As
tropas ultratradicionalistas não aguentam: o papa que veio do fim do mundo não
as agrada, nunca lhes agradou, para dizer a verdade, só que agora o ruído de
fundo, o descontentamento que se sentia como um rumor à distância, explodiu.
O papa não é católico, acusam elas, é quase um herege, melhor;
elas se aproximam, assim, das clássicas posições sedevacantistas dos
lefebrvianos, a Fraternidade São Pio X, que continua sendo, para muitos deles,
um ponto de referência.
O ponto de inflexão foi o Sínodo sobre a família ou, melhor, os
dois Sínodos: por muito tempo, a ala conservadora mais intransigente cultivou o
objetivo de frustrar o projeto reformista do papa que colocava fora de jogo a
doutrina concebida como ideologia: quem está em regra está dentro; todos os
outros estão fora. Nada de misericórdia, nada de amor de Deus, nada de
acolhida: portas fechadas, e não se fala mais disso.
Sobre essa linha se afiava o integralismo duro e piro que tinha
mais do que uma tonalidade púrpura nos sagrados palácios, embora certos
cardeais integralistas não usassem a linguagem agressiva e feroz de certos
grupos e sites da internet.
Por outro lado, um dos Padres sinodais, o arcebispo Tomash Peta,
de Astana (Cazaquistão), pertencente à corrente mais intransigente, foi até o
fim e disse sem rodeios – retomando uma célebre expressão de Paulo VI – que a
"fumaça de Satanás" entrou no Vaticano com o Sínodo e
"precisamente através da proposta de admitir à Sagrada Comunhão aqueles
que estão divorciados e vivem em uma nova união civil; a afirmação de que a
coabitação é uma união que pode ter em si mesma alguns valores; a abertura à
homossexualidade como algo dado como normal".
Não é de se admirar, então, que, nas profundezas da internet,
entre grupos e associações fundamentalistas, o papa se torna uma espécie de
anti-Cristo, um diabo que se infiltrou no topo da Igreja Católica; ambientes
marginais dos quais, no entanto, transparece um clima pesado, uma perigosa
agressividade mal reprimida.
Não devemos esquecer, contudo, que, se o extremismo religioso
católico está irritado com Bergoglio, os primeiros que lhe chamaram de
"comunista" foram os fanáticos do hiperliberalismo econômico dos EUA,
os líderes do Tea Party, as falanges republicanas aderentes ao cristianismo
evangélico com tempero fundamentalista, o do "Cinturão da Bíblia" que
se uniam aos ideólogos de Wall Street: que o papa cuide das almas, o
capitalismo financeiro em crise nestes anos turbulentos não pode ser tocado,
muito menos era tarefa do bispo de Roma falar de direitos sociais.
Em todo o caso, se uma oposição coerente ao papa não consegue
ganhar forma e parece estar bastante despedaçada e dividida, grupos e atitudes
diversas convergem, porém, em um mau humor crescente contra Francisco e os seus
colaboradores.
Só que essa revolta teve que fazer as contas com o imenso
consenso que acompanhava o papa argentino, de Manila ao Rio de Janeiro, onde
povos católicos inteiros, multidões de "descartados", de marginais
reencontravam um guia e uma referência em um mundo regulado pelo poder de uma
economia que não tinha – nas favelas filipinas e brasileiras – um rosto humano.
Além disso, é longa a lista das coisas que fazem com que os
grupos tradicionalistas se abalem: da crítica às finanças mundiais ao São
Francisco ecológico, do ataque contra a corrupção na Igreja ao pedido de
pastores "com o cheiro de ovelhas" – isto é, capazes de estar no meio
do povo –, da excomunhão direta aos mafiosos e, talvez especialmente, aos
muitos silêncios interiores de padres e bispos coniventes à reforma das finanças
vaticanas, passando pelo enfraquecimento da corte papal.
E depois houve a recusa de todo critério hierárquico nas
nomeações cardinalícias: a escolha não premiava mais dioceses poderosas e
carreiras construídas para chegar ao solidéu vermelho, mas homens da Igreja que
moram nos lugares complexos de um mundo real: da Birmânia à distante Tonga, de
Montevidéu a Agrigento.
A encíclica sobre o ambiente, além disso, mobilizou ao redor do
papa mundos que, antes, olhavam apenas com desconfiança para a Santa Sé, mas
particularmente aproximou à cúpula da Igreja depois de muito tempo uma miríade
de organizações católicas que, do Brasil à África, passando pela Austrália,
combateram com o Evangelho em mãos batalhas muitas vezes desesperadas para
defender territórios depredados e comunidades humanas despeçadas.
Assim, é o próprio Papa Francisco que descreve o modelo de
Igreja que ele tem em mente como uma pirâmide invertida, onde o povo de Deus –
conforme a definição do Concílio Vaticano II – é o protagonista e não mais o
purpurado da Cúria com o Código de Direito Canônico em mãos.
Por fim, chegou o tema principal, a família, em que Bergoglio
deu indicação, sem mudar a doutrina, de abrir as portas para todos:
divorciados, conviventes, mães solteiras, homossexuais. Não uma ausência de
regras, mas o retorno ao fundamento da fé cristã, o perdão e a acolhida. E,
sobre isso, começou uma batalha cultural crucial na Igreja.