domingo, 7 de março de 2021

Iraque: Papa Francisco preside sua primeira Missa em Bagdá


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
 AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

SANTA MISSA
HOMILIA DO SANTO PADRE

Catedral Caldeia de São José em Bagdá
Sábado, 6 de março de 2021

Hoje a Palavra de Deus fala-nos de sabedoria, testemunho e promessas.

A sabedoria foi cultivada nestas terras desde tempos muito antigos. Desde sempre, a sua busca tem fascinado o homem; mas, frequentemente, quem possui mais recursos pode adquirir mais conhecimentos e ter mais oportunidades, ao passo que quantos têm menos são excluídos. É uma desigualdade inaceitável, atualmente em aumento. Entretanto o livro da Sabedoria surpreende-nos, ao inverter a perspectiva. Nele se diz que «o pequeno encontrará misericórdia, mas os poderosos serão examinados com rigor» (Sab 6, 6). Para o mundo, quem tem menos é descartado e quem tem mais é privilegiado; para Deus, não: quem tem mais poder é sujeito a um exame rigoroso, enquanto os últimos são os privilegiados de Deus.

Jesus, a Sabedoria em pessoa, completa esta inversão no Evangelho: não num momento qualquer, mas no início do primeiro discurso, com as Bem-aventuranças. A inversão é total: os pobres, os que choram, os perseguidos são declarados bem-aventurados. Como é possível? Bem-aventurados, para o mundo, são os ricos, os poderosos, os famosos! Vale quem tem, quem pode, quem conta! Para Deus, não: não é maior quem tem, mas quem é pobre em espírito; não quem pode tudo sobre os outros, mas quem é manso com todos; não quem é aclamado pelas multidões, mas quem é misericordioso com o irmão. Chegados aqui, pode-nos vir a dúvida: Se vivo como Jesus pede, que ganho com isso? Não corro o risco de ser espezinhado pelos outros? A proposta de Jesus será conveniente? Ou é perdedora? Não é perdedora, mas sapiente.

A proposta de Jesus é sapiente, porque o amor, que é o coração das Bem-aventuranças, embora pareça frágil aos olhos do mundo, na realidade vence. Na cruz, provou ser mais forte do que o pecado; no sepulcro, derrotou a morte. Foi este mesmo amor que tornou os mártires vitoriosos na provação… E houve tantos no último século! Mais do que nos anteriores. O amor é a nossa força, a força de tantos irmãos e irmãs que também aqui foram vítimas de preconceitos e ofensas, sofreram maus tratos e perseguições pelo nome de Jesus. Mas, enquanto o poder, a glória e a vaidade do mundo passam, o amor permanece, como nos disse o apóstolo Paulo: «o amor jamais passará» (1 Cor 13, 8). Assim, viver as Bem-aventuranças é tornar eterno aquilo que passa, é trazer o Céu à terra.

Mas como se vivem as Bem-aventuranças? Não exigem que se façam coisas extraordinárias, empreendimentos acima das nossas capacidades. Exigem o testemunho diário. Bem-aventurado é quem vive com mansidão, quem pratica a misericórdia no lugar onde se encontra, quem mantém o coração puro lá onde vive. Para se tornar bem-aventurado, não é preciso ser herói de vez em quando, mas testemunha todos os dias. O testemunho é o caminho para encarnar a sabedoria de Jesus. É assim que se muda o mundo: não com o poder nem com a força, mas com as Bem-aventuranças. Pois foi assim que fez Jesus, vivendo até ao fim aquilo que dissera ao início. Tudo se resume em testemunhar o amor de Jesus, aquela caridade que São Paulo descreve de forma estupenda na segunda Leitura de hoje. Vejamos como a apresenta.

Papa em encontro inter-religioso: extremismo e violência traem a religião


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
 AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

ENCONTRO INTER-RELIGIOSO
Planície de Ur
Sábado, 6 de março de 2021
 

DISCURSO DO SANTO PADRE

Queridos irmãos e irmãs!

Este lugar abençoado faz-nos pensar nas origens, nos primórdios da obra de Deus, no nascimento das nossas religiões. Aqui, onde viveu o nosso pai Abraão, temos a impressão de regressar a casa. Aqui ele ouviu a chamada de Deus, daqui partiu para uma viagem que mudaria a história. Somos o fruto daquela chamada e daquela viagem. Deus pediu a Abraão que levantasse os olhos para o céu e contasse as estrelas (cf. Gn 15, 5). Naquelas estrelas, viu a promessa da sua descendência, viu-nos a nós. E hoje nós, judeus, cristãos e muçulmanos, juntamente com os irmãos e irmãs doutras religiões, honramos o pai Abraão fazendo como ele: olhamos para o céu e caminhamos sobre a terra.

