O texto bíblico de Gl 4,4 é o
único texto paulino no qual encontramos uma menção de Paulo à mãe do Filho de
Deus, no contexto da unidade literária da perícope Gl 4,1-7, onde o Apóstolo faz
sua demonstração bíblica da nossa filiação divina pela fé em Cristo Jesus,
demarcando o “coração” desta pequena unidade literária. Paulo toca na temática
da encarnação de Cristo e de nossa adoção filial. Ao afirmar que Cristo “nasceu
de mulher” Paulo quer dizer que Cristo é plenamente homem. Mais ainda, quando
afirma que “nasceu sob a lei”, ele quer dizer que Cristo pertencia ao povo
judeu, com toda a sua tradição judaica em termos religiosos, políticos, sociais
e culturais. Embora seja uma passagem difícil, vale a pena analisar alguns detalhes
deste texto. Ademais, sendo a única menção paulina sobre a mãe do Filho de
Deus, este texto tem suscitado muitas discussões, visto que a formulação
paulina não é tão clara como nos Evangelhos, onde encontramos o nome desta
mulher: Maria, e que ela era virgem. Enfim, um estudo sobre a Mãe do Filho de
Deus no Novo Testamento, para ser completo, não pode ignorar o texto paulino de
Gl 4,4.
“Nascido de Mulher” (Gl 4,4)
“Born of Woman” (Gal. 4,4)
A carta aos Gálatas é um texto que Paulo escreveu entre os anos 54-57
d.C., enviado a diversas comunidades da Galácia, com seus problemas concretos.
Ao longo de toda a carta o nome de Jesus Cristo é sempre lembrado, mas o nome
de Maria, sua mãe, nunca é mencionado1, mas ele nos oferece uma “referência implícita da Mãe de Jesus” (STOCK,
2006, p. 197), sendo a mais antiga de todas as referências à maternidade da mãe
do Filho de Deus ou do nascimento humano do Filho de Deus (LONGENECKER, 1998,
p. 171), ainda que não mencione do nome dela (Maria) e nem fale da concepção
virginal (PITTA, 1996, p. 237-238; SCHLIER, 1999, p. 228), como temos nos
Sinóticos, que são textos mais tardios.
Ademais é importante ter presente que
nestes dois versículos não vem mencionado sequer o nome de Jesus Cristo e que
João Evangelista também não menciona o nome de Maria em seu evangelho e sim
“mulher”, como temos nas bodas de Caná (Jo 2,4) e aos pés da cruz (Jo 19,26),
onde Maria é lembrada com outras três mulheres (GRENZER, 2017, p. 458-475).
Por isso, o texto de Gl 4,4 tem sido “um dos pivôs” desta carta paulina
ao longo dos séculos (PERROT, 2013, p. 137), causando muitas discussões acerca
da temática da maternidade de Maria. Neste sentido, o texto bíblico de Gl 4,4,
sendo o único texto paulino no qual encontramos uma menção à mãe de Jesus
Cristo, afirmando que ele veio ao mundo “nascido de mulher”, igualmente à
condição de “todos os homens” (BONNARD, 1953, p. 86; BLIGH, 1972, p. 604;
BRUCE, 2004, p. 269), tem chamado a atenção de muitos estudiosos, desde os
tempos da Patrística até os tempos hodiernos (RAMÓN TREVIJANO, 2002, p. 388),
embora Paulo não tenha interesse em falar do nascimento mesmo de Cristo, por
meio de Maria, e sim de sua condição humana, totalmente precária, como a de
qualquer outro ser humano (BONNARD, 1953, p. 86; GONZÁLEZ RUIZ, 1971, p. 194;
DUNN, 1993, p. 215).
Se em Gl 2,15-21, Paulo desenvolveu a sua tese sobre a justificação por
meio da fé e não por meio da lei, em Gl 3-4 Paulo vai desenvolver a sua
argumentação para comprová-la, especialmente com a prova escriturística em Gl 3
e o Midrash de Gl 4, contendo uma Gezērāh Shāwāh (uma das 7
regras de Hillel,
da exegese rabínica: equivalência verbal). Daqui para a frente a
preocupação do Apóstolo vai ser a de estabelecer uma forte relação entre a
redenção e a filiação divina. Para tanto é que Paulo vai insistir sobre a
humanidade concreta de Jesus (“nascido de mulher”) e a sua relação concreta com
Israel (“nascido sob a lei”), uma vez que Maria é uma autêntica filha de
Israel. Aquela que é uma “autêntica judia se torna o lugar carnal, étnico e
religioso que permite ao Pai de nos dar seu Filho”, jogando “um papel
importante no cumprimento da plenitude dos tempos” […]. Sendo “filha da
primeira Aliança, ela se torna o lugar concreto de uma salvação que se torna presente
no seio dos novos tempos” (PERROT, 2013, p. 138-139), visto que o texto de Gl
4,4-5 começa com “uma modalidade temporal”, justamente com as demais modalidades (“nascido
de mulher e sob a lei”) e finalidades (“para resgatar os que estão
debaixo da lei e para que recebam a adoção de filhos”) presentes no texto (ALETTI,1988,
p. 409).
