Digamos que um ministro ou um outro marajá qualquer do governo Lula receba de presente de uma empreiteira de obras públicas, um dia desses, um apartamento triplex na praia das Astúrias, no centro do Guarujá. Ou, talvez, que uma outra empreiteira de obras pague as reformas de um sítio frequentado por outro ministro (ou pelo mesmo), com nota fiscal e tudo, incluindo adega e lago com pedalinho — na estância hidromineral de Atibaia, por exemplo. O que você acha, sinceramente, que iria acontecer? Pense dois minutos, ou até menos. O que o presidente da República iria dizer a respeito disso para o companheiro que ganhou os presentes? E o Supremo Tribunal Federal, ou alguma outra repartição da justiça, ou um juiz qualquer deste país — fariam o quê? O ministro seria demitido do cargo pelo presidente, na hora, com um discurso emocionado em prol da honestidade? Seria processado no STF, condenado no caso de ficar provada a sua culpa e colocado na cadeia para cumprir a pena? Até uma criança com 10 anos de idade sabe que não aconteceria nem uma coisa e nem outra — mas não mesmo, de jeito nenhum, com a mesma certeza que se pode ter que o mês de março vem logo depois do mês de fevereiro. Lula seria obrigado a dizer: “Aconteceu igualzinho comigo. Tamo junto”. O que ele poderia falar que não fosse exatamente isso? O STF iria chegar à conclusão imediata de que o ministro não fez nada de mais, que a acusação não tem provas, mesmo que houvesse a confissão dos corruptores e evidência física da corrupção — e que, de qualquer jeito, o CEP do processo está errado. Se Lula fez as mesmas coisas, e foi descondenado pelo STF, por que estaria errado com o ministro em questão? Quanto aos juízes — bem, nenhum juiz do Brasil, à esta altura, é maluco o suficiente para processar ladrão do PT, ou da esquerda”, ou do campo “progressista”. Provavelmente, é ele que acabaria preso. Ninguém merece, não é mesmo?
O interessante, nessa história imaginária, é que ela não tem nada de imaginário — e nem um miligrama de exagero. Quem seria capaz de apostar R$ 5 na possibilidade de punirem o delinquente? Não vai acontecer, pura e simplesmente. Já aconteceu uma vez, embora não se tratasse de ministro, e sim de um ex-presidente da República. Não vão deixar que aconteça de novo, nunca mais na vida. Quando aconteceu, foi um caos. No curto período em que todos foram iguais perante a lei neste país, e em que cada um, fosse quem ele fosse, teve de responder por seus atos, um ex-presidente foi para a cadeia, e ficou lá 20 meses. Teve empresário-milionário preso. Teve político, diretor de estatal e alto funcionário preso. Teve delação premiada, e até de graça. Teve todo tipo de confissão voluntária de culpa. O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, foi condenado a mais de 400 anos de prisão por ladroagem. Pior que tudo para eles, talvez, bilhões de reais em dinheiro roubado tiveram de ser devolvidos, às vezes direto da Suíça. A coisa ficou tão ruim que à certa altura o próprio Lula, em pessoa, viu que estava no centro de uma calamidade sem precedentes, e quis jogar a culpa nos outros, como faz todas as vezes em que é pego em flagrante delito: “Fui apunhalado pelas costas”, disse ele. Hoje, Lula, o PT, o STF, os advogados garantistas e o Brasil que assinou a “carta” em defesa da “democracia” juram que nunca ninguém roubou um tostão — mas na época Lula dizia o exato contrário.