1. Olhamos para o céu. Ao contemplarmos o mesmo céu alguns milénios depois, aparecem as mesmas estrelas. Iluminam as noites mais escuras, porque brilham juntas. O céu oferece-nos assim uma mensagem de unidade: sobre nós, o Altíssimo convida a não nos separarmos jamais do irmão que está ao nosso lado. O Além de Deus envia-nos mais além de nós, ao outro, ao irmão. Mas, se quisermos salvaguardar a fraternidade, não podemos perder de vista o Céu. Nós, descendência de Abraão e representantes de várias religiões, sentimos que a nossa função primeira é esta: ajudar os nossos irmãos e irmãs a elevarem o olhar e a oração para o Céu. E disto todos precisamos, porque não nos bastamos a nós próprios. O homem não é omnipotente; sozinho, não é capaz. E se escorraça Deus, acaba por adorar as coisas terrenas. Mas os bens do mundo, que fazem muitos esquecer-se de Deus e dos outros, não são o motivo da nossa viagem sobre a terra. Erguemos os olhos ao Céu para nos elevarmos das torpezas da vaidade; servimos a Deus, para sair da escravidão do próprio eu, porque Deus nos impele a amar. Esta é a verdadeira religiosidade: adorar a Deus e amar o próximo. No mundo atual, que muitas vezes se esquece do Altíssimo ou oferece uma imagem distorcida d’Ele, os crentes são chamados a testemunhar a sua bondade, mostrar a sua paternidade através da nossa fraternidade.

A partir deste lugar fontal da fé, da terra do nosso pai Abraão, afirmamos que Deus é misericordioso e que a ofensa mais blasfema é profanar o seu nome odiando o irmão. Hostilidade, extremismo e violência não nascem dum ânimo religioso: são traições da religião. E nós, crentes, não podemos ficar calados, quando o terrorismo abusa da religião. Antes, cabe a nós dissipar com clareza os mal-entendidos. Não permitamos que a luz do Céu seja ocultada pelas nuvens do ódio! Sobre este país, acumularam-se as nuvens negras do terrorismo, da guerra e da violência. Com isso, sofreram todas as comunidades étnicas e religiosas; de modo particular quero recordar a comunidade yazidi, que chorou a morte de muitos homens e viu milhares de mulheres, donzelas e crianças raptadas, vendidas como escravas e sujeitas a violências físicas e conversões forçadas. Hoje rezamos por todas as vítimas de tais sofrimentos, por quantos ainda estão dispersos e sequestrados para que regressem brevemente às suas casas. E rezamos para que em toda a parte se respeitem e reconheçam a liberdade de consciência e a liberdade religiosa: são direitos fundamentais, porque tornam o homem livre para contemplar o Céu para o qual foi criado.

O terrorismo, quando invadiu o norte deste amado país, destruiu barbaramente parte do seu maravilhoso património religioso, incluindo igrejas, mosteiros e lugares de culto de várias comunidades. Mas, mesmo naquele momento escuro, brilharam estrelas. Penso nos jovens voluntários muçulmanos de Mossul, que ajudaram a refazer igrejas e mosteiros, construindo amizades fraternas sobre as ruínas do ódio, e penso nos cristãos e muçulmanos que hoje restauram conjuntamente mesquitas e igrejas. O professor Ali Thajeel referiu-nos também o regresso dos peregrinos a esta cidade. É importante peregrinar rumo aos lugares sagrados: é o sinal mais belo da saudade do Céu na terra. Por isso, amar e preservar os lugares sagrados é uma necessidade existencial em memória do nosso pai Abraão, que em vários lugares ergueu para o céu altares ao Senhor (cf. Gn 12, 7.8; 13, 18; 22, 9). Que o grande patriarca nos ajude a tornar oásis de paz e de encontro para todos os lugares sagrados de cada um. Pela sua fidelidade a Deus, tornou-se uma bênção para todos os povos (cf. Gn 12, 3); a nossa estada hoje aqui, seguindo os seus passos, seja sinal de bênção e esperança para o Iraque, o Médio Oriente e o mundo inteiro. O Céu não se cansou da terra: Deus ama cada povo, cada uma das suas filhas e cada um dos seus filhos! Nunca nos cansemos de olhar para o céu, de olhar para estas estrelas, as mesmas que outrora viu o nosso pai Abraão.

2. Caminhamos sobre a terra. Os seus olhos erguidos para o céu não desviaram, antes encorajaram Abraão a caminhar sobre a terra, a empreender uma viagem que, através da sua descendência, tocaria todos os séculos e latitudes. Mas tudo começou a partir daqui, do Senhor que o «mandou sair de Ur» (Gn 15, 7). Por conseguinte, o seu foi um caminho em saída, que implicou sacrifícios: teve de deixar terra, casa e parentes. Mas, renunciando à sua família, tornou-se pai duma família de povos. Algo de semelhante acontece também connosco: no caminho, somos chamados a deixar aqueles vínculos e apegos que, fechando-nos no nosso grupo, impedem-nos de acolher o amor ilimitado de Deus e ver os outros como irmãos. É verdade! Precisamos de sair de nós mesmos, porque temos necessidade uns dos outros. A pandemia fez-nos compreender que «ninguém se salva sozinho» (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 54); mas volta sempre a tentação de nos distanciarmos dos outros. Todavia «o principio “salve-se quem puder” traduzir-se-á rapidamente no lema “todos contra todos”, e isso será pior que uma pandemia» (Ibid., 36). Nas tormentas que estamos a atravessar, não nos salvará o isolamento, não nos salvarão a corrida armamentista e a construção de muros, que aliás nos tornarão cada vez mais distantes e irados. Não nos salvará a idolatria do dinheiro, que nos fecha em nós mesmos e provoca abismos de desigualdade onde se afunda a humanidade. Não nos salvará o consumismo, que anestesia a mente e paralisa o coração.