Aliás, é por meio de Maria que Jesus é judeu e nós recebemos a fé
judaica passando, por primeiro, pelo sangue que correu nas veias de Maria, a
filha de Sião por excelência. Embora Paulo não a mencione explicitamente como
mediadora do mistério da encarnação do Verbo no seio de Maria, por obra do
Espírito Santo, é óbvio que não podemos dizer que ele desconhecesse o fato.
Muito pelo contrário, assim como os demais,
também Paulo tinha plena consciência de que Jesus tinha nascido de uma jovem
judia de nome Maria.
A PREOCUPAÇÃO PAULINA
EM GL 4,4
O texto de Gl 4,4 tem
uma preocupação com a verdadeira humanidade e, ao mesmo tempo, com a filiação
divina de Jesus (LONGENECKER, 1998, p. 171). Ele quer deixar claro que Jesus é
o Filho de Deus, mas que é também plenamente humano e sujeito à lei judaica
(BUSCEMI, 2004, p. 390), com todas as suas tradições, inclusive que “foi dado à
luz por uma mulher como homem; aceita tudo o que pertence à humanidade” (STOCK,
2006, p. 191.196), ou seja, “que Jesus tornou-se membro da humanidade e da raça
judia” (FITZMYER, 1985, p. 52-53), ou, no dizer de Ferreira, “Paulo ressalta
bem que o Filho de Deus foi cem por cento homem. Gente como nós.” (FERREIRA,
2005, p. 130).
A preocupação paulina
não é nem afirmar e nem negar “a concepção virginal” ou nascimento de Jesus a
partir de Maria, e nem pode ser provada com esta passagem (LAGRANGE, 1950, p.
102; HENDRIKSEN, 1984, p. 166-167; BURTON, 1988, p. 217), como temos na
narrativa sinótica, onde nós encontramos a afirmação de que Jesus foi concebido
e nasceu do seio da virgem Maria (Mt 1,18-25; Lc 1, 26-38), mas sim falar
“sobre a verdadeira humanidade do Filho de Deus” (ZERWICK, 1965, p. 76; FAUSTI,
1999, p. 199; SCHLIER, 1999, p. 228). Ou seja, de fato Paulo não fala que Jesus
nasceu de Maria e muito menos que a sua concepção foi virginal, como temos nos
Sinóticos. Mas isso não signfica que ele desconhecesse ou negasse isso. Fato é
que a sua preocupação neste momento é com a “autêntica humanidade” de Jesus
(MUSSNER, 1987, p. 418) diante de toda a problemática levantada pelos
judaizantes sobre a obrigatoriedade da lei como conditio sine qua non para
a salvação, que Paulo não concorda (GONZAGA, 2015, p. 445).
Afirmar que Cristo
“nasceu de mulher” não significa dizer que Paulo estaria afirmando que Cristo
teria sido gerado por participação de “progenitor masculino”, mas apenas que
ele assumiu a condição humana (BETZ, 1979, p. 207) e que participou dos aspectos normais do ser homem e foi submetido à lei
judaica (STOCK, 2006, 193; ZERWICK, 1965, p. 76; BONNARD, 1953, p. 86), e “não
há mais nada além disso nesta passagem” (RATZINGER, 2014, p. 29), visto que o
que está em jogo é a “fragilidade humana” (VANHOYE, 2000, p. 107; ALETTI, 1988,
p.409; NAVARRO PUERTO, 1997, p. 329), significando com isso que “nascer de
mulher quer dizer simplesmente ser mortal, limitado, como todos os outros
homens” (PITTA, 1996, p. 238). Porém, Paulo acreditava na maternidade divina e
igualmente na concepção virginal, defendida inclusive pelos Padres da Igreja e
pelos Pais da Reforma, como afirmam K. H. Schelkle4 e Staglianò (2016, p. 68).
