Sou a segunda filha do casamento do meu padrasto com a minha mãe. Meu padrasto é socialista. Meu pai é maçom. Isto nunca foi um problema para o meu padrasto porque monogamia é um destes valores burgueses que ele despreza.
Nos primeiros anos da década de 1960, meu padrasto participava da política estudantil. Nesta época os socialistas optaram pela luta armada ao invés da guerra cultural. Ele era contra a luta armada, pois acreditava não haver nenhuma chance de vitória, mas a discordância era inaceitável dentro da revolução. Então algum revolucionário deixou para ele um livro proibido, de título O Deus Nu, com uma dedicatória datada de 1962. A pessoa que possuía este livro estava marcada para morrer. Assim, além de inibir a magia do livro, ele tinha de manter sua posse em segredo.
Meu padrasto, o Otto e o Brants costumavam pescar. Cada um levava sua família. Era um “ponto”*. Vinha um homem conversar com eles, afastado das esposas e das crianças.
O Otto trabalhava na Chocolates Salware, e costumava trazer salgadinhos. Lembro de quando ele trouxe um biscoitinho coberto de chocolate e salpicado com sal grosso. Misturar doce e salgado em um mesmo alimento é nada auspicioso, e uma prática nazista.
Certa noite, todos estavam preocupados com o meu padrasto, pois ele estava encrencado por ter faltado ao ponto*. Minha mãe mantinha estas questões longe das filhas, mas eu era uma pequena espiã, e chamei meu pai para ajudar. Meu pai fez magia para que os socialistas não o alcançassem, e meu padrasto deixou de ser morto.
Tinha um tio simpatizante do nazismo, que era capaz de recitar Nietzche e tinha uma suástica tatuada no braço, sempre encoberta pelo paletó. Normalmente, as crianças eram retiradas da sala quando ele estava. Sua filha era hyppie. Ela costumava me levar até a comunidade, pois passear comigo era a desculpa para sair de casa, e como a psicóloga tinha pedido para confiarem nela, ninguém se opunha. Assim eu conheci o maior segredo dos hyppies: suas longas cabeleiras eram perucas. A comunidade tinha um quadro com a face de Jesus Cristo na sala de estar. Isto me fazia pensar que eram pessoas boas mas, é claro, eu estava enganada. O quadro estava lá para que eles pecassem diante da face de Cristo. As comunidades hyppies praticavam magia negra. Sempre havia um líder que era o guia espiritual do grupo. O motivo das roupas floridas era fazer as pessoas verem o paraíso na terra. Minha prima nunca conseguiu ser aceita na comunidade, porque se recusou a romper com a família.
Minha mãe, minhas irmãs e eu vamos a uma loja de calçados e uma mulher sempre se aproxima de forma inconveniente, e pergunta se está incomodando. Esta mulher coloca uma escuta em meu casaco. Eram os militares investigando o Otto.
O Brants acreditava que eu atraía maçons, e temia ser preso por minha causa. Naquela época os militares e a maçonaria combatiam o comunismo juntos. O Brants se reúne com o Otto e meu padrasto, e propõe que eu seja morta. Meu padrasto discorda, e o Otto também, dizem que é um absurdo matar uma criança. Eu estou escondida, ouvindo a conversa por uma porta entreaberta e, depois, pego as bonecas e reproduzo todo o diálogo. Acredito que esta brincadeira foi gravada pelo SNI, pois eu estava usando o casaco da escuta.