O caminho que o Céu aponta para o nosso percurso é outro: é o caminho da paz. E este requer, sobretudo na tormenta, que rememos juntos na mesma direção. É indigno que, enquanto todos somos provados pela crise pandémica, e especialmente aqui onde os conflitos causaram tanta miséria, alguém pense avidamente nos seus negócios. Não haverá paz sem partilha e acolhimento, sem uma justiça que assegure equidade e promoção para todos, a começar pelos mais frágeis. Não haverá paz sem povos que estendam a mão a outros povos. Não haverá paz enquanto se olhar os outros como um «eles», e não como um «nós». Não haverá paz enquanto as alianças forem contra alguém, porque as alianças de uns contra os outros só aumentam as divisões. A paz não exige vencedores nem vencidos, mas irmãos e irmãs que, não obstante as incompreensões e as feridas do passado, passem do conflito à unidade. Na oração, peçamos isto para todo o Médio Oriente; penso em particular na vizinha e atormentada Síria.

O patriarca Abraão, que hoje nos reúne em unidade, foi profeta do Altíssimo. Uma antiga profecia diz que os povos «transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices» (Is 2, 4). Esta profecia não se realizou; antes, espadas e lanças tornaram-se mísseis e bombas. Então donde pode começar o caminho da paz? Da renúncia a ter inimigos. Quem tem a coragem de olhar as estrelas, quem acredita em Deus, não tem inimigos para combater. Tem apenas um inimigo a enfrentar, que está à porta do coração e insiste para entrar: é a inimizade. Enquanto alguns procuram mais ter inimigos do que ser amigos, enquanto muitos buscam o próprio benefício à custa de outros, quem olha as estrelas da promessa, quem segue os caminhos de Deus não pode ser contra ninguém, mas por todos; não pode justificar qualquer forma de imposição, opressão e prevaricação, não se pode comportar de modo agressivo.

Queridos amigos, será possível tudo isto? Encoraja-nos o pai Abraão, que teve esperança para além do que se podia esperar (cf. Rm 4, 18). Na história, muitas vezes corremos atrás de metas demasiado terrenas e caminhamos cada um por conta própria, mas, com a ajuda de Deus, podemos mudar para melhor. Cabe a nós, a humanidade de hoje e principalmente os crentes das diferentes religiões, transformar os instrumentos do ódio em instrumentos de paz. Cabe a nós instar fortemente os responsáveis das nações para que a proliferação crescente de armas ceda o lugar à distribuição de alimentos para todos. Cabe a nós fazer calar as mútuas acusações para dar voz ao grito dos oprimidos e descartados no planeta: muitos estão privados de pão, remédios, instrução, direitos e dignidade. Cabe a nós colocar à luz do dia as foscas manobras que giram à volta do dinheiro e pedir com veemência que o dinheiro não acabe sempre e só por nutrir a desenfreada comodidade de poucos. Cabe a nós salvaguardar a casa comum das nossas ambições predatórias. Cabe a nós lembrar ao mundo que a vida humana vale pelo que é e não pelo que tem, e que a vida de nascituros, idosos, migrantes, homens e mulheres de todas as cores e nacionalidades é sempre sagrada e conta como a de todos os outros. Cabe a nós ter a coragem de levantar os olhos e olhar as estrelas, as estrelas que viu o nosso pai Abraão, as estrelas da promessa.

O caminho de Abraão foi uma bênção de paz. Mas não foi fácil! Teve que enfrentar lutas e imprevistos. Também nós temos pela frente um caminho acidentado, mas precisamos, como o grande patriarca, de dar passos concretos, peregrinar para descobrir o rosto do outro, partilhar memórias, olhares e silêncios, histórias e experiências. Impressionou-me o testemunho de Dawood e Hasan, um cristão e outro muçulmano, que, sem se deixar abater pelas diferenças, estudaram e trabalharam juntos. Juntos, construíram o futuro e descobriram-se irmãos. Também nós, para prosseguir, precisamos de fazer, juntos, algo de bom e concreto. Este é o caminho, sobretudo para os jovens, que não podem ver os seus sonhos truncados pelos conflitos do passado. Urge educá-los para a fraternidade, educá-los para olharem as estrelas. Trata-se duma verdadeira e própria emergência; será a vacina mais eficaz para um amanhã pacífico. Porque sois vós, queridos jovens, o nosso presente e o nosso futuro!

Somente com os outros é que se podem curar as feridas do passado. A senhora Rafah contou-nos o exemplo heroico de Najy, da comunidade sabeia mandeia, que perdeu a vida na tentativa de salvar a família do seu vizinho muçulmano. Quantas pessoas aqui, no silêncio e ignorados pelo mundo, iniciaram caminhos de fraternidade! Rafah contou ainda as tribulações indescritíveis da guerra, que forçou muitos a abandonarem casa e pátria à procura dum futuro para os seus filhos. Obrigado, Rafah, por partilhares connosco a firme vontade de permanecer aqui, na terra dos teus pais! Oxalá todos aqueles que não o conseguiram fazer e tiveram de fugir encontrem um acolhimento benévolo, digno de pessoas vulneráveis e feridas.

Foi precisamente através da hospitalidade, traço caraterístico destas terras, que Abraão recebeu a visita de Deus e o dom, já não esperado, dum filho (cf. Gn 18, 1-10). Nós, irmãos e irmãs de diversas religiões, encontramo-nos aqui, em casa, e a partir daqui, juntos, queremos empenhar-nos para que se realize o sonho de Deus: que a família humana se torne hospitaleira e acolhedora para com todos os seus filhos; que, olhando o mesmo céu, caminhe em paz sobre a mesma terra.