Interessante observar que Mt 8,20 e Jo
1,51 vão falar do “filho do homem”, e nunca usam o termo “nascido de mulher”,
como Paulo. O Apóstolo dos gentios (Rm 11,13), por sua vez, nunca afirma que
Cristo nasceu “de Maria virgem”, visto que a intenção paulina é a de afirmar
que Cristo assumiu a nossa natureza humana, com todas as suas implicações no
que diz respeito à lei, pois Paulo quer deixar claro que Cristo não apenas
“nasceu de mulher”, mas que ele “nasceu sob a lei” a fim de nos garantir “a
filianção divina” (Gl 4,5), para nos tirar da escravidão e nos conservar na
liberdade, visto que foi para isso que Cristo nos libertou (Gl 5,1), ou seja, a
sua morte e ressurreição resultou “na libertação do homem da economia da Lei” (GONZAGA,
2015, p. 392).
É importante
recordar que Paulo não teve acesso aos evangelhos das Infância de Cristo, como
conhecemos nas narrativas de Mateus e Lucas para falar do nascimento virginal
de Jesus e nem de afirmações sobre a figura de Maria (Cf. LEGAULT, 1964, p.
481-493; LÉGASSE, 2000, p. 297-298). Mas, por outro lado, também é muito
difícil negar que Paulo não soubesse que Jesus tinha nascido de uma mãe virgem.
Pelo contrário, “este fato era tão amplamente conhecido na Igreja Primitiva
que, não foi por acaso, que encontrou lugar nos escritos apostólicos” (MCHUGH, 1997, p. 313). A questão, então,
diz respeito à linha da preocupação de Paulo: falar da humanidade e da
solidariedade de Cristo para com o ser humano (FAUSTI, 1999, p. 199), a partir
da história real do povo de Israel (BARBAGLIO, 1991, p. 84-85; DUNN, 1993, p.
216), nascido como todo e qualquer “ser humano” (MARTYN, 1998, p. 390), pois
diz repeito à “definição de uma vida humana” (BETZ, 1979, p. 207), e não da
virgindade de Maria, que ele certamente não negava e muito menos “estava
procurando fornecer detalhes sobre o modo como o Filho se fez
homem” (FITZMYER, 1985, p. 54).
Se há “um
silêncio” da parte de Paulo sobre a concepção e o nascimento virginal de
Cristo, pois não se fala e nem se “pensa expressamente no nascimento virginal”
(SCHLIER, 1999, p. 228), contudo, não se pode dizer o mesmo em relação ao resto
do NT, visto que dois dos Sinóticos mencionam o fato (cf. Mt 1,18-25 e Lc 1,26-38),
Marcos permanece em “silêncio”, embora cite o nome da mãe de Jesus (Mc 6,3) e
João mencione que Jesus era galileu e que tinha nascido em Belém
(7,26.41-42.52), concordando com o lugar que Mateus e Lucas indicam para o
nascimento de Cristo.
Para Paulo o
tema da “concepção virginal” não era fundamental, bem como o do “túmulo vazio”,
sobre o qual ele também nada fala e os quatro evangelistas sim. Mas, embora não
venha citado o nome da “mulher anônima” de Gl 4,4, é óbvio que Paulo sabia que
nome da mãe de Jesus era Maria (STAGLIANÒ, 2016, p. 71).
Porém, o
contexto é outro e não pede isso aqui, mas sim o aspecto da encanação do Verbo
na concretude humana a fim de resgatar o homem de sua condição de escravidão e
submissão da lei mosaica (LÉGASSE, 2000, p. 297). Zerwick (1965) afirma que,
como o Apóstolo quer falar do “aspecto duramente humano, ele nem sonha de
mencionar a característica maravilhosa da maternidade de uma virgem” (1965, p.
76-77). É neste sentido que podemos dizer que “a passagem não insiste na mulher
que dá à luz o Filho de Deus” (ALETTI, 1988, p. 409) e sim sobre sua realidade
humana, comum aos demais seres humanos.
A BASE TESTAMENTÁRIA
ANTIGA
Em todo o Antigo
Testamento nós encontramos a afirmação “nascido de mulher” apenas no livro de
Jó, onde temos três ocorrências desta expressão, sendo a única literatura
veterotestamentária que podemos ver a esse respeito. No entanto, embora seja
somente em Jó, parece ser uma expressão comum no judaísmo para designar a
condição humana e precária de um ser humano, a partir de sua existência histórica
concreta. Mentalidade esta que passou para outros textos do NT, visto que além
de Gl 4,4, também encontramos a expressão quando se fala a respeito do
nascimento do João Batista, “o maior nascido de mulheres”, e sempre no plural,
tanto em Mt 11,11 como em Lc 7,28 (Quadro 1):
Quadro 1 – “O maior
nascido de mulheres”
a) Em Mt 11,11:
Em verdade vos digo que, entre os que têm nascido de
mulheres, não apareceu alguém maior do que João o Batista; mas o menor no
reino dos céus é maior do que ele.