De lá para cá mudou tudo — mudou não só a questão da corrupção, em si, mas mudou o Brasil como país, e essa mudança talvez seja a pior desgraça de todas as que estão acontecendo. Os que sempre mandaram em tudo por aqui, e que viram de repente o chicote trocar de mão, acharam tudo aquilo absolutamente insuportável — onde já se viu, perguntavam eles, ladrão rico ir para a cadeia? E devolver dinheiro roubado, então? Quem pode querer uma coisa dessas? Tinha de acabar, acabar logo e acabar para sempre. Passaram anos, todos eles — a classe política, o STF, a máquina judiciária em geral, os empresários-piratas, os advogados criminalistas milionários e todos os brasileiros tementes ao fascismo — trabalhando 24 horas por dia para destruir a Operação Lava Jato e o combate sério à corrupção no Brasil. Foi um trabalho imenso. Ganharam — ganharam tanto que, hoje, perseguem ferozmente os juízes e promotores que botaram os ladrões no xadrez. Por que iriam, agora, voltar atrás, aceitar que se puna de novo a roubalheira — e ter de começar tudo de novo mais adiante? Não faz sentido. Ou seja: se houver um outro triplex do Guarujá, ou um outro sítio de Atibaia, não vai acontecer nada com os que estiverem metidos no negócio. Mais que tudo, como mencionado acima, o país saiu dessa guerra que exterminou a Lava Jato pior do que estava antes. O Brasil, hoje, é um Estado no qual a corrupção é publicamente permitida e incentivada, para todos os efeitos práticos — e no qual os que se opõem ao crime são perseguidos oficialmente pela máquina da justiça. Antes os corruptos nunca iam para a cadeia, ou quase nunca — mas tinham medo de ir. Agora, têm a certeza matemática de que não vai lhes acontecer nada. Qual a dúvida possível? O STF absolve, ou ignora, ou arquiva, 100% dos casos de corrupção que lhe chegam, e a maioria dos casos nem chega. Não são 90%, ou 99% — são 100%, direto. Se é assim, torna-se impossível, objetivamente, que haja qualquer dor de cabeça para quem rouba; daqui a pouco, ladrão do erário não vai nem precisar mais de advogado. Da mesma forma, 100% de todos os despachos da “suprema corte” com um mínimo de relevância são a favor do governo Lula, ou de seus agentes — não menos de 100%, nunca. Ter medo do quê, então? Liberou geral.
Provavelmente não há nenhum outro país no mundo em que a corrupção seja entendida como uma prática regular ou necessária do Estado — e oficialmente aceita pelo mais alto tribunal de justiça da nação, decisão após decisão, sem falhar uma que seja. Você consegue citar algum lugar parecido? Não está dito que é assim, é claro — no papel, roubar dinheiro público continua sendo proibido. Mas na prática é permitido, sem problema nenhum, se o criminoso é de esquerda, ou coisa que o valha. A questão mais interessante que se levanta, à essa altura, é se algum país, entre os 200 que estão hoje na ONU, pode funcionar desse jeito na prática. O que será que acontece, no dia a dia? Dá para a economia funcionar assim? É claro que não vai haver crescimento algum, não num nível decente. É impossível criar riqueza, a não ser fortuna individual para quem rouba — e muito menos distribuição de renda. Que renda? Não haverá mais emprego de boa qualidade, nem mais oportunidades de subir na vida para os que têm pouco. Não vai haver nenhum progresso relevante nas três questões que mais oprimem a população brasileira hoje em dia: segurança pessoal, educação pública de qualidade pelo menos equivalente à educação particular e assistência médica razoável. Vão roubar a maior parte do dinheiro que deveria ir para isso — e para basicamente todas as necessidades urgentes do país. O Brasil vai continuar, em comparação com as economias bem-sucedidas, tendo uma infraestrutura miserável em suas estradas, ferrovias e portos, ou em seus serviços de água encanada e de esgoto. As obras públicas continuarão custando cinco ou dez vezes que o que custam num país desenvolvido. A possibilidade de reduzir impostos, o meio mais eficaz que se conhece para colocar dinheiro no bolso das pessoas, será um duplo zero. A lista vai longe. Mas será só isso — atraso, subdesenvolvimento e um aumento espetacular da injustiça? Ou vai se chegar a um ponto em que começa a faltar luz elétrica, por exemplo, ou gás de cozinha, por que passaram a mão em tudo? Não se sabe, realmente; não dá para saber, quando se leva em conta que não existem precedentes de uma situação como a do Brasil de hoje, onde a corrupção é tratada pelo governo como virtude política, e aceita na vida real por todas as sentenças do sistema judiciário. É perfeitamente possível, em todo caso, que destruam muito do progresso que se conseguiu até hoje; nesse caso, o Brasil vai andar para trás.
