Após a promulgação da mais recente Carta Apostólica do Papa Francisco, Traditionis Custodes, em forma de Motu Próprio, muitos católicos se manifestaram sobre o documento. Alguns contra, outros a favor. O fato é que a maioria dos católicos que acompanhou os argumentos dos dois lados ainda não entendeu o que este documento significa na prática.
Fizemos esta análise no intuito de responder alguns destes questionamentos que pairam pela mente destes católicos.
O que é um Motu Próprio?
Motu próprio é uma das espécies normativas da Igreja Católica, expedido diretamente pelo próprio Papa. A expressão motu próprio poderia ser traduzida como “de sua iniciativa própria” o que se opõe ao conceito de rescrito que é, em regra, uma norma expedida em resposta a uma dada situação. Portanto este Motu Próprio é um documento que gera normas de iniciativa do próprio papa.
O que é a Missa Tradicional (ou Tridentina)?
O rito romano é a maneira como se celebra a Santa Missa (Missal romano). Dentro do rito romano atual, existem duas formas: a forma ordinária (a mais utilizada e a mais nova, instaurada pelo Missal Romano de 1970, hoje em sua 3ª edição) e a forma extraordinária (também conhecida como a Missa Tradicional ou Missa Tridentina ou de São Pio V, ou seja, aquele ritual previsto no Missal Romano de 1570, com as sucessivas adições feitas até a última edição de 1962).
A Missa Tridentina é rezada como foi transmitida pelos apóstolos, com algumas pouquíssimas diferenças e alterações. Na Missa Tradicional, a posição do padre é voltada, na maior parte do tempo, para o altar, todos ficam de frente para o altar. É rezada em Latim e todos ficam mais tempo ajoelhados e em silêncio. É uma liturgia predominantemente penitencial. Há uma preferência também pela música sacra, canto gregoriano e a polifonia. Outra especificidade é que as mulheres procuram estar mais modestas, sempre estão usando véu sobre o cabelo; Essas são algumas das diferenças mais perceptíveis para a missa nova.
Em 2007 o papa Bento XVI publicou o Motu Proprio Summorum Pontificum que colocou novamente esta forma de celebrar a missa em destaque.
Qual era a intenção de Bento XVI ao publicar o Motu Proprio Summorum Pontíficum em 2007?
Em seu pontificado, Bento XVI desempenhou uma busca constante por uma reforma da reforma liturgica. Percebendo os graves problemas na liturgia e até mesmo na filosofia/teologia em todo mundo, tentou, com seu exemplo, popularizar o zelo pela liturgia e a eucaristia, além de “descriminalizar” e restaurar a tradição na Igreja.
Com a publicação do Summorum Pontíficum, o Papa Bento XVI queria resolver a sobreposição do Missal do Vaticano II sem a abolição do anterior. Basicamente ele permitiu que os fiéis tivessem direito de solicitar celebrações da missa e dos outros sacramentos conforme os ritos e fórmulas anteriores ao Concílio Vaticano II.
Qual a importância do Summorum Pontíficum?
Através do Summorum Pontificum muitos grupos e comunidades tradicionais tiveram respaldo para solicitar a missa na forma tradicional e, desde então, surgiram muitos grupos e comunidades tradicionais, inclusive muitos padres que passaram a se interessar pela celebração da missa tradicional.
*Importante ressaltar que estes grupos que surgiram a partir do incentivo de Bento XVI, eram grupos que seguiam o papa e o magistério, sempre submissos à igreja. E que os grupos que se opunham ao papa e ao Vaticano II já existiam muito antes da promulgação do Summorum Pontificum.
O Summorum Pontíficum de Bento XVI era respeitado?
Nem sempre… Mesmo com o documento que estabelecia que qualquer sacerdote pudesse celebrar livremente a missa tradicional, muitos bispos e “conselhos diocesanos” não respeitavam a autoridade do papa, e frequentemente perseguiam os padres/comunicades tradicionais.
Ainda assim havia um lado bom, pois muitos bispos permitiam a missa “contra a própria vontade”.
Qual a intenção do Novo Motu Proprio Traditionis Custodes do Papa Francisco?
O Papa Francisco fez mudanças radicais na carta apostólica, emitida em 16 de julho de 2021, em forma de motu proprio “Traditionis custodes” (“Guardiães da Tradição”), sobre o uso da liturgia romana anterior a 1970, restringindo as missas celebradas sob a forma extraordinária do rito romano.
O uso da forma extraordinária depende agora da autorização do bispo local a grupos que queiram a Missa tradicional (art. 2), só podendo ocorrer em igrejas em locais determinados por ele que não sejam igrejas paroquiais (art. 3, § 2), e não poderão ser autorizados novos grupos (art. 3, § 6) ou novas paróquias pessoais (art. 3, § 2).
Em teoria a sua decisão se baseia na “defesa da unidade do Corpo de Cristo” e visa combater “o uso distorcido que foi feito desta faculdade é contrário às intenções que levaram a conceder a liberdade de celebrar a Missa com o Missale Romanum de 1962”, ou seja, com esse maior controle o Papa pretende fazer que as missas tradicionais não se tornem um reduto de católicos dissidentes, que não aceitam o Magistério da Igreja, rejeitam a validade da Missa Nova, do Concilio Vaticano II e dos últimos papas.
O texto determina que os bispos “se assegurem de que estes grupos não neguem a validade do Vaticano II e do Magistério dos sumos pontífices”.