No Iraque, Papa pede união fraterna em mundo dilacerado pelas divisões


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
 AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

ENCONTRO COM OS BISPOS, SACERDOTES, RELIGIOSOS E RELIGIOSAS,
 SEMINARISTAS E CATEQUISTAS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Catedral Sírio-Católica de Nossa Senhora da Salvação em Bagdá
Sexta-feira, 5 de março de 2021

 
Beatitudes, Excelências Reverendíssimas,
Amados Sacerdotes e Religiosos,
Prezadas Religiosas,
Queridos irmãos e irmãs!

Com paterno afeto, vos abraço a todos. Sinto-me agradecido ao Senhor que, na sua providência, permitiu encontrar-nos hoje. Agradeço a Sua Beatitude o Patriarca Ignace Youssif Younan e a Sua Beatitude o Cardeal Louis Sako as palavras de boas-vindas. Estamos reunidos nesta Catedral de Nossa Senhora da Salvação, abençoados pelo sangue dos nossos irmãos e irmãs que aqui pagaram o preço extremo da sua fidelidade ao Senhor e à sua Igreja. Que a recordação do seu sacrifício nos inspire a renovar a nossa confiança na força da Cruz e da sua mensagem salvífica de perdão, reconciliação e renascimento. Na verdade, o cristão é chamado a testemunhar o amor de Cristo em todo o tempo e lugar. Este é o Evangelho que se deve proclamar e encarnar também neste amado país.

Todos vós, como bispos e sacerdotes, religiosos e religiosas, catequistas e responsáveis leigos, compartilhais as alegrias e os sofrimentos, as esperanças e as angústias dos fiéis de Cristo. As carências do povo de Deus e os árduos desafios pastorais que enfrentais diariamente, agravaram-se neste tempo de pandemia. Há uma coisa, porém, que nunca deve ser bloqueada nem reduzida: o zelo apostólico, que hauris de raízes muito antigas, da presença ininterrupta da Igreja nestas terras desde os primeiros tempos (cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Medio Oriente, 5). Sabemos como é fácil ser contagiado pelo vírus do desânimo que às vezes parece difundir-se ao nosso redor. Mas o Senhor deu-nos uma vacina eficaz contra este vírus mau: é a esperança; a esperança, que nasce da oração perseverante e da fidelidade diária ao nosso apostolado. Com esta vacina, podemos prosseguir com energia sempre nova, para partilhar a alegria do Evangelho como discípulos missionários e sinais vivos da presença do Reino de Deus, Reino de santidade, justiça e paz.

Quanta necessidade tem o mundo ao nosso redor de ouvir esta mensagem! Não esqueçamos jamais que Cristo é anunciado sobretudo com o testemunho de vidas transformadas pela alegria do Evangelho. Como vemos pela antiga história da Igreja nestas terras, uma fé viva em Jesus é «contagiosa», pode mudar o mundo. O exemplo dos Santos mostra-nos que seguir Jesus Cristo «não é algo apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de cumular a vida dum novo esplendor e duma alegria profunda, mesmo no meio das provações» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 167).

As dificuldades fazem parte da experiência diária dos fiéis iraquianos. Nas últimas décadas, vós e os vossos concidadãos tivestes de enfrentar os efeitos da guerra e das perseguições, a fragilidade das infraestruturas básicas e uma luta contínua pela segurança económica e pessoal, que muitas vezes levou a deslocamentos internos e à migração de muitos, inclusive cristãos, para outras partes do mundo. Agradeço-vos, irmãos bispos e sacerdotes, por terdes permanecido junto do vosso povo – junto do vosso povo –, apoiando-o, esforçando-vos por satisfazer as carências das pessoas e ajudando cada um a fazer a sua parte ao serviço do bem comum. O apostolado educativo e o sociocaritativo das vossas Igrejas Particulares constituem um recurso precioso para a vida quer da comunidade eclesial quer da sociedade inteira. Animo-vos a perseverar neste compromisso, a fim de garantir que a Comunidade Católica no Iraque, apesar de pequena como um grão de mostarda (cf. Mt 13, 31-32), continue a enriquecer o caminho do país no seu conjunto.

O amor de Cristo pede-nos para colocar de lado qualquer tipo de egocentrismo e competição; impele-nos à comunhão universal e chama-nos a formar uma comunidade de irmãos e irmãs que se acolhem e cuidam mutuamente (cf. Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 95-96). Vem-me ao pensamento a imagem familiar dum tapete. As diversas Igrejas presentes no Iraque, cada qual com o seu secular património histórico, litúrgico e espiritual, são como tantos fios de variegadas cores que, entrelaçados conjuntamente, compõem um único belíssimo tapete, que não só atesta a nossa fraternidade, mas remete também para a sua fonte, pois o próprio Deus é o artista que idealizou este tapete, que o tece com paciência e prende cuidadosamente querendo-nos sempre bem entrelaçados entre nós, como seus filhos e filhas. Esteja sempre no nosso coração esta exortação de Santo Inácio de Antioquia: «Nada haja entre vós que possa dividir-vos (...), mas fazei tudo em comum: uma só oração, uma só prece, uma só alma, uma só esperança na caridade e na santa alegria» (Ad Magnesios, 6-7: PL 5, 667). Como é importante este testemunho de união fraterna num mundo que se vê frequentemente fragmentado e dilacerado pelas divisões! Todo o esforço feito para construir pontes entre comunidades e instituições eclesiais, paroquiais e diocesanas aparecerá como gesto profético da Igreja no Iraque e como resposta fecunda à oração de Jesus para que todos sejam um só (cf. Jo 17, 21; Ecclesia in Medio Oriente, 37).

