“MYSTERIUM FIDEI!”
Reflexões sobre a Liturgia
Quarta Pregação da Quaresma de 2023
Após aquelas sobre a evangelização e sobre a teologia, gostaria de propor hoje algumas reflexões sobre a liturgia e sobre o culto da Igreja, sempre com o intuito de dar uma contribuição, por mais modesta e indireta, aos trabalhos do Sínodo. A liturgia é o ponto de chegada, aquilo a que tende a evangelização. Na parábola evangélica, os servidores são enviados pelas estradas e encruzilhadas para convidar todos ao banquete. A Igreja é a sala do banquete e a Eucaristia, “a ceia do Senhor” (1Cor 11,20) nela preparada.
Iniciemos, em nossas reflexões, de uma palavra da Carta aos Hebreus: Quem se aproxima de Deus – diz ela – deve crer que ele existe” (Hb 11,6). Antes ainda, contudo, de crer que ele existe (que é já um aproximar-se), é necessário sentir ao menos o “aroma” da sua existência. Isto é o que chamamos de senso do sagrado e que um famoso autor chama “o numinoso”, qualificando-o como “mistério tremendo e fascinante”[1]. Santo Agostinho antecipou surpreendentemente esta descoberta da moderna Fenomenologia religiosa. Dirigindo-se a Deus, nas Confissões, diz: “Quando te conheci pela primeira vez..., tremi de amor e de assombro: contremui amore et orrore”[2]. E ainda: “Estremeço e inflamo” (et inhorresco et inardesco): estremeço pela distância, inflamo pela semelhança”[3].
Se viesse a faltar completamente o senso do sagrado, viria a faltar o próprio terreno, ou o clima, em que desabrocha o ato de fé. Charles Péguy escreveu que “a assustadora penúria e indigência do sagrado é a marca profunda do mundo moderno”. Se caiu o senso do sagrado, dele permaneceu, contudo, o lamento que alguém definiu, de forma laica, “saudade do Totalmente Outro” (Max Horkheimer).
Os jovens, mais do que todos, percebem esta necessidade de serem transportados para fora da banalidade do cotidiano, de escapar, e inventaram seus próprios modos de satisfazer esta necessidade. Foi observado por estudiosos da psicologia de massa que os jovens que participaram há um tempo de famosos shows de rock, como os de Elvis Presley ou o Festival de Woodstock de 1969, eram transportados para fora do seu mundo cotidiano e projetados em uma dimensão que lhes dava a impressão de algo transcendente e sagrado.
Não diversamente, acontece para aqueles que participam hoje dos megashows de cantores e grupos musicais. O fato de estarem em muitos e vibrarem em uníssono com uma massa, amplifica infinitamente a própria emoção. Tem-se o sentimento de fazer parte de uma realidade diversa, superior, que dá lugar a uma espécie de “devoção”. O termo “fã” (abreviação, como sabemos de fanatic, isto é, fanático) é o corresponde secularizado de “devoto”. A qualificação de “ídolos” dada aos seus queridos tem uma profunda correspondência com a realidade.
Essas reuniões de massa podem ter o seu valor artístico e por vezes veicular mensagens nobres e positivas, como a paz e o amor. São “liturgias”, no sentido originário e profano do termo, isto é, espetáculos oferecidos ao público, por dever, ou para obter o seu favor. Não têm, contudo, nada a ver com a autêntica experiência do sagrado. No título “Divina liturgia”, o adjetivo “divina” foi acrescentado justamente para distingui-la das liturgias humanas. Há uma diferença qualitativa entre as duas coisas.
Tentemos ver por quais meios a Igreja pode ser, para os homens de hoje, o lugar privilegiado de uma verdadeira experiência de Deus e do transcendente. A primeira ocasião a que se pensa, também pela semelhança externa, são a grandes reuniões promovidas pelas várias Igrejas cristãs. Pensemos, por exemplo, nas Jornadas Mundiais da Juventude, e nos inúmeros eventos – congressos, convenções e convocações – dos quais tomam parte dezenas (às vezes centenas) de milhares de pessoas em todo o mundo. É incontável o número de pessoas pelas quais tais eventos foram ocasião de uma forte experiência de Deus e o início de uma relação nova e pessoal com Cristo.