O novo Motu Próprio do Papa Francisco proíbe a missa tradicional?
Na teoria não. No artigo segundo deste novo documento, o Papa Francisco afirma que é “competência exclusiva” do bispo autorizar o uso do Missal Romano de 1962 na sua diocese, isso significa dará uma autoridade para os bispos poderem proibir e suprimir comunidades tradicionais, o que, por sinal, já acontecia com uma certa frequência em muitas dioceses, mesmo durante o motu próprio anterior, mas agora terão autoridade dada pelo Vaticano.
De acordo com o documento, o bispo deve indicar um ou mais lugares onde se pode usar a liturgia na forma extraordinária, “mas não em igrejas paroquiais e sem erigir novas paróquias pessoais”.
O Papa também manda que os bispos locais verifiquem se as paróquias pessoais já estabelecidas para que as missas sejam celebradas no rito antigo “são eficazes para o crescimento espiritual e determine se devem ou não ser mantidas”. Fica proibida a criação de novos grupos ou a ereção de novas paróquias pessoais.
A missa tradicional corre “risco de extinção”?
Sim. Por dois motivos.
Primeiro Motivo:
Muitos bispos que antes já proibiam a missa tradicional em sua diocese, desobedecendo o Summorum Pontificum, agora terão autoridade para eliminar qualquer vestígio da tradição em suas dioceses. E mesmo aqueles bispos que antes permitiam contra a própria vontade, agora poderão simplesmente desautorizar as missas vigentes, tudo isso sem uma instância superior para se recorrer.
Certamente haverão bons bispos que darão liberdade para que os padres celebrem livremente a missa tradicional em suas dioceses, porém, contudo, todavia, nós sabemos que, além de serem poucos, qualquer bispado possui prazo de validade, seja por remanejamento ou por aposentadoria.
A partir deste cenário, concluímos que a simples mudança de um bispo poderá mudar totalmente o cenário de uma diocese, e com isso todas as autorizações poderão ser revogadas, desse modo, dioceses que hoje têm a liberdade para viver a tradição, podem perder a concessão com uma simples mudança de bispo.
Alguns exemplos que podemos citar são as dioceses de Ciudad del Este (Paraguai) e Anápolis (GO) que mesmo durante a vigência do Summorum Pontificum sofreram grandes mudanças pelos bispos que sucederam seus antecessores mais tradicionais.
Segundo Motivo:
O quarto artigo do documento determina que os sacerdotes ordenados após 16 de julho de 2021, que desejem oferecer a forma extraordinária da Missa, terão de apresentar um pedido formal ao bispo diocesano, o qual consultará previamente a Sé Apostólica antes de conceder a autorização.
O quinto artigo estabelece que os padres ordenados antes de 16 de julho de 2021 e que já oferecem a Missa tradicional devem pedir autorização ao seu bispo diocesano para “continuarem a usufruir desta faculdade”.
O sexto artigo informa que, a partir da data de 16 de julho de 2021, “os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, estabelecidos pela Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, são de competência da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica”.
Portanto Vaticano reservou para si a competência para autorização de novas comunidades e carismas, mas de modo especial as comunidades de cunho tradicional, como já haviam determinado anteriormente e reiteram neste novo motu próprio.
Portanto a partir de agora será muito mais difícil o surgimento de novos grupos e comunidades cujo carisma seja viver a tradição, uma vez que os bispos locais não têm mais autoridade para autorizá-los.
Por que a restrição à missa tradicional causou tanto espanto?
O principal motivo é porque a Missa Tradicional é um tesouro da Igreja e, aqueles que a conhecem, sabem sua celebração é algo positivo em todos os aspectos para a Santa Igreja, portanto não existe motivo para restringir sua celebração e, que ao contrário do que foi feito, deveria ser motivada.
Nas comunidades em que há maior frequência à missa tradicional, as estatísticas em relação a diversos aspectos da vida cristã são sempre superiores. Maior frequência aos sacramentos, grande número de vocações sacerdotais, religiosas, missionárias. Maior consciência da doutrina, etc.
É verdade que existem católicos tradicionais que não aceitam a autoridade do Papa e o Concílio Vaticano II, e consequentemente não estão sob o Magistério da Igreja? Esse Motu Próprio foi uma punição para eles?
Sim, existem católicos que não aceitam o papa, e também não aceitam o Vaticano II. Esses “católicos” popularmente chamados de “radtrads”, entretanto, não têm o costume de frequentar paróquias, mas participam de missas com padres e comunidades que também não estão sob a autoridade do Vaticano. Eles participam da missa exclusivamente no rito tradicional, e também não aceitam a missa nova, mesmo que seja celebrada com toda piedade, sem abusos litúrgicos e de forma solene. Nos locais onde não há missa, eles preferem assistir pelo youtube a participar da missa nova.
O maior argumento deste motu próprio segue o raciocínio de querer exterminar estes grupos e comunidades, porém, o que não se levou em consideração é que eles já não aceitam a autoridade do Vaticano, e consequentemente não serão afetados pelo novo motu próprio. Eles continuarão frequentando suas missas normalmente nos locais onde já frequentavam.
Esse motu próprio afetará, pelos motivos já citados, principalmente padres e fiéis que aceitam o Concílio Vaticano II e que estão sob a autoridade do Papa, e deste modo estão sob a jurisdição do do Vaticano.