Iraque: diferenças não devem gerar conflitos, mas cooperação, diz Papa às autoridades


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
 AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, A SOCIEDADE CIVIL 
E O CORPO DIPLOMÁTICO

DISCURSO DO SANTO PADRE

Palácio Presidencial em Bagdá
Sexta-feira, 5 de março de 2021


Senhor Presidente,
Membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Ilustres Autoridades,
Representantes da sociedade civil,
Senhoras e senhores!

Sinto-me agradecido pela oportunidade de fazer esta Visita, longamente esperada e desejada, à República do Iraque, pela possibilidade de vir a esta terra, berço duma civilização estreitamente ligada, através do Patriarca Abraão e de numerosos profetas, à história da salvação e às grandes tradições religiosas do Judaísmo, Cristianismo e Islão. Expresso a minha gratidão ao Senhor Presidente Salih pelo convite e as amáveis palavras de boas-vindas que me dirigiu em nome também das outras Autoridades e do seu amado povo. De igual modo saúdo os membros do Corpo Diplomático e os representantes da sociedade civil.

Saúdo com afeto os bispos e os presbíteros, os religiosos e as religiosas e todos os fiéis da Igreja Católica. Venho como peregrino para os animar no testemunho de fé, esperança e caridade que dão no meio da sociedade iraquiana. Saúdo também os membros das outras Igrejas e Comunidades eclesiais cristãs, os seguidores do Islão e os representantes de outras tradições religiosas. Que Deus nos faça caminhar juntos, como irmãos e irmãs, na «forte convicção de que os verdadeiros ensinamentos das religiões convidam a permanecer ancorados aos valores da paz, (...) do conhecimento mútuo, da fraternidade humana e da convivência comum» (Francisco e Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a Fraternidade Humana, Abu Dhabi, 4/II/2019).

A minha visita acontece num momento em que o mundo inteiro está procurando sair da crise pandémica de Covid-19, que não só atingiu a saúde de muitas pessoas, mas provocou também o deterioramento das condições sociais e económicas já contusas por fragilidade e instabilidade. Esta crise requer da parte de cada um esforços conjuntos para se realizar os inúmeros passos necessários, incluindo uma justa distribuição das vacinas para todos. Mas não basta! Esta crise é sobretudo um apelo a «repensar os nossos estilos de vida, (...) o sentido da nossa existência» (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 33). Trata-se de sair deste tempo de provação melhores do que éramos antes; de construir o futuro mais sobre o que nos une do que sobre o que nos divide.

Nas últimas décadas, o Iraque sofreu os infortúnios das guerras, o flagelo do terrorismo e conflitos sectários muitas vezes baseados num fundamentalismo incapaz de aceitar a convivência pacífica de vários grupos étnicos e religiosos, de ideias e culturas diferentes. Tudo isto trouxe morte, destruição, ruínas ainda visíveis… E não só a nível material! Os danos são ainda mais profundos, quando se pensa nas feridas dos corações de tantas pessoas e comunidades que precisarão de anos para se curar. E aqui, dentre tantos que sofreram, não posso deixar de lembrar os yazidis, vítimas inocentes duma barbárie insensata e desumana, perseguidos e mortos por causa da sua filiação religiosa, estando em risco a sua própria identidade e sobrevivência. Ora, só se conseguirmos olhar-nos uns aos outros, com as respetivas diferenças, como membros da mesma família humana, é que podemos iniciar um efetivo processo de reconstrução e deixar às gerações futuras um mundo melhor, mais justo e mais humano. A propósito, a diversidade religiosa, cultural e étnica, que há milénios caracteriza a sociedade iraquiana, é um recurso precioso de que lançar mão, e não um obstáculo a ser eliminado. Hoje o Iraque é chamado a mostrar a todos, especialmente no Médio Oriente, que as diferenças, em vez de gerar conflitos, devem cooperar harmoniosamente na vida civil.

A convivência fraterna precisa do diálogo paciente e sincero, tutelado pela justiça e o respeito do direito. Não é uma tarefa fácil: exige esforço e empenho por parte de todos para superar rivalidades e contrastes e dialogar a partir da identidade mais profunda que temos: a de filhos do único Deus e Criador (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Nostra aetae, 5). Com base neste princípio, a Santa Sé não se cansa de apelar às Autoridades competentes no Iraque, como noutros lugares, para que concedam a todas as comunidades religiosas reconhecimento, respeito, direitos e proteção. Congratulo-me com os esforços já empreendidos neste sentido e uno a minha voz à dos homens e mulheres de boa vontade para pedir que os mesmos continuem em benefício do país.

