Tentador falacioso e fatal do primeiro pecado,
o demônio continua hoje agindo com aleivosa astúcia. Ele é o inimigo oculto que
semeia erros e desventuras na história humana. Quais são, atualmente, as maiores
dificuldades da Igreja? Não vos cause espanto nossa resposta, como simplista ou
mesmo como supersticiosa e irreal: uma das maiores necessidades é a defesa
contra aquele mal que denominamos demônio. [...]
Realidade terrível, misteriosa e assustadora
“Atualmente, quais são as maiores
necessidades da Igreja? Não deveis considerar a nossa resposta simplista, ou
até supersticiosa e irreal: uma das maiores necessidades é a defesa daquele
mal, a que chamamos Demônio”. Antes de esclarecermos o nosso pensamento,
convidamos o vosso a abrir-se à luz da fé sobre a visão da vida humana, visão
que, deste observatório, se alarga imensamente e penetra em singulares
profundidades. E, para dizer a verdade, o quadro que somos convidados a
contemplar com realismo global é muito lindo. É o quadro da criação, a obra de
Deus, que o próprio Deus, como espelho exterior da sua sabedoria e do Seu
poder, admirou na sua beleza substancial (cf. Gn 1, 10 ss.). Além disso, é
muito interessante o quadro da história dramática da humanidade, da qual emerge
a da redenção, a de Cristo, da nossa salvação, com os seus magníficos tesouros
de revelação, de profecia, de santidade, de vida elevada a nível sobrenatural,
de promessas eternas (cf. Ef 1, 10). Se soubermos contemplar este quadro, não
poderemos deixar de ficar encantados (Santo Agostinho, Solilóquios); tudo tem
um sentido, tudo tem um fim, tudo tem uma ordem e tudo deixa entrever uma
Presença-Transcendência, um Pensamento, uma Vida e, finalmente, um Amor, de tal
modo que o universo, por aquilo que é e por aquilo que não é, se apresenta como
uma preparação entusiasmante e inebriante para alguma coisa ainda mais bela e
mais perfeita (cf. 1Cor 2, 9; Rm 8, 19-23). A visão cristã do cosmo e da vida
é, portanto, triunfalmente otimista; e esta visão justifica a nossa alegria e o
nosso reconhecimento pela vida, motivo por que, celebrando a glória de Deus,
cantamos a nossa felicidade.
Ensinamento Bíblico
Esta visão, porém, é completa, é exata? Não nos importamos, porventura com as
deficiências que se encontram no mundo, com o comportamento anormal das coisas
em relação à nossa existência, com a dor, com a morte, com a maldade, com a
crueldade, com o pecado, numa palavra, com o mal? E não vemos quanto mal existe
no mundo especialmente quanto à moral, ou seja, contra o homem e,
simultaneamente, embora de modo diverso, contra Deus? Não constitui isto um
triste espetáculo, um mistério inexplicável? E não somos nós, exatamente nós,
cultores do Verbo, os cantores do Bem, nós crentes, os mais sensíveis, os mais
perturbados, perante a observação e a prática do mal? Encontramo-lo no reino da
natureza, onde muitas das suas manifestações, segundo nos parece, denunciam a
desordem. Depois, encontramo-lo no âmbito humano, onde se manifestam a
fraqueza, a fragilidade, a dor, a morte, e ainda coisas piores; observa-se uma
dupla lei contrastante, que, por um lado, quereria o bem, e, por outro, se
inclina para o mal, tormento este que São Paulo põe em humilde evidência para
demonstrar a necessidade e a felicidade de uma graça salvadora, ou seja, da
salvação trazida por Cristo (Rm 7); já o poeta pagão Ovídio tinha denunciado
este conflito interior no próprio coração do homem: “Video meliora proboque,
deteriora sequor” (Ovídio Met.7, 19). Encontramos o pecado, perversão da
liberdade humana e causa profunda da morte, porque é um afastamento de Deus,
fonte da vida (cf. Rm 5, 12) e, também, a ocasião e o efeito de uma
intervenção, em nós e no nosso mundo, de um agente obscuro e inimigo, o
Demônio. O mal já não é apenas uma deficiência, mas uma eficiência, um ser
vivo, espiritual, pervertido e perversor. Trata-se de uma realidade terrível,
misteriosa e medonha. Sai do âmbito dos ensinamentos bíblicos e eclesiásticos
quem se recusa a reconhecer a existência desta realidade; ou melhor, quem faz
dela um princípio em si mesmo, como se não tivesse, como todas as criaturas,
origem em Deus, ou a explica como uma pseudo-realidade, como uma personificação
conceitual e fantástica das causas desconhecidas das nossas desgraças. O
problema do mal, visto na sua complexidade em relação à nossa racionalidade,
torna-se uma obsessão. Constituí a maior dificuldade para a nossa compreensão
religiosa do cosmo. Foi por isso que Santo Agostinho penou durante vários anos:
“Quaerebam unde malum, et non erat exitus”, procurava de onde vinha o mal e não
encontrava a explicação (Confissões, VII,5 ss). Vejamos, então, a
importância que adquire a advertência do mal para a nossa justa concepção; é o
próprio Cristo quem nos faz sentir esta importância. Primeiro, no
desenvolvimento da história, haverá quem não recorde a página, tão densa de
significado, da tríplice tentação? E ainda, em muitos episódios evangélicos,
nos quais o Demônio se encontra com o Senhor e aparece nos seus ensinamentos
(cf. Mt 1, 43)? E como não haveríamos de recordar que Jesus Cristo,
referindo-se três vezes ao Demônio como seu adversário, o qualifica como
“príncipe deste mundo” (Jo 12, 31; 14, 30; 16, 11)? E a ameaça desta nociva
presença é indicada em muitas passagens do Novo Testamento. São Paulo chama-lhe
“deus deste mundo” (2Cor 4, 4) e previne-nos contra as lutas ocultas, que nós
cristãos devemos travar não só com o Demônio, mas com a sua tremenda
pluralidade: “Revesti-vos da armadura de Deus para que possais resistir às
ciladas do Demônio. Porque nós não temos de lutar (só) contra a carne e o
sangue, mas contra os Principados, contra os Dominadores deste mundo tenebroso,
contra os Espíritos malignos espalhados pelos ares” (Ef 6, 11-12). Diversas passagens
do Evangelho dizem-nos que não se trata de um só demônio, mas de muitos (cf. Lc
11, 21; Mc 5, 9), um dos quais é o principal: Satanás, que significa o
adversário, o inimigo; e, ao lado dele, estão muitos outros, todos criaturas de
Deus, mas decaídas, porque rebeldes e condenadas; constituem um mundo
misterioso transformado por um drama muito infeliz, do qual conhecemos pouco
(cf. DS 800).