quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Houve uma grande batalha no Céu


Ao tirar do nada o universo, quis o Divino Artífice fazer deste um reflexo seu, espelhando-se no homem, rei da criação e microcosmo, criando-o à sua imagem e semelhança” (Gn l, 26)

No ápice desta obra, superando em perfeição todas as criaturas visíveis, encontram-se os Anjos, seres dotados de inteligência e puros espíritos, com personalidade própria e exclusiva, distribuídos por Deus em nove coros: Serafins, Querubins, Tronos, Virtudes, Dominações, Potestades, Principados, Arcanjos e Anjos. Formam estes a milícia da Jerusalém celeste, com a missão de adorar continuamente a Santíssima Trindade, executar os desígnios de Deus e guardar o gênero humano, bem como governar toda a criação material.1

Imensa e inimaginável é esta corte celeste! “Porventura podem ser contadas as suas legiões?” — indaga o livro de Jó (25, 3). E o profeta Daniel, maravilhado exclama: “Milhares e milhares o serviam, dezenas de milhares o assistiam! ” (Dn 7, 10).

A tanta diversidade e beleza quis Deus colocar um ponto monárquico, um ser que representasse de modo inigualável a luz eterna. Obra-prima, esplendor dos esplendores, cintilava no mais alto do universo angélico, todos se extasiavam diante dele: o primeiro dos Serafins e seu nome era Lúcifer, “Aquele que portava a luz”. A ele se aplicavam as palavras de Ezequiel: “Tu és o selo da semelhança de Deus, cheio de sabedoria e perfeito na beleza; tu vivias nas delícias do paraíso de Deus e tudo foi empregado em realçar a tua formosura!” (Ez 28, 12-13).

Entretanto, a seres tão excelsos, reservada também estava uma prova. Apesar da perfeição da natureza angélica, não podiam os Anjos gozar da essência da bem-aventurança: a posse da visão beatífica. Diante deles a face do Senhor achava-se como que envolta em véus, e apenas seus reflexos animavam o ardente amor dos Anjos.

Segundo exegetas e teólogos, a prova que decidiu o destino eterno dos Anjos foi o anúncio da Encarnação do Verbo: Deus haveria de enviar seu Filho Unigênito, nascido de uma mulher, criatura que teria seu trono elevado acima das Potestades: Maria Santíssima, Regina Angelorum.

A esse propósito, diz-nos o Padre Pedro Morazzani: “O Criador eterno, inacessível, todo-poderoso, se uniria hipostaticamente à natureza humana, elevando-a assim até o trono do Altíssimo; e uma mulher, a Mãe de Deus, tornar-se-ia medianeira de todas as graças, seria exaltada por cima dos coros angélicos e coroada Rainha do universo”.2

O momento decisivo: amar sem entender; subjugar os próprios critérios aos critérios do Absoluto! Eis o ato que os confirmaria, in perpetuo, na graça e na glória!

“Foram eles submetidos a uma prova. No momento da prova, muitíssimos destes espíritos permaneceram fiéis a Deus; mas muitos outros pecaram. Seu pecado foi de soberba, querendo ser iguais a Deus e não depender dEle” (CCE 3399).

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Letônia: Discurso do Papa aos idosos


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO 
À LITUÂNIA, LETÔNIA E ESTÔNIA
[22-25 DE SETEMBRO DE 2018]

ENCONTRO COM OS IDOSOS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Letónia - Catedral de São Tiago
Segunda-feira, 24 de setembro de 2018


Amados irmãos e irmãs!

Agradeço ao Arcebispo as suas palavras e a sua solícita análise da realidade. A vossa presença, irmãos idosos, lembra-me duas expressões da Carta do apóstolo Tiago, a quem está dedicada esta catedral. No início e no fim da carta, ele convida-nos à constância, mas usando dois termos diferentes. Estou certo de que podemos ouvir a voz do «irmão do Senhor», que hoje quer dirigir-se a nós.