Ἀμὴν λέγω ὑμῖν· οὐκ ἐγήγερται ἐν γεννητοῖς γυναικῶν μείζων Ἰωάννου τοῦ βαπτιστοῦ· ὁ δὲ μικρότερος ἐν τῇ βασιλείᾳ τῶν οὐρανῶν μείζων αὐτοῦ ἐστιν.
b) Em Lc 7,28:
Digo a vós, entre os nascidos de mulheres, não há ninguém maior que
João; mas o menor no reino de Deus é maior do que ele.
λέγω ὑμῖν, μείζων ἐν γεννητοῖς γυναικῶν Ἰωάννου οὐδείς ἐστιν· ὁ δὲ μικρότερος ἐν τῇ βασιλείᾳ τοῦ θεοῦ μείζων αὐτοῦ ἐστιν.
Fonte: Elaborado pelo
autor.
No AT, fora do texto
hebraico, na LXX nós encontramos a expressão “nascidos de mulheres”, nós a encontramos
em Eclo 10,18: “O orgulho não foi feito para o homem, nem o furor para os nascidos
de mulheres. / οὐκ ἔκτισται ἀνθρώποις ὑπερηφανία οὐδὲ ὀργὴ θυμοῦ γεννήμασιν γυναικῶν”. Porém, aqui nós temos o uso do substantivo γεννήμασιν, um dativo neutro
plural comum, de γέννημα.
Mesmo na literatura
paulina, também temos outros dois textos paralelos a Gl 4,4, que são Rm 1,3 e
Fl 2,7-8, de cartas autenticamente paulinas, e que precisam ser lidos no sensus
plenus do corpus paulinum e igualmente do corpus
Novi Testamenti, antes de entrarmos nos textos do Antigo Testamento. Estes
dois textos (Quadro 2), a exemplo da carta aos Gálatas, afirmam que:
Quadro 2 – Exemplos
paralelos a Gl 4,4
a) Em Rm 1,3: Acerca
do Filho dele, que nasceu da descendência de Davi segundo a
carne περὶ τοῦ υἱοῦ αὐτοῦ τοῦ γενομένου ἐκ σπέρματος Δαυὶδ κατὰ σάρκα
b) Em Fp 2,7-8: 7Mas esvaziou-se
a si mesmo, tomando a forma de escravo, em semelhança de homens
tornando-se [nascendo], e achado em forma como homem; 8humilhou-se a si
mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz.
7ἀλλ᾽ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών, ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενος· καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος 8ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου, θανάτου δὲ σταυροῦ.
Fonte: Elaborado pelo autor.
Se no livro de Jó a
expressão é utilizada sempre para exprimir a fragilidade, a precariedade e a
impureza do ser humano, é nesta mesma linha que podemos interpretar o testemunho
da Regra da Comunidade (1QS) e dos Hinos de Qumran (1QH) que colocam em
paralelo “nascido de mulher” e “criatura de pó”, a fim de se falar da
fragilidade humana:
a) Col. XI = 1QS
11,21: “Por que será contado o nascido de mulher em tua presença?
Formado tem sido no pó, comida de vermes será a sua residência; é saliva
cuspida” (GARCÍA MARTÍNEZ, 1995, p. 62).
b) Col. XXI = 1QH
18,1.11; também no Frag. 3,13-14: “a impiedade do nascido de mulher […]
E eu sou criatura [de argila… de p]ó e coração de pedra”. (GARCÍA MARTÍNEZ,
1995, p. 403).
Na língua
hebraica bíblica, a expressão ְ ילהָּׁש ִאְדוּ (yelûd ’iššâ) é a que encontra a sua expressão análoga na língua
grega bíblica da LXX para “γεννητὸς γυναικός” (gennētós gynaikós), como podemos conferir no quadro abaixo.
Para vermos isso, vamos à base veterotestamentária, no livro de Jó, único texto
da Bíblia hebraica a trazer a mesma expressão em todo o AT (CLINES, 1989, p.
