quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Casamentos dissolvidos pela Igreja?


Em síntese: O matrimônio sacramental validamente contraído e carnalmente consumado é indissolúvel. A Igreja o afirma em fidelidade ao Evangelho. Todavia o matrimônio não sacramental é dissolvido em favor do matrimônio sacramental (privilégio paulino e privilégio petrino). Também o matrimônio não consumado carnalmente pode ser dissolvido. – É o que vem explanado nas páginas subsequentes.

Nem sempre é claro ao público o conceito de indissolubilidade do matrimônio sacramental. Apontam-se casos que parecem constituir exceções. Daí o propósito das considerações deste artigo.

Indissolubilidade e Divórcio

A indissolubilidade da união conjugal não se fundamenta apenas no Evangelho, mas se deriva da própria lei natural. Com efeito; a união conjugal é tão íntima e plena que ela não admite restrições; doar-se a alguém “para constituir uma só carne” com reservas é incoerência, que o próprio bom senso rejeita. O que se pode e deve desejar, é que a união matrimonial só seja contraída após a devida preparação e com a possível maturidade; naturalmente ela implicará sempre um risco, como tudo o que é grande implica risco; é impossível, porém, fugir ao risco se alguém crer crescer e autorrealizar-se.

O Evangelho corrobora a lei natural, como se verá a seguir.

1.1.  A doutrina do Novo Testamento

São quatro os textos do Novo Testamento que tratam do matrimônio e da sua indissolubilidade:

Mc 10, 11s: “Todo aquele que repudiar sua mulher e esposar outra, comete adultério contra a primeira; e, se essa repudiar o seu marido, comete adultério”.

Lc 16, 18: “Todo aquele que repudiar a sua mulher e esposar outra, comete adultério, e quem esposar uma repudiada por seu marido comete adultério”.

1Cor 7, 10s: “Quanto àqueles que estão casados, ordeno não eu mas o Senhor: a mulher não se separe do marido; se, porém, se separar, não se case de novo, ou reconcilie-se com o marido; e o marido não repudie a esposa”.

Mt 5, 31s: “Eu vos digo: todo aquele que repudia sua mulher, a não ser por motivo de porneia, faz que ela adultere, e aquele que se casa com a repudiada, comete adultério”. O mesmo ocorre em Mt 19, 9.


Como se vê, em Mc, Lc e 1Cor a recusa de segundas núpcias é peremptória; não se admite exceção nem mesmo em favor da parte repudiada, que pode ser vítima inocente; as razões pessoais, subjetivas e sentimentais não vêm ao caso. Trata-se de impossibilidade objetiva derivada da ordem dos valores, independente de culpa ou não culpa dos contraentes. Com outras palavras: essa indissolubilidade não está ligada ao comportamento de esposo e esposa, comportamento para o qual se poderia pleitear misericórdia e perdão. O matrimônio, por sua índole mesma, é indissolúvel; quem o contrai, deve sabê-lo de antemão; Jesus mesmo diz: “O que Deus uniu, o homem não o deve separar” (Mt 19, 6).

Acontece, porém, que no texto de Mt 5, 32s e Mt 19, 9 Jesus parece admitir uma exceção, a saber:… no caso em que haja porneia. Como entender esta palavra?

- Notemos que os textos de Mc, Lc e 1Cor são peremptórios e, além disto, são anteriores ao de Mateus (Mateus grego que hoje temos, deve datar de 80 aproximadamente, o que é posterior a Mc, Lc e 1Cor); disto se segue que é pouco provável que os três tenham eliminado uma cláusula restritiva de Jesus; é mais verossímil que o tradutor do Evangelho de Mateus aramaico para o grego tenha acrescentado a cláusula… Ele o terá feito em vista de uma problemática oriunda em comunidades de maioria judeo-cristã (como eram as comunidades às quais se destinava o Evangelho segundo Mateus).

Qual terá sido essa problemática?
- Deve-se depreender do sentido da palavra grega porneia.

1)     Há quem a traduza por fornicação ou adultério; em conseqüência estaria dissolvido o casamento desde que uma das duas partes incorresse em adultério. É assim que pensam e ensinam as comunidades cristãs ortodoxas orientais e as protestantes. Todavia observe-se que fornicação ou adultério suporia, em grego, moichéia e não pornéia.

2)     Mais acertado é dizer que porneia corresponde ao aramaico zenut, que tinha o sentido de prostituição ou união ilegítima. Os rabinos chamavam zenut todo tipo de união incestuosa devida a um grau de parentesco tornado ilícito pela Lei de Moisés. Com efeito, o capítulo 18 do Levítico enumera, entre outros, os seguintes impedimentos matrimoniais:

“Não descobrirás a nudez da mulher do teu irmão, pois é a própria nudez de teu irmão” (Lv 18, 16). Isto é; o viúvo não se case com uma cunhada solteira.

“Não descobriras a nudez de uma mulher e de sua filha, não tomarás a filha do seu filho, nem a filha de sua filha, para lhes descobrir a nudez. Elas são a tua própria carne; isto seria um incesto” (Lv 18, 17).

