Celebrando a Solenidade de Todos os Santos de
Deus, comungamos com aqueles que já se encontram na casa do Pai e vivem em
plenitude as bem-aventuranças. Nós também somos proclamados felizes, porque
formamos a grande família de Deus e procuramos seguir a multidão dos que nos
deixaram exemplo de fidelidade e amor. Encontramos em cada um dos santos e das
santas um mesmo perfil. Poderíamos mesmo desenhar o seu retrato-robô comum. Por
muito frequentarem Cristo, deixaram-se modelar pelos seus traços.
Somente Deus é santo! A ele toda a glória e
adoração! É isso que nós dizemos em cada celebração eucarística: Santo, Santo,
Santo! Desta maneira nós celebramos a transcendência de Deus, que está acima de
tudo e do qual tudo depende. Diante do Deus Santo e, neste sentido, do
Totalmente Outro, a nossa proclamação acaba por emudecer-se, pois diante dele
cessam as palavras humanas: “à medida que nos aproximamos do cimo, as nossas
palavras diminuirão e, no final da subida a essa montanha, nós estaremos
totalmente mudos e plenamente unidos ao Inefável” (Pseudo-Dionísio Areopagita,
Teologia Mística, c. 3).
Não obstante, Deus quis fazer-nos
participantes da sua santidade. Por seu desígnio salvador, nós fomos consagrados
no momento do nosso batismo e nos aproximamos da montanha da santidade. A
partir daquele momento, a santidade para nós pode ser descrita como um processo
no qual confluem a graça de Deus e a generosa correspondência humana. Neste
processo tem lugar uma luta constante na qual um filho de Deus vai se parecendo
cada vez mais com o seu Pai-Deus à espera que um dia se manifeste a plena
semelhança com a divindade no próprio ser da criatura.
A santidade é acessível a todos porque Deus
quer que todos os homens e mulheres sejam santos, isto é, participem da sua
Vida e do seu Amor. O Pai deseja que, através da ação do Espírito Santo em nós,
nos pareçamos cada vez mais com o seu Filho Jesus Cristo. Em resumo, a santidade
é o desenvolvimento da nossa filiação divina: “desde agora somos filhos de
Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que quando isto
se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como ele é” (1
Jo 3,2).
Como Jesus, os santos tiveram que viver muitas
vezes em sentido contrário às ideias recebidas e aos comportamentos do seu
tempo. Viver as Bem-aventuranças não é evidente: ser pobre de coração num mundo
que glorifica o poder e o ter; ser suave num mundo duro e violento; ter o
coração puro face à corrupção; fazer a paz quando outros declaram a guerra…
Os santos foram pessoas “em marcha” (segundo
uma tradução judaizante de “bem-aventurado”), isto é, pessoas ativas,
apaixonadas pelo Evangelho… Os santos foram homens e mulheres corajosos,
capazes de reagir e de afirmar a todo o custo aquilo que os fazia viver. Eles
mostram-nos o caminho da verdade e da liberdade.
Aqueles que frequentaram os santos – aqueles
que os frequentam hoje – afirmam que, junto deles, sentimos que nos tornamos
melhores. O seu exemplo ilumina. A sua alegria é o seu testemunho mais belo. A
sua felicidade é contagiosa.
As três leituras da solenidade de Todos os
Santos nos apresentam um fato: Deus, o Santo, quer fazer de nós imagens suas. A
santidade não é uma realidade só para alguns, mas para todos. Não é um tema
simplesmente da vida privada, mas, envolvendo nosso ser mais pessoal, faz parte
de nosso testemunho diante do mundo. Ela também não é algo a ser vivido só na
outra vida, mas começa agora o que depois se plenificará.
Comentário dos textos bíblicos
Leituras: Ap
7,2-4.9-14; 1Jo 3,1-3; Mt 5,1-12a;
Na primeira cena da leitura de hoje, do livro
do Apocalipse, vemos os fiéis em meio a grandes provações. Sem livrá-los das
dificuldades, Deus, intervém em seu favor. Eles são marcados com “o selo do
Deus vivo”, identificados como “servos de Deus” (v. 3). A marca que recebem é o
batismo, que, na comunidade cristã primitiva, muitas vezes aparece na imagem do
“selo” (cf. 2Cor 1,21-22). Ele faz do cristão propriedade de Deus e, por isso,
é sinal que protege do juízo escatológico. Dessa forma, já agora pertencem a
Deus e depois chegarão à glória de Deus, estarão de pé diante de seu trono (v.
9).