324), e temos também na Bíblia grega LXX (Eclo 10,18), como já dissemos acima.
Porém, parece que a expressão já era comum no meio judaico e helênico (NAVARRO
PUERTO, 1997, p. 328), encontrada inclusive na obra Antiquidades
Judaicas, de Flávio Josefo (apud LONGENECKER, 1998, p. 171).
Cremos ser interessante
visitar os textos que encontramos em Jó 14,1; 15,14 e 25,4, seja a partir dos
textos nas línguas originais, em hebraico, língua de saída, seja a
partir da tradução grega para a LXX, onde encontramos a mesma
expressão que temos Gálatas, bem como no português, nossa língua de chegada
(Quadro 3).
Nestes
textos nós encontramos a expressão ְ ילהָּׁש ִאְ דוּ (yelûd
’iššâ), sendo “uma locução judaica para um nascimento ou simples expressão
idiomática para falar do ser humano” (LONGENECKER, 1998, p. 171), traduzida
como “nascido de mulher”, indicando a situação humana com todas as suas
realidades e precariedades possíveis de todo ser humano, “enfatizando sua
verdadeira humanidade” (LONGENECKER, 1998, p. 171; NAVARRO PUERTO, 1997, p.
328), com todas as suas contingências histórico-sociais, referindo-se a tudo
aquilo que “define as condições de existência de um ser humano” (BETZ, 1979, p.
207).
É neste
sentido, acima descrito, que Paulo vai usar esta mesma expressão (“nascido de
mulher”) para falar “sobre a inserção do Filho de Deus dentro da história
humana por meio de sua mãe” (PERROT, 2013, p. 138), e não como que por um
“acontecimento meta-histórico” (MUSSNER, 1987, p. 417), prevenindo, assim,
“contra a possibilidade da espiritualização da humanidade de Cristo” (FERREIRA,
2005, p. 130); por isso, vai apenas falar que ele nasceu de sua mãe, sem
mencionar seu nome, e nem se preocupa em falar que ele nasceu de José, embora
soubesse disso (STAGLIANÒ, 2016, p. 68), mas o seu momento não lhe pede isso.
Jó
encontra-se num momento difícil de sua vida, em meio a provações pessoais e
familiares, inclusive religiosas (CLINES, 1989, p. 348), e seus “pensamentos
retornam à sua situação desesperada, que atrai o seu olhar” (WAISER, 1975, p.
154). Depois de ter falado sobre Deus, ele volta a falar sobre o homem e sua
situação limitada pela precariedade da vida humana. Ele sabe que “a vida útil
do homem é limitada” (CLINES, 1989, p. 324), e tem consciência “de sua própria miséria”
(TERRIEN, 1994, p. 138), bem como de toda a situação da limitação
histórico-social de todo “nascido de mulher”.
Jó tem consciência
de que também ele faz parte da raça humana e tudo aquilo que diz respeito ao
ser humano, diz respeito a ele também. Ele sabe-se parte do gênero humano, que
“é vulnerável por natureza” (WAISER, 1975, p. 154).
Seguindo a
tradição veterotestamentária, Jó tem consciência de que o ser humano é indigno
e impuro, e precisa ser purificado (cf. Lv 12; 15). Mais ainda, ele não tem dúvidas
de que a precariedade da vida faz parte da realidade humana, pois “é por nascer
da raça humana que o homem participa da natureza efêmera e
fraca” (TERRIEN, 1994, p. 138). É neste sentido que a expressão “nascido de
mulher” (Jó 14,1; 15,14; 25,4) já expressa bem o que ele está sentido e quer
transmitir acerca da realidade frágil da vida humana. Jó sabe-se não diferente
dos outros seres humanos, todos “nascidos de mulher”.
Para Jó, a
vida humana é frágil e cheia de fadigas (CLINES, 1989, p. 324). Ele só encontra
sentido para a vida na bondade de Deus, visto que o ser humano, pela sua
própria natureza humana, está inclinado ao pecado (CLINES, 1989, p. 324). Por
isso, a partir da situação de finitude do homem, o texto bíblico se abre para
falar da pecaminosidade humana, pois: “O homem é abominável e corrompido. Ele
bebe da iniquidade” (TERRIEN, 1994, p. 145-146; ODEN, 2010, p. 130). Para Jó,
diante de todo este quadro de precariedade humana, “apenas uma intervenção
pessoal de Deus pode mudar a situação do paciente” (WAISER, 1975, p. 284;
TERRIEN, 1994, p. 138). Aliás, Jó “tem consciência da personalidade coletiva da
humanidade” (TERRIEN, 1994, p. 139), e a sua reflexão discorre “sobre a
fragilidade e a debilidade da vida humana […] e sobre as condições que levaram
a humanidade a viver em fragilidade e miséria” (ODEN, 2010, p. 122). E é justamente
esta “personalidade coletiva da humanidade” que vai ser recordada por Paulo, em
Gl 4,4, apontando que Jesus participa desta historicidade do ser humano.