Numa sociedade que se distingue pela unidade fraterna, os seus membros vivem solidariamente entre si. «A solidariedade ajuda-nos a ver o outro (…) como nosso próximo, companheiro de viagem» (Francisco, Mensagem para o LIV Dia Mundial da Paz, 1/I/2021, 6). É uma virtude que nos leva a praticar gestos concretos de cuidado e serviço, com particular atenção aos mais vulneráveis e necessitados. Penso naqueles que perderam familiares e entes queridos, casa e bens primários, por causa da violência, da perseguição e do terrorismo; mas penso também em todas as pessoas que lutam diariamente à procura de segurança e dos meios necessários para sobreviver, enquanto aumentam desemprego e pobreza. «O facto de nos sabermos responsáveis pela fragilidade dos outros» (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 115) deveria inspirar todos os esforços para criar oportunidades concretas tanto no plano económico como no campo da educação, e também no cuidado da criação, a nossa casa comum. Depois duma crise, não basta reconstruir; é preciso fazê-lo bem, de modo que todos possam ter uma vida digna. Duma crise, não se sai igual ao que se era antes: sai-se ou melhor ou pior.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Após protestos, Dória recua e reconhece religião como atividade essencial



O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou nesta segunda-feira, 1º, que as atividades religiosas foram incluídas na lista de serviços essenciais durante a pandemia do coronavírus. Assim como as outros serviços, os templos religiosos deverão respeitar as determinações da Vigilância Sanitária e os protocolos da Secretaria da Saúde. “Esperança, fé e oração”, disse o governador durante o anúncio. O decreto foi assinado por Doria nesta segunda e será publicado no Diário Oficial do Estado na terça-feira, 2. Durante a coletiva de imprensa, ele afirmou que o decreto irá virar uma Lei.

“Eu entendo que as igrejas, de qualquer religião, tem um papel essencial, sim, evidentemente obedecendo os cuidados necessários e as recomendações feitas pela Vigilância Sanitária. Entendo que a oração ajuda muito você a aumentar sua resiliência, sua resistência e esperança em relação ao futuro”, justificou Doria. A fase vermelha do Plano São Paulo, no entanto, já permitia a realização de cultos e missas, desde que respeitado os protocolos de distanciamento social, uso de máscaras e aferição da temperatura.

Palavra de Vida: “Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, ensinai-me as vossas veredas” (Sl 25 [24], 4)


Este salmo apresenta-nos um homem que se sente cercado por perigos e ameaças. Ele precisa de encontrar o caminho certo, que o leve finalmente para fora de perigo. Mas quem o poderá ajudar?

Consciente da sua fragilidade, finalmente levanta o olhar e clama pelo Senhor, pelo Deus de Israel, que nunca abandonou o Seu povo, mas sempre o guiou no longo caminho da travessia do deserto até à Terra Prometida.

A experiência dessa caminhada faz renascer no viandante a esperança. É uma ocasião privilegiada para uma nova intimidade com Deus, para nos podermos abandonar confiadamente no Seu amor fiel, apesar da nossa infidelidade.

Na linguagem bíblica, caminhar com Deus é também uma lição de vida, é aprender a reconhecer o Seu desígnio de salvação.

“Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, 
ensinai-me as vossas veredas”

Muitas vezes, depois de termos percorrido os caminhos da nossa suposta autossuficiência, encontramo-nos desorientados, confusos, mais conscientes dos nossos limites e das nossas faltas. Gostaríamos de encontrar de novo a bússola da vida e, com ela, o percurso até à meta.

Este Salmo ajuda-nos muito. Impele-nos a fazer uma experiência nova ou renovada de encontro pessoal com Deus, de confiança na Sua amizade.

Dá-nos coragem para sermos dóceis aos Seus ensinamentos, que nos convidam constantemente a sair de nós mesmos para O seguir pelo caminho do amor, caminho que Ele próprio percorreu, antes de nós, para vir ao nosso encontro.

Este Salmo pode ser uma oração, para nos acompanhar ao longo do dia e fazer de cada momento, alegre ou doloroso, uma etapa do nosso caminho.

1ª Pregação da Quaresma: "Convertei-vos e crede no Evangelho".


“CONVERTEI-VOS E CREDE NO EVANGELHO!”
Primeira Pregação, Quaresma de 2021
 

Como de costume, dedicamos esta primeira meditação a uma introdução geral ao tempo quaresmal, antes de entrar no tema específico no programa, uma vez concluído o retiro espiritual da Cúria. No Evangelho do primeiro domingo da Quaresma do ano B, ouvimos o anúncio programático com o qual Jesus inicia seu ministério público: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!”(Mc 1,15). Vamos meditar sobre este apelo sempre presente de Cristo.

De conversão, fala-se em três momentos ou contextos diversos do Novo Testamento. Cada vez, vem à luz uma sua componente nova. Juntas, as três passagens nos dão uma ideia completa sobre o que é a metanóia evangélica. Não está dito que devemos experimentá-las todas as três juntas, com a intensidade. Há uma conversão para cada estação da vida. O importante é que cada um de nós descubra a que serve para si neste momento.

Convertei-vos, isto é, crede!

A primeira conversão é aquela que ressoa no início da pregação de Jesus e que está resumida nas palavras: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Procuremos entender o que significa aqui a palavra conversão. Antes de Jesus, converter-se significava sempre um “voltar atrás” (o termo hebraico, shub, significa inverter a rota, voltar nos próprios passos). Indicava o ato de quem, a um certo ponto da vida, percebe estar “fora do rumo”. Então se detém, reconsidera; decide voltar à observância da lei e de retornar à aliança com Deus. A conversão, neste caso, tem um significado fundamentalmente moral e sugere a ideia de algo penoso a se cumprir: mudar costumes, deixar de fazer isso ou aquilo...

