“MANIFESTOU-SE A JUSTIÇA DE DEUS”
Como fazer do V centenário da Reforma protestante
uma ocasião de graça e de reconciliação para toda a Igreja
1. As origens da Reforma protestante
O Espírito Santo que – vimos nas meditações anteriores – nos insere na plena verdade da pessoa de Cristo e no seu mistério pascal, nos ilumina também sobre um aspecto crucial da nossa fé em Cristo, ou seja, sobre a maneira pela qual a salvação alcançada por ele chega a nós hoje na Igreja. Em outras palavras, sobre o grande problema da justificação do homem pecador por meio da fé. Acredito que tentar lançar luz sobre a história e sobre o estado atual deste debate seja a melhor forma para fazer do acontecimento do V centenário da Reforma protestante uma ocasião de graça e de reconciliação para toda a Igreja.
Não podemos deixar de ler todo o trecho da Carta aos Romanos, sobre o qual este debate está concentrado. Diz:
“21Agora, porém, independentemente da Lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas, 22justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que creem – pois não há diferença, 23visto que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus – 24e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus: 25Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé. Ele queria assim manifestar sua justiça, pelo fato de ter deixado sem punição os pecados de outrora, 26no tempo da paciência de Deus; ele queria manifestar sua justiça no tempo presente para mostrar-se justo e para justificar aquele que apela para a fé em Jesus. 27Onde está, então, o motivo de glória? Fica excluído. Em força de que lei? A das obras? De modo algum, mas em força da lei da fé. 28Porquanto nós sustentamos que o homem é justificado pela fé, sem a prática da Lei”
Como foi possível que esta mensagem tão consoladora e luminosa tenha se tornado o pomo da discórdia no seio do cristianismo ocidental, dividindo a Igreja e a Europa em dois continentes religiosos diferentes? Ainda hoje, na pessoa religiosa mediana, em certos países do Norte da Europa, tal doutrina é o divisor de águas entre catolicismo e protestantismo. Eu mesmo ouvi de vários fieis leigos luteranos a pergunta: “Você crê na justificação pela fé?”, como a condição para poder ouvir aquilo que eu dizia. Esta doutrina é definida pelos próprios iniciadores da Reforma “o artigo com o qual a Igreja está em pé ou cai” (articulus stantis et cadentis Ecclesiae).
Devemos remontar à famosa “experiência da torre” de Martinho Lutero que teve lugar nos anos de 1511 ou 1512. (Tem essa denominação porque se pensa que ocorreu em uma cela do convento agostiniano de Wittenberg chamado de “a Torre”). Lutero estava angustiado, quase em nível de desespero e ressentimento para com Deus, por causa do fato de que com todas as suas práticas religiosas e penitências ele não conseguisse sentir-se acolhido e em paz com Deus. Foi aqui que, de repente, apareceu de súbito em sua mente a palavra de Paulo em Romanos 1, 17: “O justo vive pela fé”. Foi uma libertação. Ele próprio, narrando sua experiência, próximo à sua morte, escreveu: “Quando descobri isso, me senti renascer e pareceu-me que se escancaravam para mim as portas do paraíso1”.
Precisamente, alguns historiadores luteranos datam este momento, ou seja, alguns anos antes do 1517, como o verdadeiro começo da Reforma. A ocasião que transformou esta experiência interior em uma verdadeira e real avalanche religiosa foi o incidente das indulgências que fez Lutero se decidir a afixar as famosas 95 teses na Igreja do Castelo de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517. É importante notar esta sucessão histórica dos fatos. Ela nos diz que a tese da justificação pela fé e não pelas obras, não foi o resultado da polêmica com a Igreja da época, mas a sua causa. Foi uma verdadeira iluminação do alto, uma “experiência Erlebnis, tal como foi definida por ele próprio.
Surge espontaneamente uma pergunta: como podemos explicar o terremoto causado pela tomada de posição de Lutero? O que havia nessa decisão de tão revolucionário? Santo Agostinho tinha dado, da expressão “justiça de Deus”, a mesma explicação de Lutero muitos séculos antes. “A justiça de Deus (justitia Dei) – tinha escrito – é aquela através da qual, pela sua graça, nos tornamos justos, exatamente como a salvação de Deus (salus Dei) (Sal 3,9) é aquela pela qual Deus nos salva2”.
