Este artigo, assim mesmo intitulado pelo próprio Autor e do qual apresento abaixo a tradução em português, apareceu no blog Settimo Cielo, no dia 13 de Abril passado, sob um outro provocador título dado por Sandro Magister: La riforma di Bergoglio l'ha già scritta Martin Lutero / A reforma de Bergoglio já a escreveu Martinho Lutero [1].
O Autor é Roberto Pertici: tem sessenta e seis anos de idade e é actualmente professor de história contemporânea na Universidade de Bergamo [2]. Um académico exactamente da minha idade; o que, pela contemporaneidade da vida, me ajudou à melhor compreensão deste ensaio.
Este, é de facto notável e algo invulgar pela «agudeza e amplitude de horizonte da análise», como diz Magister, e pela lógica do raciocínio que conjuga os factos examinados, relevando a sua unitária coerência com um “projecto” ou “operação”.
Para quem partilhe de uma visão conservadora ou tradicional da Igreja, parece-me obviamente muito perturbador.... mas há que ter presente que a Fé católica e apostólica não se conjuga jamais com qualquer espécie de desespero!
As notas assinaladas entre […], são todas da minha autoria.
22 de Abril de 2018
João Duarte Bleck, médico e leigo Católico
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1. Neste momento do pontificado de Francisco, creio que se possa razoavelmente sustentar que este marca o ocaso dessa imponente realidade histórica definível como “catolicismo romano”.
Isto não significa, bem entendido, que a Igreja Católica esteja no fim, mas que está a chegar ao fim o modo como historicamente se estruturou e se apresentou a si mesma nos últimos séculos.
De facto, parece-me evidente que é este o projecto conscientemente seguido pelo “brain trust” que rodeia Francisco: um projecto que se pretende quer uma resposta extrema / radical à crise das relações entre a Igreja e o mundo moderno, quer como premissa para um renovado percurso ecumênico, comum às outras confissões cristãs, especialmente aquelas Protestantes.
2. Por “catolicismo romano” entendo aquela grande construção histórica, teológica e jurídica que se iniciou com a helenização (para o aspecto filosófico) e com a romanização (para o aspecto político-jurídico) do cristianismo primitivo e que se baseia sobre o primado dos sucessores de Pedro; tal como ela emerge da crise do mundo tardo-antigo e da sistematização teórica da idade gregoriana (“Dictatus Papae”) [3].
Nos séculos sucessivos, a Igreja, do mesmo modo, dotou-se de um Direito interno próprio, o Direito canónico, olhando para o Direito romano como modelo. E este elemento jurídico contribuiu para gradualmente plasmar uma complexa organização hierárquica, com precisas normas internas que regulam a vida, seja da “burocracia dos celibatários” (a expressão é de Carl Schmitt [1888-1985]) que a gere, seja dos leigos que dela fazem parte.
O outro momento decisivo da formação do “catolicismo romano” é, finalmente, a eclesiologia elaborada no Concílio de Trento [1545-1563], que reafirmou a centralidade da mediação eclesiástica em vista da salvação, em contraste com a tese luterana do “sacerdócio universal”, e que assim fixa o carácter hierárquico, unitário e centralizado da Igreja; o seu direito de controlar e, caso ocorra, condenar as posições que contrastem com a formulação ortodoxa das verdades de fé; o seu papel na administração dos sacramentos.
Esta eclesiologia foi selada no dogma da infalibilidade pontifícia proclamado no Concílio Vaticano I [1869-1870], colocado à prova oitenta anos depois, na afirmação dogmática da Assunção de Maria ao Céu (1950), a qual, juntamente com a precedente proclamação dogmática da sua Imaculada Conceição (1854), reafirma a centralidade do culto mariano.
Seria, todavia, redutor se nos limitássemos a quanto dissemos até agora. Porque existe, ou melhor existia, também um difuso “sentir católico”, assim constituído:
- uma atitude cultural que se baseia sobre um realismo, a propósito da natureza humana, por vezes desencantado, mas disposto a “tudo compreender” como premissa do “tudo perdoar”;
- uma espiritualidade não-ascética, compreensiva de certos aspectos materiais da vida e não disposta a desprezá-los;
- empenhado numa caridade quotidiana para com os humildes e os necessitados, sem precisar de os idealizar ou deles fazer quase um ídolo;
- disposto a representar-se também na própria sumptuosidade, portanto não surdo à razão de ser da beleza e das artes, enquanto testemunhos de uma Beleza suprema à qual o cristão deve tender;
- indagador subtil das moções mais recônditas do coração, da luta interior entre o bem e o mal, da dialéctica entre “tentação” e a resposta da consciência.
Poder-se-ia então dizer que naquilo a que chamo de “catolicismo romano” entrelaçam-se três aspectos, além, obviamente, do religioso: o estético, o jurídico e o político. Trata-se de uma visão racional do mundo que penetra numa instituição visível e compacta e que entra fatalmente em conflito com a ideia de representação que emergiu com a modernidade, baseada no individualismo e numa concepção do poder que, vinda de baixo, acaba por colocar em discussão o princípio da autoridade.