Em seguida, o texto apresenta a visão dos
eleitos no céu, aqueles marcados com o selo (v. 9-14). Eles são incontáveis
(cf. Gn 15,5: a promessa a Abraão), num número de grandeza incomparável (12 x
12 x 1.000, v. 4), e provêm de todas as partes do mundo. São admitidos onde
antes estavam só os anciãos e os quatro seres vivos: à presença de Deus (cf. Ap
5,6-8). Portam vestes brancas, a vida nova na qual entraram pelo batismo e que
se plenifica na glória celeste. E têm nas mãos palmas, símbolo da vitória (v.
9). Foram purificados pelo batismo, no qual se torna realidade a força
salvadora da cruz, e, passando pela provação, a venceram (v. 13-14).
Por isso participam da liturgia celeste. O
hino que cantam proclama Deus e o Cordeiro como autores da sua salvação (v.
10). O batismo, a força de vencer as provações, tudo eles receberam da graça de
Deus. A eles se juntam os anjos, os anciãos e os quatro seres vivos, que cantam
a glória e a majestade de Deus (v. 11-12).
Dessa forma, em duas cenas, uma terrestre (v.
2-4) e outra celeste (v. 9-14), o Apocalipse abre a realidade da ação salvadora
de Deus, que já nesta história santifica os seres humanos e os guia para a meta
última, a glória, na qual participarão da liturgia que não terá fim.
A segunda leitura mostra que a vida do cristão
transcorre entre dois momentos: o agora e o que virá. O primeiro momento (v. 2)
já é marcado pela realidade transcendente: somos realmente filhos de Deus. No
Antigo Testamento, o povo de Israel aparece, embora raramente, como filho de
Deus, mas num sentido simbólico, para indicar a estreita relação de pertença a
Deus (cf. Os 11,1) e a realidade de ser obra das mãos de Deus, que é o Criador
e aquele que formou o povo eleito (cf. Is 64,7; 63,16). No Novo Testamento, não
se trata de um símbolo, mas de uma realidade. O único Filho de Deus, Deus como
Deus, fez-se humano. E por sua obra redentora (cruz-ressurreição) deu-nos real
participação na sua vida de Filho. Isso começa em nós pelo batismo. Essa
realidade encontra-se, contudo, marcada pelos limites da história (geral e
pessoal).
O segundo momento é a vinda futura do Filho de
Deus. Então aquilo que já somos (filhos) será levado à plenitude. Quando
encontramos alguém que amamos e que nos ama, nosso semblante se ilumina.
Sorrimos, falamos… com confiança diante de um amigo. Quando encontrarmos a
Deus, sua divina face iluminará a nossa face. Nosso “semblante” será iluminado.
Resplandecerá em nós seu amor, sua divina Pessoa… Nossa semelhança com ele
chegará ao ápice.
Essa esperança deve guiar nossa vida, dando-nos
força e motivos para permanecermos fiéis, trazendo às categorias, valores e
estruturas de nossas sociedades, que tantas vezes rejeitam o evangelho, a
interpelação que vem de Deus. Assim, o cristão não só se santifica, mas
santifica a história.
As bem-aventuranças são palavras que ensinam
os discípulos, anunciando-lhes promessas e mostrando-lhes o caminho do
seguimento de Jesus. Indicam a subversão dos critérios do mundo: os que são
considerados como nada são ditos felizes. Trata-se de uma felicidade de outra
dimensão, onde o cristão se alegra não obstante os sofrimentos (v. 12:
“alegrai-vos!”). As bem-aventuranças são, assim, imagem da nova ordem, do mundo
novo, do Reino que Jesus inaugura e que já se inicia agora; são também retrato
do próprio Jesus: ele é o primeiro a ser pobre em espírito, manso,
misericordioso… E, com isso, elas são orientação para os discípulos.
Os santos viveram essa assimilação à pessoa de
Jesus. São hoje bem-aventurados no céu, mas já começaram, pela vivência
cotidiana dos valores das bem-aventuranças, a sê-lo nesta terra. A vida segundo
o evangelho não é uma vida tristonha, revoltada, mas já nos faz, aqui e agora,
saborear a bem-aventurança celeste. Quem está com Jesus já participa, na sua
vida concreta, da bem-aventurança prometida.
Não se trata, porém, de simples divisão: um é
santo, e o outro, pecador. Embora não se possa negar fundamentalmente essa
diferença, a santidade da Igreja é realidade que se verifica no interior de
cada um. Cada um pode ter em si algo da santidade e algo do pecado. A Igreja é
santa naquilo que, no coração de cada fiel, é orientado pelo amor que provém de
Deus, leva a Deus e à dedicação sem limites aos irmãos.
