terça-feira, 18 de maio de 2021

“Nascido de Mulher” (Gl 4,4)

 
O texto bíblico de Gl 4,4 é o único texto paulino no qual encontramos uma menção de Paulo à mãe do Filho de Deus, no contexto da unidade literária da perícope Gl 4,1-7, onde o Apóstolo faz sua demonstração bíblica da nossa filiação divina pela fé em Cristo Jesus, demarcando o “coração” desta pequena unidade literária. Paulo toca na temática da encarnação de Cristo e de nossa adoção filial. Ao afirmar que Cristo “nasceu de mulher” Paulo quer dizer que Cristo é plenamente homem. Mais ainda, quando afirma que “nasceu sob a lei”, ele quer dizer que Cristo pertencia ao povo judeu, com toda a sua tradição judaica em termos religiosos, políticos, sociais e culturais. Embora seja uma passagem difícil, vale a pena analisar alguns detalhes deste texto. Ademais, sendo a única menção paulina sobre a mãe do Filho de Deus, este texto tem suscitado muitas discussões, visto que a formulação paulina não é tão clara como nos Evangelhos, onde encontramos o nome desta mulher: Maria, e que ela era virgem. Enfim, um estudo sobre a Mãe do Filho de Deus no Novo Testamento, para ser completo, não pode ignorar o texto paulino de Gl 4,4.
  
“Nascido de Mulher” (Gl 4,4)
“Born of Woman” (Gal. 4,4)
 
 
A carta aos Gálatas é um texto que Paulo escreveu entre os anos 54-57 d.C., enviado a diversas comunidades da Galácia, com seus problemas concretos. Ao longo de toda a carta o nome de Jesus Cristo é sempre lembrado, mas o nome de Maria, sua mãe, nunca é mencionado1, mas ele nos oferece uma “referência implícita da Mãe de Jesus” (STOCK, 2006, p. 197), sendo a mais antiga de todas as referências à maternidade da mãe do Filho de Deus ou do nascimento humano do Filho de Deus (LONGENECKER, 1998, p. 171), ainda que não mencione do nome dela (Maria) e nem fale da concepção virginal (PITTA, 1996, p. 237-238; SCHLIER, 1999, p. 228), como temos nos Sinóticos, que são textos mais tardios.[1]
 
Ademais é importante ter presente que nestes dois versículos não vem mencionado sequer o nome de Jesus Cristo e que João Evangelista também não menciona o nome de Maria em seu evangelho e sim “mulher”, como temos nas bodas de Caná (Jo 2,4) e aos pés da cruz (Jo 19,26), onde Maria é lembrada com outras três mulheres (GRENZER, 2017, p. 458-475).
 
Por isso, o texto de Gl 4,4 tem sido “um dos pivôs” desta carta paulina ao longo dos séculos (PERROT, 2013, p. 137), causando muitas discussões acerca da temática da maternidade de Maria. Neste sentido, o texto bíblico de Gl 4,4, sendo o único texto paulino no qual encontramos uma menção à mãe de Jesus Cristo, afirmando que ele veio ao mundo “nascido de mulher”, igualmente à condição de “todos os homens” (BONNARD, 1953, p. 86; BLIGH, 1972, p. 604; BRUCE, 2004, p. 269), tem chamado a atenção de muitos estudiosos, desde os tempos da Patrística até os tempos hodiernos (RAMÓN TREVIJANO, 2002, p. 388), embora Paulo não tenha interesse em falar do nascimento mesmo de Cristo, por meio de Maria, e sim de sua condição humana, totalmente precária, como a de qualquer outro ser humano (BONNARD, 1953, p. 86; GONZÁLEZ RUIZ, 1971, p. 194; DUNN, 1993, p. 215).
 