São Gregório Magno tinha dito: “Não se vai das virtudes à fé, mas da fé às virtudes3”. E São Bernardo: “Eu, aquilo que não posso alcançar por mim mesmo, me aproprio (usurpo!) com confiança do lado trespassado do Senhor, porque é cheio de misericórdia. […] E o que sobra da minha justiça? Oh, Senhor, lembrar-me-ei somente da tua justiça. De fato, ela é também a minha, porque tu es para mim justiça da parte de Deus (cf. 1 Cor 1, 30)4“. S. Tomas de Aquino foi ainda mais longe. Comentando a sentença paulina “a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2 Cor 3,6), ele escreveu que por letra entendem-se também os preceitos morais do evangelho, pelos quais “também a letra do Evangelho mataria, se não se acrescentasse, dentro, a graça da fé que cura5”.
O Concílio de Trento, convocado em resposta à Reforma, não encontra dificuldade em reafirmar esta convicção do primado da fé e da graça, embora considerando (como, aliás, fará todo o ramo da Reforma encabeçada por Calvino) as obras e a observância da lei, necessárias no contexto de todo o processo da salvação, segundo a fórmula paulina da “fé que opera pela caridade” (“fides quae per caritatem operatur”) (Gal 5,6)6. Fica assim explicado como, no novo clima de diálogo ecumênico, tenha sido possível chegar à declaração conjunta da Igreja Católica e da Federação mundial das Igrejas Luteranas, sobre a justificação pela graça mediante a fé, assinada no dia 31 de Outubro de 1999, na qual se reconhece um acordo fundamental, embora não total, sobre tal doutrina.
Então, a Reforma Protestante foi um caso de “muito barulho por nada”? Fruto de um equívoco? Devemos responder com firmeza: não! É verdade que o magistério da Igreja não tinha anulado nunca as decisões tomadas nos concílios anteriores (especialmente contra os Pelagianos); nunca negou o que havia escrito Agostinho, Gregório, Bernardo, Tomás de Aquino. As revoluções, no entanto, não surgem pelas ideias ou pelas teorias abstratas, mas por situações históricas concretas, e a situação da Igreja, há tempo, não refletia realmente aquelas convicções. A vida, a catequese, a piedade cristã, a direção espiritual, por não falar depois da pregação popular: tudo parecia afirmar o contrário, ou seja, que o que conta são as obras, o esforço humano. Além disso, por “boas obras” não se entendiam no geral aquelas enumeradas por Jesus em Mateus 25, sem as quais, diz ele próprio, não se entra no reino dos céus; entendiam-se, ao invés, peregrinações, velas votivas, novenas, ofertas à Igreja e, como contrapartida a estas coisas, as indulgências.
O fenômeno tinha raízes profundas comuns a todo o cristianismo e não só ao latino. Depois que o cristianismo se tornou religião do Estado, a fé era absorvida naturalmente através da família, da escola, da sociedade. Não era tão importante insistir no momento em que se chega à fé e na decisão pessoal com a qual se torna crentes, mas insistir nas exigências práticas da fé, em outras palavras, na moral, nos costumes.
Um sinal indicador desta mudança de interesse é indicado por Henri de Lubac em sua História da exegese medieval. Na fase mais adiantada, a ordem dos quatro sentidos da Escritura era: sentido histórico literal, sentido cristológico ou de fé, sentido moral e sentido escatológico7. Cada vez mais, esta ordem é substituída por uma diferente na qual o senso moral é anterior ao cristológico ou de fé. Antes do “em que acreditar”, se coloca o “o que fazer.” O dever vem antes do dom. Na vida espiritual, se pensava, em primeiro lugar há o caminho da purificação, em seguida, o da iluminação e da união8. Sem perceber, se dizia exatamente o oposto do que havia escrito São Gregório Magno, ou seja, que “não chega das virtudes à fé, mas da fé às virtudes”.