O que faz a diferença entre este tipo de encontros de massa e aqueles acima descritos é que aqui, o protagonista não é uma personalidade humana, mas Deus. O senso do sagrado que se experimenta neles é o único verdadeiramente genuíno, e não uma substituição, pois é suscitado pelo Santo dos Santos e não por um “ídolo”.
Todavia, são eventos extraordinários, dos quais nem todos e nem sempre podem participar. A ocasião por excelência e mais comum, para uma experiência do sagrado na Igreja, é a liturgia. A liturgia católica se transformou, em pouco tempo, de ação com forte traço sacral e sacerdotal, a ação mais comunitária e participada, onde todo o povo de Deus tem a sua parte, cada um com o próprio ministério.
Gostaria de tentar dizer como eu vejo e explico a mim mesmo esta mudança. Não é absolutamente para me colocar como juiz do passado, mas para compreender melhor o presente. O presente, na Igreja, jamais é negação do passado, mas seu enriquecimento; ou ainda, como neste caso, superação do passado recente para recuperar o mais antigo e originário.
Na evolução da Igreja entendida como povo, acontece algo parecido ao que acontece à Igreja entendida como edifício. Pensemos em algumas célebres basílicas e catedrais: quantas transformações arquitetônicas no curso dos séculos para responder às necessidades e aos gostos de cada época! Mas é sempre a mesma Igreja, dedicada ao mesmo santo. Se há uma tendência geral em ato em época moderna, é aquela de reportar tais edifícios – quando isso é possível e vale a pena – à sua estrutura e estilo originários. A mesma tendência está em ato para a Igreja como povo de Deus e, particularmente, para a sua liturgia. O Concílio Vaticano II foi um seu momento decisivo, mas não o início absoluto. Ele colheu os frutos de muito trabalho precedente.
Certamente, não é o caso de adentrarmos aqui na história secular da Liturgia – outros o fizeram e, justamente do ponto de vista que nos interessa[4]. Gostaria apenas de evidenciar a evolução que se refere ao senso do sagrado. No início da Igreja e para os três primeiros séculos, a liturgia é realmente uma “liturgia”, isto é, ação do povo (laos, povo, está entre as componentes etimológicas de leitourgia). De São Justino, da Traditio Apostolica de Santo Hipólito e outras fontes do tempo, obtemos uma visão da Missa certamente mais próxima àquela reformada de hoje, do que aquela dos séculos que temos às costas. O que aconteceu depois de então? A resposta é, em uma palavra que não podemos evitar, mesmo se exposta a abuso: clericalização! Em nenhum outro âmbito ela agiu mais vistosamente do que na liturgia.
O culto cristão e, particularmente, o sacrifício eucarístico, transformou-se rapidamente, no Oriente e no Ocidente, de ação do povo em ação do clero. Por séculos e séculos, a parte central da Missa, o Cânon, era pronunciado em latim pelo sacerdote a voz baixa, atrás de uma cortina o um muro (um templo no templo!), fora da vista e da escuta do povo. O celebrante aumentava a voz apenas nas palavras finais do Cânon: “Per omnia saecula saeculorum”, e o povo respondia “Amém!” ao que não tinha ouvido e muito menos entendido. O único contato com a Eucaristia, anunciado pelo som dos sinos ou da campainha, era o momento da elevação da Hóstia. Há um evidente retorno ao que acontecia no culto do Antigo Testamento, quando o Sumo Sacerdote entrava no Sancta sanctorum, com incensos e sangue das vítimas, e o povo permanecia fora trêmulo, extenuado pelo senso da majestade e inacessibilidade de Deus.
O senso do sagrado é fortíssimo aqui, mas, após Cristo, é aquele o justo e genuíno? Esta é a pergunta crucial. Lemos na Carta aos Hebreus: De fato, não vos aproximastes... de um fogo palpável e ardente, de escuridão, treva e tempestade, da trombeta retumbante e do clamor das palavras... O espetáculo era tão medonho, que Moisés disse: “Estou apavorado e tremendo” (Ex 19,16-18; Dt 9,19). Vós, ao contrário, vos aproximastes... de Jesus, o mediador da nova aliança e da aspersão com um sangue mais eloquente que o de Abel (Hb 12,18-24). Cristo penetrou além do véu e não fechou o limite atrás de si (Hb 10,20).