Vós, que aqui vos encontrais, estivestes sujeitos a toda a espécie de provações: o horror da guerra e, depois, a repressão política, a perseguição e o exílio, como bem descreveu o vosso Arcebispo. E mantivestes-vos constantes, perseverastes na fé. Nem o regime nazista nem o soviético apagaram a fé nos vossos corações e, a alguns de vós, não vos fizeram sequer desistir de vos dedicardes à vida sacerdotal, religiosa, à catequese e a vários outros serviços eclesiais que punham em risco a vida; combatestes o bom combate, estais para terminar a corrida e conservastes a fé (cf. 2 Tm 4, 7).

Mas o apóstolo Tiago insiste no facto de que esta paciência vence a prova a que está sujeita a fé, quando gera obras perfeitas (cf. Tg 1, 2-4). Então a vossa atividade foi perfeita, mas terá ainda de tender para a perfeição nas novas circunstâncias. Vós, que vos devotastes de corpo e alma, que destes a vida buscando a liberdade da vossa pátria, muitas vezes tendes a sensação de ficar esquecidos. Embora pareça paradoxal, hoje, em nome da liberdade, os homens livres abandonam os idosos à solidão, ao ostracismo, à falta de recursos, à exclusão e até mesmo à miséria. Se assim for, o chamado comboio da liberdade e do progresso acaba por ter, naqueles que lutaram para conquistar direitos, a sua carruagem de cauda, os espetadores duma festa alheia, honrados e homenageados, mas esquecidos na vida diária (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 234).

O apóstolo Tiago convida-nos a ser constantes, não deixando diminuir a vigilância. «Neste caminho, o progresso do bem, o amadurecimento espiritual e o crescimento do amor são o melhor contrapeso ao mal» (Exort. ap. Gaudete et exsultate, 163). Não cedais ao desânimo, à tristeza, nem percais a doçura e, menos ainda, a esperança!

Em encontro ecumênico na Letônia, Papa frisa reconciliação e comunhão


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO 
À LITUÂNIA, LETÔNIA E ESTÔNIA
[22-25 DE SETEMBRO DE 2018]

ENCONTRO ECUMÊNICO

DISCURSO DO SANTO PADRE

Letônia - Catedral Evangélica Luterana de Riga
Segunda-feira, 24 de setembro de 2018


Sinto-me feliz por poder encontrar-me convosco nesta terra que se carateriza por realizar um caminho de respeito, colaboração e amizade entre as diferentes Igrejas cristãs, que conseguiram gerar unidade mantendo a riqueza e a singularidade próprias de cada uma. Atrevo-me a dizer que é um «ecumenismo vivo», sendo uma das caraterísticas peculiares da Letónia. É, sem dúvida alguma, um motivo de esperança e ação de graças.

Obrigado ao Arcebispo Jānis Vanags por nos ter aberto a porta desta casa para realizar o nosso encontro de oração: casa-catedral que, há mais de 800 anos, hospeda a vida cristã desta cidade; testemunha fiel de muitos irmãos nossos que dela se abeiraram para adorar, rezar, sustentar a esperança em tempos de tribulação e encontrar coragem para enfrentar períodos cheios de injustiça e sofrimento. Hoje hospeda-nos para que o Espírito Santo continue a tecer artesanalmente laços de comunhão entre nós e, assim, faça também de nós artesãos de unidade no meio do nosso povo, para que as nossas diferenças não se tornem divisões. Deixemos que o Espírito Santo nos revista com as armas do diálogo, da compreensão, da busca do respeito mútuo e da fraternidade (cf. Ef 6, 13-18).

Nesta catedral, encontra-se um dos órgãos mais antigos da Europa e que, no momento da sua inauguração, era o maior do mundo. Podemos imaginar como acompanhou a vida, a criatividade, a imaginação e a piedade de todos aqueles que se deixavam envolver pela sua melodia. Foi instrumento de Deus e dos homens, para elevar o olhar e o coração. Hoje é um emblema desta cidade e desta catedral. Para o «residente» neste lugar, representa mais do que um órgão monumental, faz parte da sua vida, da sua tradição, da sua identidade; ao passo que, para o turista, é naturalmente um objeto artístico a ser conhecido e fotografado. E este é um perigo que se corre sempre: passar de residentes a turistas, fazendo daquilo que nos identifica um objeto do passado, uma atração turística e de museu que recorda os feitos de outrora, de alto valor histórico, mas que deixou de fazer vibrar o coração de quantos o escutam.

