantes de Deus são para o mundo objeto de ódio,
assim o mundo deve ser objeto de ódio para quem ama a Deus. Dizia
São Paulo:
“Esteja longe de mim o gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor
Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o
mundo“. O mundo abominava o Apóstolo, assim como se abomina um
homem condenado e morto na cruz; mas de igual maneira São Paulo
abominava o mundo. Jesus quis morrer crucificado pelos nossos
pecados, para livrar-nos do amor ao mundo perverso – (Gal. 1,
4). Já que Jesus nos chamou ao seu amor, quer que nos coloquemos
acima das promessas e das ameaças do mundo. Quer que não façamos
mais caso nem de suas censuras, nem de suas aprovações. A fim de
chegarmos ali, representemo-nos, na nossa meditação, todos os
desprezos, contrariedades e perseguições que nos possam sobrevir, e
ofereçamo-nos com grande coragem a sofrê-los por amor de Jesus
Cristo, não somente em paz, mas também com alegria de espírito.
Procedendo desta maneira, estaremos na ocasião mais dispostos a
aceitá-los. Mas sobretudo devemos pedir a Deus, que nos faça
esquecer inteiramente o mundo, e alegrarmo-nos quando nos virmos
rejeitados pelo mundo. Para que sejamos inteiramente de Deus, não
basta que nós abandonemos o mundo; é além disso mister desejarmos
que o mundo nos abandone e nos esqueça de todo. Alguns abandonam o
mundo, mas não deixam de querer ser por ele louvados, ainda que seja
só pelo terem abandonado. Alimentado este desejo de serem estimados
pelo mundo, fazem com que o mundo ainda viva neles. Como o mundo
odeia os servos de Deus, e odeia por isso os seus bons exemplos e
máximas santas, assim nós devemos odiar todas as máximas do mundo,
como sejam: bem-aventurado o rico; bem-aventurado o que não sofre e
se diverte, infeliz o que é maltratado e perseguido dos outros! Numa
palavra, se desejamos agradar a Deus só, devemos viver em contínua
desavença com o mundo, que, na palavra do Apóstolo, não pode
deixar de ser inimigo de Deus – (Rom. 8, 7). Oh! Como a vista
de Jesus crucificado afugenta de nossas mentes todos os desejos de
honras mundanas, das riquezas da terra e dos prazeres dos sentidos!
Daquela cruz emana uma vibração celeste, que
docemente nos desprende dos objetos terrenos e acende em nós um
santo desejo de sofrer e morrer por amor daquele que quis sofrer
tanto e morrer por amor de nós.
Que vergonha para nós. Quantas tenras virgenzinhas renunciaram a
casamentos principescos, riquezas reais e todas as delícias terrenas
e voluntariamente sacrificaram sua vida para testemunhar qualquer
gratidão pelo amor que lhes demonstrou este Deus crucificado. Sim,
meu Jesus crucificado e morto por mim, só a Vós quero agradar. Que
mundo, que riquezas, que dignidades! Quero que Vós, meu Redentor,
sejais todo o meu tesouro; a minha riqueza é o amar-Vos. Se me
quereis pobre, quero ser pobre; se me quereis humilhado, enfermo e
desprezado de todos, aceito tudo de vossas mãos; a vossa vontade
será sempre a minha única consolação. Mas eis aqui a graça que
Vos peço: fazei que em tudo quanto me acontecer, eu me não afaste,
nem sequer uma linha, da vossa santa vontade, e Vos ame de todo o meu
coração. Sei que não mereço esta graça depois de Vos ter virado
tantas vezes as costas
pelo amor das criaturas, mas, meu Senhor, Vós dissestes que não
sabeis desprezar um coração contrito e humilhado, e eu arrependo-me
de todo o coração e quisera morrer de dor. – Atendei-me, meu
Jesus, fazei que nunca me afaste da vossa santa vontade e Vos ame de
todo o coração. Esta mesma graça vos peço, ó grande Mãe de Deus
e minha Mãe, Maria (II 282) – (Fonte: Meditações: Para
todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II – Santo Afonso Maria de
Ligório).