Nos lábios de Jesus, este significado muda. Não porque ele se divirta em mudar os significados das palavras, mas porque, com sua vinda, mudaram as coisas. “Cumpriu-se o tempo, e está próximo o Reino de Deus!”. Converter-se não significa mais voltar atrás, à antiga aliança e à observância da lei, mas significa mais dar um salto adiante e entrar no Reino, agarrar a salvação que veio aos homens gratuitamente, por livre e soberana iniciativa de Deus.

“Arrependei-vos e crede” não significam duas coisas diversas e sucessivas, mas a mesma ação fundamental: convertei-vos, isto é, crede! «Prima conversio fit per fidem», escreveu S. Tomás de Aquino: a primeira conversão consiste em crer.[1] Tudo isso requer uma verdadeira “conversão”, uma mudança profunda no modo de conceber as nossas relações com Deus. Exige passar da ideia de um Deus que pede, que ordena, que ameaça, à ideia de um Deus que vem com as mãos cheias para se dar todo a nós. É a conversão da “lei” à “graça”, tão querida a São Paulo.

“Se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças...”

Escutemos agora a segunda passagem em que, no Evangelho, volta a se falar de conversão:

“Naquela hora, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram: ‘Quem é o maior no Reino dos Céus?’ Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse: ‘Em verdade vos digo, se não vos converterdes e nãos vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus’” (Mt 18,1-3).

Esta vez, sim, que converter-se significa voltar atrás, até mesmo a quando se era criança! O próprio verbo usado, strefo, indica inversão de marcha. Esta é a conversão de quem já entrou no Reino, acreditou no evangelho, já está há tempos no serviço de Cristo. É a nossa conversão!

O que supõe a discussão sobre quem é o maior? Que a preocupação maior não é mais o reino, mas o próprio lugar nele, o próprio eu. Cada um deles tinha algum título para aspirar a ser o maior: Pedro tinha recebido a promessa do primado; Judas, a caixa; Mateus podia dizer que tinha deixado mais do que os outros; André, que tinha sido o primeiro a segui-lo; Tiago e João, que estiveram com ele no Tabor... Os frutos desta situação são evidentes: rivalidades, suspeitas, confrontos, frustração.

Jesus, de imediato, tira o véu. Nem como primeiros, deste modo nem se entra no reino! O remédio? Converter-se, mudar completamente perspectiva e direção. A que Jesus propõe é uma verdadeira revolução copernicana. É preciso “descentralizar-se de si mesmo e recentralizar-se em Cristo”.

Jesus fala mais simplesmente de um tornar-se criança. Tornar-se criança, para os apóstolos, significava voltar a como eram no momento do chamado às margens do lago ou no posto de arrecadação: sem pretensões, sem títulos, sem confrontos entre si, sem invejas, sem rivalidades. Ricos apenas de uma promessa (“Farei de vós pescadores de homens”) e de uma presença, a de Jesus; a quando eram ainda companheiros de aventura, não concorrentes pelo primeiro lugar. Também para nós, tornar-se criança significa voltar ao momento em que descobrimos sermos chamados, ao momento da ordenação sacerdotal, da profissão religiosa, ou do primeiro verdadeiro encontro pessoal com Jesus. Quando dizíamos: “Só Deus basta!”, e acreditávamos.

“Não és frio, nem quente”

O terceiro contexto em que recorre, martelante, o convite à conversão, é dado pelas sete cartas às Igrejas do Apocalipse. As sete cartas são dirigidas a pessoas e comunidades que, como nós, vivem há tempos a vida cristã e, ainda mais, exercem nelas uma papel-guia. São endereçadas ao anjo das diversas Igrejas: “Ao anjo da igreja que está em Éfeso”. Não se explica este título senão em referência, direta ou indireta, ao pastor da comunidade. Não se pode pensar que o Espírito Santo atribua a anjos a responsabilidade das culpas e desvios que são denunciados nas diversas igrejas, muito menos que o convite à conversão seja dirigido a anjos ao invés de homens.

Das sete cartas do Apocalipse, a que deve nos fazer refletir mais do que as outras é a carta à Igreja de Laodiceia. Conhecemos seu tom severo: “Conheço as tuas obras. Não és frio, nem quente... porque és morno, nem frio nem quente, estou para vomitar-te de minha boca... Sê zeloso, pois, e arrepende-te” (Ap 3,15ss). Aqui, trata-se da conversão da mediocridade e da tibieza.

Na história da santidade cristã, o exemplo mais famoso da primeira conversão, a do pecado à graça, é Santo Agostinho; o exemplo mais instrutivo da segunda conversão, a da tibieza ao fervor, é Santa Teresa d’Ávila. O que ela diz de si em seu Livro da Vida é certamente exagerado e ditado pela delicadeza da sua consciência, mas, em todo caso, pode servir a todos nós para um útil exame de consciência.

“Comecei, pois, assim, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em ocasião, a pôr novamente em risco a minha alma [...]. As coisas de Deus me davam prazer, e eu não sabia desvencilhar-me daquelas do mundo. Queria conciliar estes dois inimigos entre si e tão contrários: a vida do espírito com os justos e os passatempos dos sentidos”.