Com a fé, pode acontecer exatamente a mesma coisa. Podemos deixar de nos sentir cristãos residentes, para nos tornarmos turistas. Mais, é possível afirmar que toda a nossa tradição cristã pode sofrer a mesma sorte: acabar reduzida a um objeto do passado que, fechado dentro das paredes das nossas igrejas, deixa de produzir uma melodia capaz de mover e inspirar a vida e o coração daqueles que a ouvem. Porém, como afirma o evangelho que escutamos, a nossa fé não é para ficar oculta, mas para se dar a conhecer fazendo-a ressoar nos diferentes setores da sociedade, a fim de que todos possam contemplar a sua beleza e ser iluminados com a sua luz (cf. Lc 11, 33).

Se a música do Evangelho deixar de ser executada na nossa vida e se transformar numa bela partitura do passado, já não conseguirá romper as monotonias asfixiadoras que impedem de animar a esperança, tornando estéreis todos os nossos esforços.

Se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados.

Se a música do Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher, independentemente da sua proveniência, encerrando-nos no «meu» e esquecendo-nos do «nosso»: a casa comum que a todos nos diz respeito.

Se a música do Evangelho deixar de soar, teremos perdido os sons que hão de levar a nossa vida ao céu, entrincheirando-nos num dos piores males do nosso tempo: a solidão e o isolamento. A doença que surge em quem não possui qualquer laço, e que se pode encontrar também nos idosos abandonados ao seu destino, bem como nos jovens sem pontos de referência nem oportunidades de futuro (cf. Discurso ao Parlamento Europeu, 25 de novembro de 2014).

As palavras – Pai, «que todos sejam um só, (…) para que o mundo creia» (Jo 17, 21) – continuam a ressoar intensamente no meio de nós, graças a Deus. É Jesus que, antes do seu sacrifício, reza ao Pai. É Jesus, Jesus Cristo que, encarando a sua cruz e a cruz de muitos dos nossos irmãos, não cessa de implorar ao Pai. É o murmúrio constante desta oração, que traça a senda e nos indica o caminho a seguir. Imersos na sua oração, como crentes n’Ele e na sua Igreja, desejando a comunhão de graça que o Pai possui desde toda a eternidade (cf. São João Paulo II, Carta enc. Ut unum sint, 9), encontramos ali a única estrada possível para todo o ecumenismo na cruz do sofrimento de tantos jovens, idosos e crianças, frequentemente expostos à exploração, ao absurdo, à falta de oportunidades e à solidão. Enquanto fixa o olhar no Pai e em nós, seus irmãos, Jesus não cessa de implorar: que todos sejam um só.

Letônia: Homilia do Papa no Santuário da Mãe de Deus em Aglona


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO 
À LITUÂNIA, LETÔNIA E ESTÔNIA
[22-25 DE SETEMBRO DE 2018]

SANTA MISSA

HOMILIA DO SANTO PADRE

Letônia - Santuário da Mãe de Deus em Aglona
Segunda-feira, 24 de setembro de 2018


Poderíamos justamente dizer que hoje se repete aqui o que São Lucas narra no início do livro dos Atos dos Apóstolos: estamos intimamente unidos, dedicando-nos à oração e na companhia de Maria, nossa Mãe (cf. 1, 14). Hoje fazemos nosso o lema desta visita: «Mostrai-Vos Mãe!», manifestai-nos o lugar onde continuais a cantar o Magnificat, os lugares onde Se encontra o vosso Filho crucificado para, aos seus pés, podermos encontrar a vossa presença firme.

O Evangelho de João refere apenas dois momentos em que a vida de Jesus cruza a de sua Mãe: as bodas de Caná (cf. 2, 1-12) e o texto que acabamos de ler, ou seja, Maria aos pés da cruz (cf. 19, 25-27). Parece que o evangelista tenha interesse em mostrar-nos a Mãe de Jesus nestas situações de vida aparentemente opostas: a alegria de um matrimónio e o sofrimento pela morte dum filho. Enquanto penetramos no mistério da Palavra, Ela mostra-nos qual é a Boa Nova que, hoje, o Senhor quer partilhar connosco.