Se em Gl 2,15-21, Paulo desenvolveu a sua tese sobre a justificação por meio da fé e não por meio da lei, em Gl 3-4 Paulo vai desenvolver a sua argumentação para comprová-la, especialmente com a prova escriturística em Gl 3 e o Midrash de Gl 4, contendo uma Gezērāh Shāwāh (uma das 7 regras de Hillel[2], da exegese rabínica: equivalência verbal). Daqui para a frente a preocupação do Apóstolo vai ser a de estabelecer uma forte relação entre a redenção e a filiação divina. Para tanto é que Paulo vai insistir sobre a humanidade concreta de Jesus (“nascido de mulher”) e a sua relação concreta com Israel (“nascido sob a lei”), uma vez que Maria é uma autêntica filha de Israel. Aquela que é uma “autêntica judia se torna o lugar carnal, étnico e religioso que permite ao Pai de nos dar seu Filho”, jogando “um papel importante no cumprimento da plenitude dos tempos” […]. Sendo “filha da primeira Aliança, ela se torna o lugar concreto de uma salvação que se torna presente no seio dos novos tempos” (PERROT, 2013, p. 138-139), visto que o texto de Gl 4,4-5 começa com “uma modalidade temporal”, justamente com as demais modalidades (“nascido de mulher e sob a lei”) e finalidades (“para resgatar os que estão debaixo da lei e para que recebam a adoção de filhos”) presentes no texto (ALETTI,1988, p. 409).
 
Aliás, é por meio de Maria que Jesus é judeu e nós recebemos a fé judaica passando, por primeiro, pelo sangue que correu nas veias de Maria, a filha de Sião por excelência. Embora Paulo não a mencione explicitamente como mediadora do mistério da encarnação do Verbo no seio de Maria, por obra do Espírito Santo, é óbvio que não podemos dizer que ele desconhecesse o fato. Muito pelo contrário, assim como os demais, também Paulo tinha plena consciência de que Jesus tinha nascido de uma jovem judia de nome Maria.
 
A PREOCUPAÇÃO PAULINA EM GL 4,4
 
O texto de Gl 4,4 tem uma preocupação com a verdadeira humanidade e, ao mesmo tempo, com a filiação divina de Jesus (LONGENECKER, 1998, p. 171). Ele quer deixar claro que Jesus é o Filho de Deus, mas que é também plenamente humano e sujeito à lei judaica (BUSCEMI, 2004, p. 390), com todas as suas tradições, inclusive que “foi dado à luz por uma mulher como homem; aceita tudo o que pertence à humanidade” (STOCK, 2006, p. 191.196), ou seja, “que Jesus tornou-se membro da humanidade e da raça judia” (FITZMYER, 1985, p. 52-53), ou, no dizer de Ferreira, “Paulo ressalta bem que o Filho de Deus foi cem por cento homem. Gente como nós.” (FERREIRA, 2005, p. 130).
 
A preocupação paulina não é nem afirmar e nem negar “a concepção virginal” ou nascimento de Jesus a partir de Maria, e nem pode ser provada com esta passagem (LAGRANGE, 1950, p. 102; HENDRIKSEN, 1984, p. 166-167; BURTON, 1988, p. 217), como temos na narrativa sinótica, onde nós encontramos a afirmação de que Jesus foi concebido e nasceu do seio da virgem Maria (Mt 1,18-25; Lc 1, 26-38), mas sim falar “sobre a verdadeira humanidade do Filho de Deus” (ZERWICK, 1965, p. 76; FAUSTI, 1999, p. 199; SCHLIER, 1999, p. 228). Ou seja, de fato Paulo não fala que Jesus nasceu de Maria e muito menos que a sua concepção foi virginal, como temos nos Sinóticos. Mas isso não signfica que ele desconhecesse ou negasse isso. Fato é que a sua preocupação neste momento é com a “autêntica humanidade” de Jesus (MUSSNER, 1987, p. 418) diante de toda a problemática levantada pelos judaizantes sobre a obrigatoriedade da lei como conditio sine qua non para a salvação, que Paulo não concorda (GONZAGA, 2015, p. 445).
 
Afirmar que Cristo “nasceu de mulher” não significa dizer que Paulo estaria afirmando que Cristo teria sido gerado por participação de “progenitor masculino”, mas apenas que ele assumiu a condição humana (BETZ, 1979, p. 207) e que participou dos aspectos normais do ser homem e foi submetido à lei judaica (STOCK, 2006, 193; ZERWICK, 1965, p. 76; BONNARD, 1953, p. 86), e “não há mais nada além disso nesta passagem” (RATZINGER, 2014, p. 29), visto que o que está em jogo é a “fragilidade humana” (VANHOYE, 2000, p. 107; ALETTI, 1988, p.409; NAVARRO PUERTO, 1997, p. 329), significando com isso que “nascer de mulher quer dizer simplesmente ser mortal, limitado, como todos os outros homens” (PITTA, 1996, p. 238). Porém, Paulo acreditava na maternidade divina e igualmente na concepção virginal, defendida inclusive pelos Padres da Igreja e pelos Pais da Reforma, como afirmam K. H. Schelklee Staglianò (2016, p. 68).[3]
 