Uniões desse tipo e outras enumeradas em Lv 18 podiam ser legalmente contraídas entre pagãos anteriormente à sua conversão ao Cristianismo. Uma vez feitos cristãos, tais fiéis de origem grega deviam suscitar dificuldades aos judeo-cristãos legalistas de suas comunidades cristãs. Daí a cláusula de Mt 5, 32s e 19, 9, que permitia dissolver tais uniões que a lei de Moisés considerava ilegítimas. Essa cláusula terá correspondido a uma decisão de comunidades compostas, em maioria, por judeo-cristãos, a fim de preservar a boa paz entre eles e os cristãos provenientes do paganismo. Deve ter tido vigência geográfica e cronologicamente limitada (enquanto houvesse tais judeo-cristãos legalistas na Igreja); assemelha-se às cláusulas de Tiago adotadas em caráter provisório pelo Concílio de Jerusalém em 49; cf. At 15, 23-29

Essa explicação de Mt 5, 32s e 19, 9, como se vê, não afeta o caráter indissolúvel do matrimônio tal como proposto por Jesus em Mc, Lc e 1Cor.

1.2.  A atual praxe da Igreja

É, pois, indissolúvel o matrimônio sacramental validamente contraído e carnalmente consumado. No casode séria problemática na vida conjugal, a Igreja admite que se faça uma revisão do processo matrimonial para averiguar se houve, na raiz do casamento, algum impedimento (falta de sanidade mental, erro de pessoa, pressão física ou moral…) que tenha tornado nulo o matrimônio; desde que se possa concluir que de fato o matrimônio foi contraído em condições de nulidade, a Igreja o declara; ela não anula o matrimônio. Mas declara que ele sempre foi nulo. As duas partes interessadas são tidas como solteiras.

A lista de impedimentos que tornam nulo o casamento, encontra-se em PR 373/1993, pp. 294ss.

Dispensa do Vínculo Natural

Há casos em que o matrimônio validamente contraído no plano natural é dissolvido pela Igreja em favor de um matrimônio sacramental. Examinemo-los. Com outras palavras: a Igreja não tem o poder de dissolver um casamento sacramental validamente contraído e consumado. Quando, porém, o matrimônio não é sacramental (é sustentado pelo vínculo natural apenas), a Igreja, em casos raros, pode dissolvê-lo em vista da fé ou de uma vivência matrimonial sacramental.

2.1. O Privilégio Paulino (cânones 1143-47).

Em 1Cor 7, 15 São Paulo considera o caso de dois pagãos unidos pelo vínculo natural; se um deles se converte à fé católica e o (a) consorte pagã(o) lhe torna difícil a vida conjugal, o Apóstolo autoriza a parte católica a separar-se para contrair novas núpcias, contanto que o faça com um irmão ou uma irmã na fé. Antes, porém, da separação, é necessário interpelar a parte não batizada, perguntando-lhe se quer receber o Batismo ou se, pelo menos, aceita coabitar pacificamente com a parte batizada, sem ofensas ao Criador. Isto se explica pelo fato de que, para o fiel católico, o matrimônio sacramental é obrigatório; ou ele o contrai com o cônjuge pagão ou, se este não o propicia, contrai-o com uma pessoa católica. Cf. cânones 1143-47.

2.2. O Privilégio Petrino (privilégio da fé); cf. cânones 1148-1150)

O privilégio da fé é como que uma extensão do anterior. Como dito, a Igreja não pode dissolver um casamento sacramental validamente contraído e consumado. Há, porém, uniões matrimoniais não sacramentais entre pessoas não batizadas. Suponhamos que alguma dessas uniões fracasse: em consequência, uma das duas partes (convertida ao Catolicismo ou não) quer contrair novas núpcias com uma pessoa católica, habilitada a receber o sacramento do matrimônio. Essa pessoa católica pode então recorrer à Santa Sé e pedir a dissolução do vínculo natural do(a) seu(sua) pretendente, assim como a eventual dispensa do impedimento de disparidade de culto (caso se trate de um judeu, um muçulmano, um budista…); realiza-se então a cerimônia do casamento católico. Está claro, porém, que os cônjuges que se separam, deverão prover à subsistência e à educação (católica, se possível) dos respectivos filhos.

O privilégio petrino ou da fé tem especial aplicação nos países em que vigora a poligamia. Se o homem não batizado que tenha simultaneamente várias esposas não batizadas, receber o Batismo na Igreja Católica, poderá escolher a mulher que preferir, e deverá casar-se com ela na Igreja (observadas as prescrições relativas a matrimônio de disparidade de culto, se for o caso). O mesmo vale para a mulher não batizada que tenha simultaneamente vários maridos não batizados. É evidente, porém, que o homem que se converte, tem que prover às necessidades das esposas afastadas, segundo as normas da justiça e da caridade; cf. cânon 1148.

Diz-se que a dissolução do vínculo natural em favor de um casamento sacramental se faz para o bem da fé (in bonum fidei), isto é, para permitir que ao menos um dos cônjuges (a parte católica) se possa casar de acordo com a sua fé ou na Igreja.