Dois fatos acima de discussão mostram que o país está se enfiando em território até hoje não mapeado. O primeiro é a situação do novo juiz nomeado para cuidar da Lava Jato. Sua identificação no sistema eletrônico da justiça, o e-proc, era, até pouco tempo atrás, “LUL22”. O sistema do TSE registra uma doação que fez à campanha presidencial de Lula, dentro de um financiamento coletivo. Ele tem apoio público do grupo de advogados “Prerrogativas”, que milita em favor do presidente e de vários acusados de corrupção. É um crítico, também público, da Operação Lava Jato. Uma de suas últimas decisões foi autorizar Sérgio Cabral, atualmente em “prisão domiciliar” — apesar de condenado a 425 anos de cadeia e até hoje não absolvido de coisa nenhuma — a ausentar-se do Rio de Janeiro por até oito dias corridos, sem tornozeleira eletrônica ou qualquer outra restrição física. (Veja artigo de Augusto Nunes, nesta edição.) O juiz e hoje senador Sergio Moro, além do procurador e hoje deputado Deltan Dallagnol foram considerados “parciais” pelo STF em sua atuação na Lava Jato. E esse novo juiz — seria imparcial? Não faz nexo nenhum, a não ser como recado explícito ao público em geral. A Justiça brasileira acha, e faz questão de dizer para todo mundo, que juiz bom é quem apoia Lula, beneficia Sérgio Cabral e condena o trabalho contra a corrupção feito pela Lava Jato. Juiz ruim é o que incomoda o presidente e os acusados de corrupção.
O segundo fato é que o governo e o conjunto de forças que lhe dão apoio estão cada vez mais empenhados em criar, pela primeira vez na história, um sistema oficial de censura neste país, com o disfarce de agirem contra a divulgação de “fake news”. A verdade é que não há nenhuma intenção de evitar a publicação de qualquer notícia falsa, mas sim de proibir que se fale mal do governo nas redes sociais e na mídia. É fácil entender a coisa. O STF, através do seu braço eleitoral, proibiu que se dissesse durante a campanha que Lula era a favor da ditadura na Nicarágua, o que é a mais pura e óbvia verdade dos fatos. Por que o governo, quando tiver o seu poder de censura, iria permitir a circulação de notícias, comentários e opiniões sobre corrupção? Não vai permitir, é claro. Ou seja: não apenas acabaram com o combate à ladroagem, mas não querem que se fale mais no assunto. Vão roubar — e vai ser proibido dizer que estão roubando. Exagero? A censura sobre a Nicarágua, ao que tudo indica, é o piso, não o teto. O que o STF está dizendo é o seguinte: “É daqui para cima. Podem ir nessa”. O ministro da Justiça, a propósito, anuncia uma lei que, segundo ele, cria a censura moderada. Será um “mecanismo leve”, promete. Que diabo quer dizer isso — “mecanismo leve?” Existe censura leve? Qual seria, então, a diferença em relação à censura pesada? Numa escala de 0 a 10, por exemplo: a censura do ministro seria algo em torno do grau 5? Menos? Quanto? É tudo um perfeito disparate. O que se sabe, com certeza, é que é impossível sair qualquer coisa que preste disso tudo. O ministro da Justiça de Lula é comunista — “graças a Deus”, segundo ele mesmo diz. Nunca houve, até hoje, um comunista que fosse a favor da liberdade, em qualquer época ou em qualquer lugar do mundo. Por que ele seria o primeiro?
J. R. Guzzo
Revista Oeste
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