A primeira coisa que o evangelista ressalta é que Maria está firmemente «de pé» junto de seu Filho. Não se trata dum modo descontraído de estar, nem evasivo e, menos ainda, pusilânime. Está, com firmeza, «cravada» aos pés da cruz, expressando com a posição do seu corpo que nada e ninguém poderia movê-La daquele lugar. É assim que Maria Se mostra em primeiro lugar: junto daqueles que sofrem, daqueles de quem todo o mundo foge, nomeadamente os que são julgados, condenados por todos, deportados. Não se trata apenas de oprimidos ou explorados, mas estão diretamente «fora do sistema», à margem da sociedade (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 53). Juntamente com eles, está também a Mãe, cravada nesta cruz da incompreensão e do sofrimento.

Maria mostra-nos também o modo como estar junto destas realidades; não é dar um passeio ou fazer uma breve visita, nem se trata sequer de «turismo solidário». É necessário que aqueles que padecem uma realidade dolorosa nos sintam a seu lado e da sua parte, de maneira firme, estável; todos os descartados da sociedade podem experimentar esta Mãe delicadamente próxima, porque, naqueles que sofrem, permanecem as chagas abertas do seu Filho Jesus. Ela aprendeu-o ao pé da cruz. Também nós somos chamados a «tocar» o sofrimento dos outros. Saiamos ao encontro do nosso povo para o consolar e fazer-lhe companhia; não tenhamos medo de experimentar a força da ternura e de nos envolvermos vendo a nossa vida complicada pelos outros (cf. ibid., 270). E, como Maria, permaneçamos firmes e de pé: com o coração voltado para Deus e corajosos, levantando os que caíram, erguendo o humilhado, ajudando a pôr fim a toda e qualquer situação de opressão que os faz viver como crucificados.

Maria é convidada por Jesus a aceitar o discípulo amado como seu filho. O texto refere que estavam juntos, mas Jesus dá-se conta de que isto não é suficiente, porque não se acolheram reciprocamente. De facto, é possível estar junto de muitíssimas pessoas, pode-se até compartilhar a mesma casa, bairro ou trabalho; pode-se compartilhar a fé, contemplar e desfrutar os mesmos mistérios, mas sem acolher, nem praticar uma aceitação amorosa do outro. Quantos esposos poderiam contar a história de estar próximos, mas não juntos! Quantos jovens sentem dolorosamente esta distância dos adultos! Quantos idosos se sentem friamente tratados, mas não carinhosamente cuidados e acolhidos!

Letônia: "Apostem pela liberdade no desenvolvimento integral", pede o Papa em encontro com as autoridades


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO 
À LITUÂNIA, LETÔNIA E ESTÔNIA
[22-25 DE SETEMBRO DE 2018]

ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, 
A SOCIEDADE CIVIL E O CORPO DIPLOMÁTICO

DISCURSO DO SANTO PADRE

Letônia - Salão de Recepções do Palácio Presidencial de Riga 
Segunda-feira, 24 de setembro de 2018


Senhor Presidente
Membros do Governo e Autoridades,
Membros do Corpo Diplomático e da sociedade civil,
Queridos amigos todos!

Agradeço-lhe, Senhor Presidente, as suas amáveis palavras de boas-vindas bem como o convite para vos visitar, que me fez durante o encontro que tivemos no Vaticano. É motivo de alegria poder-me encontrar pela primeira vez na Letônia e nesta cidade que, como todo o vosso país, sofreu duras provações sociais, políticas, econômicas e mesmo espirituais, devidas às divisões e conflitos do passado; hoje, porém, tornou-se um dos principais centros culturais, políticos e portuários da região. Os vossos expoentes nos campos da cultura e da arte e, em particular, do mundo musical são bem conhecidos além-fronteiras. Hoje mesmo, tive a possibilidade de os apreciar na minha chegada ao aeroporto. Por isso, creio que bem se podem aplicar a vós as palavras do Salmista: «Tu converteste o meu pranto em festa» (Sal 30/29, 12). A Letônia, terra dos dainas, soube mudar o seu pranto e o seu sofrimento em canto e festa e esforçou-se por se transformar num lugar de diálogo e encontro, de convivência pacífica que procura olhar para diante.