O resultado deste estado era uma profunda infelicidade:

“Caía e me reerguia, e me reerguia tão mal que voltava a cair. Eu estava tão por baixo em relação à perfeição, que quase não me dava conta dos pecados veniais, e não temia os mortais como deveria, pois não fugia de seus perigos. Posso dizer que a minha vida era das mais penosas que se possam imaginar, pois eu não me deleitava nem com Deus, nem me sentia contente com o mondo. Quando estava nos passatempos mundanos, o pensamento daquilo que eu devia a Deus me fazia transcorrê-los com pena; e quando estava com Deus, vinham-se a distrair os afetos do mundo”[2].

Muitos poderiam descobrir nesta análise o real motivo da própria insatisfação e descontentamento.

Falamos, portanto, de conversão da tibieza. São Paulo exortava os cristãos de Roma com as palavras: “Não sejais lentos na solicitude, sede fervorosos no espírito” (Rm 12,11). Seria de se replicar: “Mas, caro Paulo, justamente aqui está o problema! Como passar da tibieza ao fervor, se alguém fatalmente aí caiu?” Nós podemos, pouco a pouco, escorregar na tibieza, como se cai na areia movediça, mas não podemos sair sozinhos, quase puxando-nos pelos cabelos.

Esta nossa objeção nasce do fato de que negligenciamos ou interpretamos mal o acréscimo “no espírito” (en pneumati), que o Apóstolo põe na exortação: “sede fervorosos”. Em Paulo, a palavra “Espírito” indica, ou inclui, quase sempre uma referência ao Espírito Santo. Jamais se trata exclusivamente do nosso espírito ou da nossa vontade, exceto em 1Ts 5,23, onde indica uma componente do homem, ao lado do corpo e da alma.

Somos herdeiros de uma espiritualidade que concebia o caminho de perfeição segundo as três etapas clássicas: via purgativa, via iluminativa e via unitiva. Em outras palavras, é preciso exercitar-se longamente na renúncia e na mortificação, antes de poder experimentar o fervor. Há uma grande sabedoria e uma experiência secular à base de tudo isso, e ai de se pensar que tudo esteja superado. Não, não está superado, mas não é a única via que segue a graça de Deus. Um esquema assim rígido denota uma lenta e progressiva mudança do acento da graça ao esforço do homem. Segundo o Novo Testamento, há uma circularidade e uma simultaneidade, por isso, se é verdade que a mortificação é necessária para chegar ao fervor do Espírito, é também verdade que o fervor do Espírito é necessário para chegar a praticar a mortificação. Uma ascese assumida sem um forte impulso inicial do Espírito seria um esforço morto, e não produziria nada senão “vaidade da carne”. O Espírito nos é dado para estarmos condições de nos mortificarmos, mais do que como prêmio por termos nos mortificado. “Se, pelo Espírito, matardes o procedimento carnal, então vivereis”, escreve o Apóstolo (Rom 8,13). Esta segunda via que vai do fervor à ascese e à prática das virtudes foi a via que Jesus fez percorrer os seus apóstolos. Escreve o grande teólogo bizantino Cabásilas:

“Os apóstolos e pais da nossa fé tiveram a vantagem de serem instruídos em toda doutrina e, ainda mais, do Salvador em pessoa. [...] Contudo, mesmo tendo conhecido tudo isso, enquanto não foram batizados [em Pentecostes, com o Espírito], não mostraram nada de novo, de nobre, de espiritual, de melhor do que o antigo. Mas quando veio para eles o batismo e o Paráclito irrompeu em suas almas, então se tornaram novos e abraçaram uma vida nova, foram guia para os demais e fizeram arder a chama do amor por Cristo em si nos outros. [...] Do mesmo modo, Deus conduz à perfeição todos os santos vindos depois deles”[3].

Os Padres da Igreja expressavam tudo isso com a sugestiva imagem da “sóbria embriaguez”. O que levou muitos deles a retomar este tema, já desenvolvido por Fílon de Alexandria[4], foram as palavras de Paulo aos Efésios:

“Não vos embriagueis com vinho, que leva ao descontrole, mas enchei-vos do Espírito: entoai juntos salmos, hinos e cânticos espirituais, cantai e salmodiai ao Senhor, de todo o coração” (Ef 5,18-19).

Ratzinger repete: "Não há dois Papas"



A renúncia ao pontificado, feita oito anos atrás, foi uma "escolha difícil", mas feita "em plena consciência", da qual ele não se arrependeu de forma alguma. Mais uma vez o  Papa emérito Bento XVI, embora em voz baixa, repete o que já disse várias vezes para desmentir os "amigos um tanto fanáticos" que continuam a ver "teorias conspiratórias" por trás da decisão de deixar a Cátedra de Pedro, retirando-se por razões de velhice. Isto foi reiterado por Joseph Ratzinger em uma entrevista ao jornal Corriere della Sera.

"Foi uma decisão difícil", explicou o Papa emérito, "mas tomei-a em plena consciência, e acredito que fiz muito bem". Alguns de meus amigos um tanto "fanáticos" ainda estão irritados, eles não quiseram aceitar minha escolha. Acreditam nas teorias de conspiração: alguns disseram que foi por causa do escândalo Vatileaks, outros por causa de um complô da lobby gay, outros ainda por causa do caso do teólogo conservador Lefebvrian Richard Williamson. Eles não querem acreditar em uma escolha feita conscientemente. Mas minha consciência está limpa".