Bem-aventurados são, primeiramente, os “pobres
em espírito”. Não se trata nem de pobreza unicamente material nem de pobreza
puramente espiritual. Trata-se de saber renunciar às riquezas materiais,
usando-as para o bem comum, com a liberdade interior que provém dos imperativos
do evangelho. Isso é impulso para que a justiça social aconteça na sociedade. A
Igreja, os cristãos, vivendo essa pobreza evangélica, tornam-se sinais do mundo
novo.
Essa atitude se expressa também na mansidão,
que, não se impondo com prepotência, mas sendo vivida em espírito de serviço,
terá sua recompensa na outra terra. E naqueles que, aflitos, resistem ao mal
sem fazer o mal e agem, com esperança em Deus, em favor do restabelecimento da
ordem querida por ele. Não se desesperam porque esperam a consolação que não
vem da justiça humana, mas de Deus. A eles estão ligados os que têm fome e sede
de justiça, aqueles que sofrem sem verem seus direitos respeitados, mas têm já
a certeza daquela justiça que nunca falhará.
Os misericordiosos são bem-aventurados porque
deixam transbordar da riqueza de seu coração algo que os faz, talvez sem se dar
conta, imagem da infinita misericórdia de Deus, a eles reservada. Os puros são
aqueles que podem estar diante de Deus sem máscaras, pois nada têm a esconder.
Mesmo se encantando com os valores deste mundo, sabem que só vale aquilo que
traz o reflexo de Deus; e, assim, elevam tudo para Deus. Os que promovem a paz
são os que vivem a reconciliação, que começa com Deus e, daí, deve se expandir
aos relacionamentos e estruturas humanas.
Por fim, bem-aventurados são os perseguidos
por causa da justiça, que mantêm as medidas justas e não se dobram perante
medidas injustas. São, assim, sinal de contradição e se tornam um desafio e
mesmo uma acusação. Por isso lhes advém a mesma sorte de Jesus: o desprezo e
até o ódio.
Na versão do Evangelho de Lucas, Jesus
pronuncia as bem-aventuranças “erguendo os olhos para seus discípulos” e
dizendo: “Bem-aventurados vós, os pobres… Vós, que agora tendes fome… Vós que
agora chorais… Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem…” (Lc
6,20-23). É como se Jesus já visse neles realizado algo da beleza das
bem-aventuranças. As bem-aventuranças não são uma teoria, mas se realizam já
neste mundo. Assim, não se deve ler as bem-aventuranças sem olhar para tantos
que já agora são puros, santos, honestos… A Igreja é santa nos céus, mas o é
também naqueles que, já aqui, se deixam guiar pela vivência radical do
evangelho. Todos esses que procuram viver o evangelho celebram, com os santos
canonizados, a festa de Todos os Santos. E podem alegrar-se e exultar porque,
pela graça, terão grande recompensa em Deus (cf. Mt 5,12).
Para Refletir
Hoje, a Igreja volta seu olhar e seu coração
para o céu e enche-se de alegria ao contemplar uma multidão que participa da
glória e da plenitude do Deus Santo.
A nossa fé nos ensina que somente Deus é
Santo. Na Bíblia, “santo” significa, literalmente, “separado”. Deus é aquele
que é separado, absolutamente diferente de tudo quanto exista no céu e na
terra: Ele é único, Ele é absoluto, Ele sozinho se basta, sozinho é pleno,
sozinho é infinitamente feliz. Ele é Deus! Por isso, Santo, em sentido
absoluto, é somente o Deus uno e trino, Pai, Filho e Espírito Santo. A Jesus, o
Filho eterno feito homem, nós proclamamos em cada missa: “Só vós sois o Santo”;
ao Pai nós dizemos: “Na verdade, ó Pai, vós sois Santo e fonte de toda
santidade”; ao Espírito nós chamamos de Santo.
Mas, a nossa fé também nos ensina que este
Deus santo e pleno, dobra-se carinhosamente sobre a humanidade – sobre cada um
de nós – para nos dar a sua própria vida, para nos fazer participantes de sua
própria plenitude, sua própria santidade. Foi assim que o Pai, cheio de imenso
amor, enviou-nos seu Filho único até nós, e este, morto e ressuscitado,
infundiu no mais íntimo de nós e de toda a Igreja o seu Espírito de santidade.