Estais a celebrar o centenário da vossa independência, momento significativo na vida da sociedade inteira. Conheceis bem o preço desta liberdade, que tivestes de conquistar uma e outra vez. Uma liberdade que se tornou possível graças às raízes que vos constituem, como gostava de lembrar Zenta Maurina que serviu de inspiração a muitos de vós: «As minhas raízes estão no céu». Sem esta capacidade de olhar para o alto, de fazer apelo a horizontes mais altos, que nos lembram aquela «dignidade transcendente» que é parte integrante de todo o ser humano (cf. Discurso ao Parlamento Europeu, 25 de novembro de 2014), não teria sido possível a reconstrução da vossa nação. Esta capacidade espiritual de olhar mais além, que se concretiza em pequenos gestos diários de solidariedade, compaixão e ajuda mútua, sustentou-vos conferindo-vos, por sua vez, a criatividade necessária para dar vida a novas dinâmicas sociais contra todas as tentativas reducionistas e de exclusão que sempre ameaçam o tecido social.

Esta é a mensagem que o Papa escreveu no museu das vítimas do comunismo na Lituânia


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO 
À LITUÂNIA, LETÔNIA E ESTÔNIA
[22-25 DE SETEMBRO DE 2018]

VISITA AO MUSEU DAS OCUPAÇÕES E DAS LUTAS PELA LIBERDADE

ORAÇÃO DO SANTO PADRE

Lituânia - Vilna   
Domingo, 23 de setembro de 2018


«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?» (Mt 27, 46).

O vosso grito, Senhor, não pára de ressoar, ecoando dentro destas paredes que recordam os sofrimentos vividos por tantos filhos deste povo. Lituanos e originários de diferentes nações sofreram na sua carne o delírio de omnipotência daqueles que tudo pretendiam controlar.

No vosso grito, Senhor, ecoa o grito do inocente que se une à vossa voz e se eleva para o céu. É a Sexta-feira Santa do sofrimento e da amargura, da desolação e da impotência, da crueldade e do absurdo que viveu este povo lituano face à ambição desenfreada que endurece e cega o coração.

Neste lugar da memória, nós Vos imploramos, Senhor, que o vosso grito nos mantenha despertos. Que o vosso grito, Senhor, nos liberte da doença espiritual que sempre nos tenta como povo: esquecer-nos dos nossos pais, de quanto viveram e sofreram.

Papa Francisco recorda os mártires assassinados pelos totalitarismos na Lituânia


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO 
À LITUÂNIA, LETÔNIA E ESTÔNIA
[22-25 DE SETEMBRO DE 2018]

ENCONTRO COM OS SACERDOTES, 
RELIGIOSOS, RELIGIOSAS, CONSAGRADOS, CONSAGRADAS
 E SEMINARISTAS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Lituânia - Catedral de S. Pedro e S. Paulo em Kaunas
Domingo, 23 de setembro de 2018


Amados irmãos e irmãs, boa tarde!

Antes de mais nada, gostaria de expressar um sentimento que me vai na alma. Ao contemplar-vos, vejo atrás de vós tantos mártires. Mártires anónimos, não sabendo nós sequer onde foram sepultados. Inclusive alguns de vós: saudei um, que soube o que era a prisão. Para começar, vem-me à mente uma palavra: não vos esqueçais, fazei memória. Sois filhos de mártires: esta é a vossa força. E que o espírito do mundo não vos venha dizer outra coisa diferente da que viveram os vossos antepassados. Recordai os vossos mártires e imitai o seu exemplo: não tinham medo. Hoje, ao falar com os Bispos – os vossos Bispos –, eles diziam: «Como se pode fazer para introduzir a Causa de Beatificação de muitos que nem documentos temos, mas sabemos que são mártires?» É consolador, é bom ouvir isto: a preocupação com aqueles que nos deram testemunho. São santos.

O Bispo [Linas Vodopjanovas OFM, encarregado da vida consagrada] disse sem meias palavras (os franciscanos falam assim): «Muitas vezes hoje, de várias maneiras, é colocada à prova a nossa fé – afirmou ele; e não estava a pensar nas perseguições dos ditadores –. Depois de corresponder à chamada da vocação, muitas vezes já não sentimos alegria na oração nem na vida comunitária».

