Nos instantes seguintes à divulgação da decisão da Suprema Corte norte-americana de junho de 2022 que reverteu Roe v Wade e Planned Parenthood v Casey, as decisões de 1973 e 1992 que reconheciam um direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos, diversas lideranças pró-vida ressaltaram que aquele momento marcava não o fim da luta, mas o início da maior das batalhas pelo respeito à vida nascente. Primeiro, porque Dobbs v Jackson Women’s Health Organization não tornou o aborto ilegal; apenas afirmou que cabe a cada estado legislar sobre o tema, e por isso ainda haveria muita pressão política a fazer no nível estadual para defender o nascituro. Segundo, porque, para o movimento pró-vida, mais importante que tornar o aborto ilegal é fazer dele algo impensável.
Transformar o aborto em algo impensável não passa simplesmente por uma maior conscientização do que realmente é o aborto – a eliminação deliberada de um ser humano indefeso e inocente –, e dos requintes de crueldade envolvidos em sua realização. Trata-se, também, do estabelecimento de uma rede de apoio ampla e abrangente, de forma que nem chegue a passar pela mente de uma gestante a ideia de eliminar seu filho, tamanha a certeza de que ela será amparada ao levar a gravidez adiante, independentemente de sua situação. Por décadas o movimento abortista tentou colar nos pró-vida a pecha de “pró-nascimento”, insinuando que aos defensores da vida intrauterina importava apenas que o bebê pudesse nascer, sem a menor consideração pelo que seria dele e da mãe depois disso. A mera existência de inúmeras entidades que seguem apoiando mães em situação de vulnerabilidade muito tempo depois do nascimento do filho já é suficiente para desmentir essa acusação, mas agora um grupo de importantes conservadores norte-americanos propõe um passo adicional.
Uma sociedade que não fortaleça o vínculo matrimonial, que não valorize pais e mães, que não proteja as crianças desde o momento da concepção, que não aposte na conciliação entre trabalho e família está condenada a fracassar.
O think tank Centro de Ética e Políticas Públicas (EPPC) lançou um manifesto, assinado por pensadores de inegáveis credenciais conservadoras, como Ryan Anderson e Robert George, em defesa de políticas públicas de fortalecimento da família. “Famílias fortes são a base de uma sociedade saudável”, afirmam os signatários logo em seu início, reconhecendo a existência de “tendências culturais, políticas e econômicas” que estão afetando a entidade familiar e reduzindo as taxas de natalidade. Legislações que enfraquecem os vínculos familiares, isso quando não se tornam incentivo à dissolução dos laços que unem marido e mulher, além de leis e práticas que impedem pais e mães de equilibrar a vida profissional e familiar, tornaram-se comuns em boa parte do mundo. É prioritário, portanto, “empoderar mães e pais para que vivam melhor suas obrigações uns para com os outros, para com seus filhos e para com suas comunidades”, diz o manifesto.
Sem propor legislações específicas, os signatários propõem uma série de princípios, como políticas de licença-maternidade e licença-paternidade que permitam maior presença dos pais na primeira infância de seus filhos; modelos de jornada flexível para facilitar o equilíbrio entre trabalho e vida familiar; incentivo à inovação para baratear custos como habitação, saúde e educação; políticas tributárias e de programas sociais que beneficiem as famílias; proteção legal do nascituro, com garantia de apoio para mães e recém-nascidos; ou políticas que fortaleçam o vínculo matrimonial, evitando a desagregação que prejudica especialmente as crianças. São princípios que comunidades, estados ou países podem implantar de acordo com a realidade específica de cada lugar, com “criatividade, humildade e prudência”, diz o manifesto; e não se trata de desprezar o papel fundamental que a sociedade e o setor privado têm na construção desta rede de apoio amplo às famílias, mas de reconhecer que há situações em que políticas públicas são necessárias para complementar a ação das esferas inferiores, ou quando elas infelizmente não se mostram capazes de prover a necessária proteção às famílias.
Neste momento em que o ESG se tornou palavra de ordem no mundo empresarial e dos formuladores de políticas públicas, é hora de reconhecer que o F, de “família”, tem de ganhar prioridade. Uma sociedade que não fortaleça o vínculo matrimonial, que não valorize pais e mães, que não proteja as crianças desde o momento da concepção, que não aposte na conciliação entre trabalho e família está condenada a fracassar. Nessas sociedades, gestantes desesperadas continuarão a enxergar o aborto como uma saída possível – quando não a única saída – para sua situação. Líderes da sociedade civil, do setor produtivo e legisladores precisam olhar cuidadosamente para os princípios propostos pelo EPPC e buscar meios de concretizá-los. Quaisquer eventuais custos serão amplamente superados pelo efeito benéfico de termos famílias sólidas, conscientes e cumpridoras de seu papel.
Gazeta do Povo
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