Eis, quanta misericórdia: Deus, o único Santo, nos santifica pelo Filho no
Espírito: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: sermos chamados
filhos de Deus! E nós o somos!” É isto a santidade para nós: participar da vida
do próprio Deus, sermos separados, consagrados por ele e para ele desde o nosso
Batismo, para vivermos sua própria vida, vida de filhos no Filho Jesus! É assim
que todo cristão é um santificado, um separado para Deus. Mas, esta santidade
que já possuímos deve, contudo, aparecer no nosso modo de viver, nas nossas
ações e atitudes. E o modelo de toda santidade é Jesus, o Bem-aventurado. Ele,
o Filho, foi totalmente aberto para o Pai no Espírito Santo e, por isso, foi
totalmente pobre, totalmente manso, totalmente puro e abandonado a Deus no
pranto, na fome de justiça e na misericórdia. Então, ser santo, é ser como
Jesus, deixando-se guiar e transformar pelo seu Espírito em direção ao Pai.
Esta santidade é um processo que dura a vida toda e somente será pleno na glória.
São João nos fala disso na segunda leitura de hoje: “Quando Cristo se
manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é”.
Nesta perspectiva, podemos contemplar a
estupenda leitura do Apocalipse que escutamos como primeira leitura. O que se
vê aí? Uma multidão. Primeiro, cento e quarenta e quatro mil de todas as tribos
de Israel. Isto simboliza todo o Israel. Recordemos: 12 é o número do Povo do
Antigo Testamento. Pois bem, cento e quarenta e quatro mil equivale a 12 x 12 x
1000, isto é, à totalidade de Israel. Deus não se cansou de chamar o povo da
antiga aliança: Israel haverá de ser salvo pelo sangue de Cristo. Mas, há ainda
mais: “Depois disso, vi uma multidão imensa de gente de todas as nações,
tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do
trono e do Cordeiro”. Essa multidão são todos os povos da terra, chamados por
Cristo, na Igreja, para a salvação, para a santificação que Deus nos oferece.
Notemos bem: “uma multidão que ninguém podia contar”. A salvação é para todos,
a santidade não é para um grupinho de eleitos, para uma elite espiritual. Todos
são chamados a essa vida divina que Deus quer partilhar conosco, todos são
chamados à santidade! “Trajavam vestes brancas e traziam palmas nas mãos. São os
que vieram da grande tribulação e lavaram e alvejaram suas vestes no sangue do
Cordeiro”. Eis quem são os santos: aqueles que atravessaram as lutas desta
vida, as tribulações desta nossa pobre existência, unidos a Cristo; são os que
venceram em Cristo – por isso trazem a palma da vitória; são os que não tiveram
medo de viver e, se caíram, se erraram, foram, humildemente, lavando e
alvejando suas vestes no sangue precioso de Cristo: são santos não com sua
própria santidade, mas com a santidade do Cristo-Deus. Nunca esqueçamos:
ninguém é santo com suas forças, ninguém é santo por sua própria santidade: só
em Cristo somos santificados, pois somente Cristo derrama sobre nós o Espírito
de santidade. O nosso único trabalho é lutar para acolher esse Espírito, deixando-nos
guiar por ele e por ele sermos transfigurados em Cristo!
Olhemos para o céu: lá estão Pedro e Paulo, lá
estão os Doze, lá estão os mártires de Cristo, os santos pastores e doutores,
lá estão as santas virgens e os santos homens, lá estão tantos e tantos – uns,
conhecidos e reconhecidos pela Igreja publicamente, outros, cujo nome somente
Deus conhece; lá está a Santíssima e Bem-aventurada sempre Virgem Maria, Mãe e
discípula perfeita do Cristo, toda plena do Espírito, toda obediente ao Pai.
Eles chegaram lá, eles intercedem por nós, eles são nossos modelos, eles nos
esperam.
Num mundo que vive estressado, que corre sem
saber para onde… num mundo que já não crê nos verdadeiros valores, porque já
não crê em Deus, contemplar hoje todos os santos é recordar para onde vamos e
qual é o sentido da nossa vida! Não tenhamos medo de ser de Deus, não tenhamos
medo de testemunhar o Evangelho, não tenhamos medo de alimentar nossa visa com
o Cristo, na sua Palavra e na sua Eucaristia para sermos inebriados da vida do
próprio Deus.
Infelizmente, muitos hoje têm como heróis os
atletas, os atores, os cantores e tantos outros que não têm muito e até nada
para ensinar. Quanto a nós, que nossos heróis e modelos sejam os santos e
santas de Cristo, que foram heróis porque se venceram e correram para o Cristo!
Que eles roguem por nós, pois o que eles foram, nós somos e o que eles são,
todos nós somos chamados a ser.
Todos os Santos e Santas de Deus, rogai por nós!
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