Interessante observar que Mt 8,20 e Jo 1,51 vão falar do “filho do homem”, e nunca usam o termo “nascido de mulher”, como Paulo. O Apóstolo dos gentios (Rm 11,13), por sua vez, nunca afirma que Cristo nasceu “de Maria virgem”, visto que a intenção paulina é a de afirmar que Cristo assumiu a nossa natureza humana, com todas as suas implicações no que diz respeito à lei, pois Paulo quer deixar claro que Cristo não apenas “nasceu de mulher”, mas que ele “nasceu sob a lei” a fim de nos garantir “a filianção divina” (Gl 4,5), para nos tirar da escravidão e nos conservar na liberdade, visto que foi para isso que Cristo nos libertou (Gl 5,1), ou seja, a sua morte e ressurreição resultou “na libertação do homem da economia da Lei” (GONZAGA, 2015, p. 392).
 
É importante recordar que Paulo não teve acesso aos evangelhos das Infância de Cristo, como conhecemos nas narrativas de Mateus e Lucas para falar do nascimento virginal de Jesus e nem de afirmações sobre a figura de Maria (Cf. LEGAULT, 1964, p. 481-493; LÉGASSE, 2000, p. 297-298). Mas, por outro lado, também é muito difícil negar que Paulo não soubesse que Jesus tinha nascido de uma mãe virgem. Pelo contrário, “este fato era tão amplamente conhecido na Igreja Primitiva que, não foi por acaso, que encontrou lugar nos escritos apostólicos” (MCHUGH, 1997, p. 313). A questão, então, diz respeito à linha da preocupação de Paulo: falar da humanidade e da solidariedade de Cristo para com o ser humano (FAUSTI, 1999, p. 199), a partir da história real do povo de Israel (BARBAGLIO, 1991, p. 84-85; DUNN, 1993, p. 216), nascido como todo e qualquer “ser humano” (MARTYN, 1998, p. 390), pois diz repeito à “definição de uma vida humana” (BETZ, 1979, p. 207), e não da virgindade de Maria, que ele certamente não negava e muito menos “estava procurando fornecer detalhes sobre o modo como o Filho se fez homem” (FITZMYER, 1985, p. 54).
 
Se há “um silêncio” da parte de Paulo sobre a concepção e o nascimento virginal de Cristo, pois não se fala e nem se “pensa expressamente no nascimento virginal” (SCHLIER, 1999, p. 228), contudo, não se pode dizer o mesmo em relação ao resto do NT, visto que dois dos Sinóticos mencionam o fato (cf. Mt 1,18-25 e Lc 1,26-38), Marcos permanece em “silêncio”, embora cite o nome da mãe de Jesus (Mc 6,3) e João mencione que Jesus era galileu e que tinha nascido em Belém (7,26.41-42.52), concordando com o lugar que Mateus e Lucas indicam para o nascimento de Cristo.
 
Para Paulo o tema da “concepção virginal” não era fundamental, bem como o do “túmulo vazio”, sobre o qual ele também nada fala e os quatro evangelistas sim. Mas, embora não venha citado o nome da “mulher anônima” de Gl 4,4, é óbvio que Paulo sabia que nome da mãe de Jesus era Maria (STAGLIANÒ, 2016, p. 71).
 
Porém, o contexto é outro e não pede isso aqui, mas sim o aspecto da encanação do Verbo na concretude humana a fim de resgatar o homem de sua condição de escravidão e submissão da lei mosaica (LÉGASSE, 2000, p. 297). Zerwick (1965) afirma que, como o Apóstolo quer falar do “aspecto duramente humano, ele nem sonha de mencionar a característica maravilhosa da maternidade de uma virgem” (1965, p. 76-77). É neste sentido que podemos dizer que “a passagem não insiste na mulher que dá à luz o Filho de Deus” (ALETTI, 1988, p. 409) e sim sobre sua realidade humana, comum aos demais seres humanos.
 