Dissolução do matrimônio não consumado (cânon 1142)

Diz o cânon 1142:

“O matrimônio não consumado entre batizados ou entre uma parte batizada e outra não batizada pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra se oponha”.

Este caso pode ocorrer; todavia não é fácil comprovar que não houve consumação carnal do matrimônio. O cânon nº 1061 observa que a consumação do matrimônio deve ser praticada humano modo, isto é, de modo livre e normal; na hipótese contrária, não se pode falar de consumação. A exigência de modo humano é muito oportuna, pois exclui os casos de inseminação artificial (mesmo que desta nasça uma criança); exclui também os casos em que a esposa é constrangida ou colhida num momento de transtorno mental provisório. Outrora julgava-se que o matrimônio estaria consumado e feito indissolúvel mesmo que a esposa, recusando por medo iniciar a vida sexual, fosse violentada.

Como se vê, a temática matrimônio é muito complexa. O que há de novo na legislação da Igreja datada de 1983, é a compreensão mais apurada do psiquismo humano e das suas potencialidades, como também dos seus limites. Este fator é importantíssimo, pois não se pode julgar o comportamento de alguém unicamente pelo seu foro externo. É decisivo o foro interno, que nem sempre transparece. Em conseqüência, verifica-se que muitos matrimônios outrora tidos como válidos hoje podem ser considerados nulos, porque faltaram ao(s) nubente(s) as condições psicológicas para contrair as obrigações matrimoniais.

Divorciados Recasados e Eucaristia

Tem-se colocado com insistência a questão: um casal de divorciados unidos apenas por um contrato civil não poderia receber os sacramentos, especialmente a Comunhão Eucarística? Multiplicam-se tais casos; as núpcias civis parecem levar dois interessados à harmonia de um autêntico casal vinculado por amor sincero. Por que lhes negar o acesso aos sacramentos?
Tal questionamento toca um ponto delicado da Moral Católica. Com efeito; o sacramento do matrimônio é indissolúvel; por isto qualquer nova união contraída por um dos cônjuges enquanto o outro ainda vive é tida como violação ilícita do vinculo  sacramental, violação que gera um estado de vida contrário à Lei de Deus e, por isto, não habilitado para receber a Eucaristia.

Para renovar a consciência desta doutrina frente à problemática contemporânea, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou aos 14 de setembro de 1994 uma “Carta dirigida aos Bispos da Igreja Católica a respeito da recepção da Comunhão Eucarística por parte de fiéis divorciados novamente casados”. Deste documento extraímos o seguinte trecho:

“Face às novas propostas pastorais acima mencionadas, esta Congregação considera, pois, seu dever reafirmar a doutrina e a disciplina da Igreja nesta matéria. Por fidelidade à palavra de Jesus Cristo,¹ a Igreja sustenta que não pode reconhecer como válida uma nova união, se o primeiro matrimônio foi válido. Se os divorciados se casam civilmente, ficam numa situação objetivamente contrária à lei de Deus.  Por isso, não podem aproximar-se da Comunhão Eucarística, enquanto persiste tal situação.

Esta norma não tem, de forma alguma, um caráter punitivo ou discriminatório para com os divorciados novamente casados, mas exprime antes uma situação objetiva que, por si, torna impossível o acesso à Comunhão Eucarística. Não podem ser admitidos, já que o seu estado e condições de vida contradizem objetivamente àquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio.

Para os fiéis que permanecem em tal situação matrimonial, o acesso à Comunhão Eucarística é aberto unicamente pela absolvição sacramental, que pode ser dada só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimônio. Isto tem como consequência, concretamente, que, quando o homem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar, assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos atos próprios dos cônjuges. Neste caso podem aproximar-se da Comunhão Eucarística, permanecendo firme todavia a obrigação de evitar o escândalo”.

Com outras palavras: os divorciados que vivem nova união não sacramental, podem ter acesso aos sacramentos, inclusive à Eucaristia, caso se disponham a viver sob o mesmo teto como irmão e irmã ou abstendo-se de relações sexuais. Desde que cumpram esta condição, procurem os sacramentos numa igreja em que não são conhecidos a fim de evitar mal-entendidos e escândalos por parte dos fiéis.

Em sua Exortação Apostólica Familiaris Consortio nº 84, o Papa João Paulo II, em tom muito pastoral, refere-se à problemática:

“Juntamente com o Sínodo exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a freqüentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor de justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança”.

A Igreja tem consciência de que a sua legislação relativa ao matrimônio é exigente; mas ela também sabe que, assim procedendo, ela está guardando fidelidade a Cristo e contribuindo para o bem da humanidade, já que a Ética não se decide pelo comportamento da maioria, mas tem princípios perenes, que garantem a dignidade e o verdadeiro bem-estar da humanidade.

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¹ Mc 10, 11-12: “Quem repudia sua mulher e casa com outra, comete adultério em relação à primeira, e, se uma mulher repudia seu marido e casa com outro, comete adultério”.

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Fonte: Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 473 – Ano 2001 – p. 453
Disponível em: Central Católica

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