O espírito da secularização, do tédio por tudo o que diz respeito à comunidade é a tentação da segunda geração. Os nossos pais lutaram, sofreram, estiveram encarcerados… e nós talvez não tenhamos a força de continuar. Tende isto em conta!

A Carta aos Hebreus faz uma exortação: «Não vos esqueçais dos primeiros dias. Não vos esqueçais dos vossos antepassados» (cf. 10, 32-39). Esta é a exortação que vos dirijo ao começar.

Toda a visita ao vosso país decorreu sob este lema: «Jesus Cristo, nossa esperança». Já quase no final deste dia, encontramos um texto do apóstolo Paulo que nos convida a esperar com constância. E faz este convite depois de nos ter anunciado o sonho de Deus para cada ser humano, mais ainda, para toda a criação: «tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus» (Rm 8, 28); a tradução literal seria «endireita» todas as coisas.

Lituânia: Homilia do Papa Francisco na Missa celebrada em Kaunas


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO 
À LITUÂNIA, LETÔNIA E ESTÔNIA
[22-25 DE SETEMBRO DE 2018]

SANTA MISSA

HOMILIA DO SANTO PADRE

Lituânia - Parque Sántakos em Kaunas
Domingo, 23 de setembro de 2018


São Marcos dedica uma parte inteira do seu Evangelho ao ensinamento dirigido aos discípulos. É como se, a meio do caminho para Jerusalém, Jesus quisesse que os seus renovassem a sua opção, sabendo que este seguimento comportaria momentos de provação e sofrimento. O evangelista narra aquele período da vida de Jesus, lembrando que Ele anunciou, em três ocasiões, a sua paixão; e eles, por três vezes, expressaram a sua perplexidade e resistência, e o Senhor quis deixar-lhes um ensinamento, em cada uma das três ocasiões. Acabamos de ouvir a segunda destas três sequências (cf. Mc 9, 30-37).

A vida cristã sempre atravessa momentos de cruz e, às vezes, parecem intermináveis. As gerações passadas viram gravar a fogo o tempo da ocupação, a angústia daqueles que eram deportados, a incerteza por aqueles que não voltavam, a vergonha da delação, da traição. O livro da Sabedoria fala-nos do justo perseguido, daquele que sofre insultos e tormentos pelo simples facto de ser bom (cf. 2, 20-20). Quantos de vós poderiam contar em primeira pessoa, ou na história de algum parente, esta mesma passagem que foi lida? Quantos de vós viram também vacilar a sua fé, porque Deus não apareceu para vos defender; porque o facto de permanecer fiéis não foi suficiente para que Ele interviesse na vossa história. Kaunas conhece esta realidade; toda a Lituânia o pode testemunhar sentindo arrepios à simples nomeação da Sibéria, ou dos guetos de Vilna e Kaunas, entre outros; e pode corroborar em uníssono com o apóstolo Tiago, na passagem da sua Carta que escutamos: cobiçam, matam, invejam, lutam e fazem guerra (cf. 4, 2).

Mas, os discípulos não queriam que Jesus lhes falasse de sofrimento e de cruz; não querem saber nada de provações e angústias. E São Marcos lembra que o interesse deles ia para outras coisas: voltavam para casa discutindo sobre qual deles seria o maior. Irmãos, o desejo de poder e glória é o modo mais comum de se comportar daqueles que não conseguem curar a memória da sua história e, talvez por isso mesmo, não aceitam sequer comprometer-se no trabalho do momento presente. E então discute-se sobre quem mais brilhou, quem foi mais puro no passado, quem possui mais direito do que os outros a ter privilégios. E assim negamos a nossa história, «que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 96). É uma atitude estéril e vã, que se recusa a envolver-se na construção do presente, perdendo o contacto com a dolorosa realidade do nosso povo fiel. Não podemos ser como aqueles «peritos» espirituais que se limitam a julgar de fora e passam o tempo inteiro a falar sobre «o que se deveria fazer» (cf. ibid., 96).