A BASE TESTAMENTÁRIA ANTIGA
 
Em todo o Antigo Testamento nós encontramos a afirmação “nascido de mulher” apenas no livro de Jó, onde temos três ocorrências desta expressão, sendo a única literatura veterotestamentária que podemos ver a esse respeito. No entanto, embora seja somente em Jó, parece ser uma expressão comum no judaísmo para designar a condição humana e precária de um ser humano, a partir de sua existência histórica concreta. Mentalidade esta que passou para outros textos do NT, visto que além de Gl 4,4, também encontramos a expressão quando se fala a respeito do nascimento do João Batista, “o maior nascido de mulheres”, e sempre no plural, tanto em Mt 11,11 como em Lc 7,28 (Quadro 1):
 
Quadro 1 – “O maior nascido de mulheres”
  
a) Em Mt 11,11: Em verdade vos digo que, entre os que têm nascido de mulheres, não apareceu alguém maior do que João o Batista; mas o menor no reino dos céus é maior do que ele.
 
μν λγω μν· οκ γγερται ν γεννητος γυναικν μεζων ωννου το βαπτιστο· δ μικρτερος ν τ βασιλείᾳ τν ορανν μεζων ατο στιν.
 
b) Em Lc 7,28: Digo a vós, entre os nascidos de mulheres, não há ninguém maior que João; mas o menor no reino de Deus é maior do que ele.
 
λγω μν, μεζων ν γεννητος γυναικν ωννου οδες στιν· δ μικρτερος ν τ βασιλείᾳ το θεο μεζων ατο στιν.
  
Fonte: Elaborado pelo autor.
 
No AT, fora do texto hebraico, na LXX nós encontramos a expressão “nascidos de mulheres”, nós a encontramos em Eclo 10,18: “O orgulho não foi feito para o homem, nem o furor para os nascidos de mulheres. / οκ κτισται νθρποις περηφανα οδ ργ θυμο γεννμασιν γυναικν”. Porém, aqui nós temos o uso do substantivo γεννμασινum dativo neutro plural comum, de γννημα.
 
Mesmo na literatura paulina, também temos outros dois textos paralelos a Gl 4,4, que são Rm 1,3 e Fl 2,7-8, de cartas autenticamente paulinas, e que precisam ser lidos no sensus plenus do corpus paulinum e igualmente do corpus Novi Testamenti, antes de entrarmos nos textos do Antigo Testamento. Estes dois textos (Quadro 2), a exemplo da carta aos Gálatas, afirmam que:
 
Quadro 2 – Exemplos paralelos a Gl 4,4
 
a) Em Rm 1,3: Acerca do Filho dele, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne περ το υο ατο το γενομνου κ σπρματος Δαυδ κατ σρκα
 
b) Em Fp 2,7-8: 7Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de escravo, em semelhança de homens tornando-se [nascendo], e achado em forma como homem; 8humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz.
 
7λλ αυτν κνωσεν μορφν δολου λαβν, ν μοιματι νθρπων γενμενος· κα σχματι ερεθες ς νθρωπος 8ταπενωσεν αυτν γενμενος πκοος μχρι θαντου, θαντου δ σταυρο.
 
Fonte: Elaborado pelo autor.
 
Se no livro de Jó a expressão é utilizada sempre para exprimir a fragilidade, a precariedade e a impureza do ser humano, é nesta mesma linha que podemos interpretar o testemunho da Regra da Comunidade (1QS) e dos Hinos de Qumran (1QH) que colocam em paralelo “nascido de mulher” e “criatura de pó”, a fim de se falar da fragilidade humana:
 
a) Col. XI = 1QS 11,21: “Por que será contado o nascido de mulher em tua presença? Formado tem sido no pó, comida de vermes será a sua residência; é saliva cuspida” (GARCÍA MARTÍNEZ, 1995, p. 62).
 
b) Col. XXI = 1QH 18,1.11; também no Frag. 3,13-14: “a impiedade do nascido de mulher […] E eu sou criatura [de argila… de p]ó e coração de pedra”. (GARCÍA MARTÍNEZ, 1995, p. 403).
 