A CRÍTICA TEXTUAL
É muito importante
recordar a discussão que existe ao redor de uma possível variante para γενόμενον, que seria γεννώμενον, ou ainda sobre a tradução para γενόμενον como sendo “tornou-se”. Fato é que o texto da LXX traduz a
expressão por “nascer” e não por “tornar-se”, como também lemos nas traduções
modernas inclusive para o texto de Sb 7,3 (Quadro 4):
Quadro 4 – Texto de Sb
7,3
E quando eu nasci, também eu respirei o ar que todos respiram; e ao
cair na terra que recebe a todos do mesmo modo, fui como os outros: o primeiro
som que saiu da minha boca foi o choro.
καὶ ἐγὼ δὲ γενόμενος ἔσπασα τὸν κοινὸν ἀέρα καὶ ἐπὶ τὴν ὁμοιοπαθῆ κατέπεσον γῆν πρώτην φωνὴν τὴν ὁμοίαν πᾶσιν ἴσα κλαίων.
Fonte: Elaborado pelo autor.
Ainda importante é
frisar que as edições críticas de Nestle-Aland28 e The Greek New Testament sequer mencionam a variante
γεννώμενον, visto que a leitura γενόμενον é amplamente sustentada pelos principais e mais
importantes Unciais e Papiros, enquanto que a variante
γεννώμενον é sustantada apenas por alguns manuscritos
minúsculos e secundários. Aliás, a edição de Nestle-Aland28 tampouco coloca algum problema de crítica textual ou de possibilidade de
variantes neste versículo.
Além disso, o contexto
de Gl 4,4 pede um particípio aoristo (γενόμενον, particípio aoristo médio deponente, acusativo masculino singular de γίνομαι) e não um particípio presente (γεννώμενον, particípio presente passivo nominativo neutro singular de
γεννάω), que é a forma usada em Lc 1,35, afirmando: “Por
isso também o santo que nascer, será chamado Filho de Deus / διὸ καὶ τὸ γεννώμενον ἅγιον κληθήσεται υἱὸς θεοῦ”, ou ainda como
encontramos na narrativa da genealogia de Cristo em Mt 1,2-26, com uma
sequência de ἐγέννησεν (verbo indicativo aoristo ativo 3 pes. sing. de γεννάω), para se falar
do pai que gera o filho, até se chegar a Jesus, diferentemente de Lc 3,23-38,
que apenas diz que “ὢν υἱός / era filho de...”, e não que foi
gerado.
Como em Gl 4,4, também
na carta aos Romanos, encontramos o uso de γίνομαι para falar de nascimento, como lemos em Rm 1,3: “Acerca de seu Filho, nascido da descendência de Davi segundo a
carne / περὶ τοῦ υἱοῦ αὐτοῦ τοῦ γενομένου ἐκ σπέρματος Δαυὶδ κατὰ σάρκα”. Porém, a Vulgata traduziu γενόμενον, em Gl 4,4, não por “natum” e sim por “factum”: “factum ex muliere,
factum sub lege”, tradução esta que é conservada na Nova Vulgata.
Não obstante o
contexto da afirmação “nascido de mulher” de Gl 4,4 se relacionar muito mais à
questão da precariedade humana, Albert Vanhoye (1978) afirma que Paulo, ao
dizer que o “Filho de Deus nasceu de uma mulher” também quer falar “da
maternidade divina desta mulher”, ainda que não tenha dito de forma explícita
“nascido da Virgem Maria” ou pelo menos “nascido de uma virgem” (VANHOYE, 1978,
p. 240), pois o contexto pede não o linguajar de “um privilégio único”, como é
o da concepção no seio da Virgem Maria e sim o da normal condição humana, com
todas as suas precariedades (VANHOYE, 1978, p. 241; BONNARD, 1953, p. 86;
BLIGH, 1972, p. 604). É neste sentido que precisamos entender a opção de Deus
em enviar o seu Filho “seguindo a via comum de todos os homens. Toma forma no seio
de sua mãe. É dado à luz por ela” (STOCK, 2006, p. 196).