Na língua hebraica bíblica, a expressão ְ ילהָּׁש ִאְדוּ (yelûd ’iššâ) é a que encontra a sua expressão análoga na língua grega bíblica da LXX para “γεννητς γυναικς” (gennētós gynaikós), como podemos conferir no quadro abaixo. Para vermos isso, vamos à base veterotestamentária, no livro de Jó, único texto da Bíblia hebraica a trazer a mesma expressão em todo o AT (CLINES, 1989, p. 324), e temos também na Bíblia grega LXX (Eclo 10,18), como já dissemos acima. Porém, parece que a expressão já era comum no meio judaico e helênico (NAVARRO PUERTO, 1997, p. 328), encontrada inclusive na obra Antiquidades Judaicas, de Flávio Josefo (apud LONGENECKER, 1998, p. 171)[4].
 
Cremos ser interessante visitar os textos que encontramos em Jó 14,1; 15,14 e 25,4, seja a partir dos textos nas línguas originais, em hebraico, língua de saída, seja a partir da tradução grega para a LXX, onde encontramos a mesma expressão que temos Gálatas, bem como no português, nossa língua de chegada (Quadro 3).
 
Nestes textos nós encontramos a expressão ְ ילהָּׁש ִאְ דוּ (yelûd ’iššâ), sendo “uma locução judaica para um nascimento ou simples expressão idiomática para falar do ser humano” (LONGENECKER, 1998, p. 171), traduzida como “nascido de mulher”, indicando a situação humana com todas as suas realidades e precariedades possíveis de todo ser humano, “enfatizando sua verdadeira humanidade” (LONGENECKER, 1998, p. 171; NAVARRO PUERTO, 1997, p. 328), com todas as suas contingências histórico-sociais, referindo-se a tudo aquilo que “define as condições de existência de um ser humano” (BETZ, 1979, p. 207).
 
É neste sentido, acima descrito, que Paulo vai usar esta mesma expressão (“nascido de mulher”) para falar “sobre a inserção do Filho de Deus dentro da história humana por meio de sua mãe” (PERROT, 2013, p. 138), e não como que por um “acontecimento meta-histórico” (MUSSNER, 1987, p. 417), prevenindo, assim, “contra a possibilidade da espiritualização da humanidade de Cristo” (FERREIRA, 2005, p. 130); por isso, vai apenas falar que ele nasceu de sua mãe, sem mencionar seu nome, e nem se preocupa em falar que ele nasceu de José, embora soubesse disso (STAGLIANÒ, 2016, p. 68), mas o seu momento não lhe pede isso.
 
Jó encontra-se num momento difícil de sua vida, em meio a provações pessoais e familiares, inclusive religiosas (CLINES, 1989, p. 348), e seus “pensamentos retornam à sua situação desesperada, que atrai o seu olhar” (WAISER, 1975, p. 154). Depois de ter falado sobre Deus, ele volta a falar sobre o homem e sua situação limitada pela precariedade da vida humana. Ele sabe que “a vida útil do homem é limitada” (CLINES, 1989, p. 324), e tem consciência “de sua própria miséria” (TERRIEN, 1994, p. 138), bem como de toda a situação da limitação histórico-social de todo “nascido de mulher”.
 
Jó tem consciência de que também ele faz parte da raça humana e tudo aquilo que diz respeito ao ser humano, diz respeito a ele também. Ele sabe-se parte do gênero humano, que “é vulnerável por natureza” (WAISER, 1975, p. 154).
 
Seguindo a tradição veterotestamentária, Jó tem consciência de que o ser humano é indigno e impuro, e precisa ser purificado (cf. Lv 12; 15). Mais ainda, ele não tem dúvidas de que a precariedade da vida faz parte da realidade humana, pois “é por nascer da raça humana que o homem participa da natureza efêmera e fraca” (TERRIEN, 1994, p. 138). É neste sentido que a expressão “nascido de mulher” (Jó 14,1; 15,14; 25,4) já expressa bem o que ele está sentido e quer transmitir acerca da realidade frágil da vida humana. Jó sabe-se não diferente dos outros seres humanos, todos “nascidos de mulher”.
 
Para Jó, a vida humana é frágil e cheia de fadigas (CLINES, 1989, p. 324). Ele só encontra sentido para a vida na bondade de Deus, visto que o ser humano, pela sua própria natureza humana, está inclinado ao pecado (CLINES, 1989, p. 324). Por isso, a partir da situação de finitude do homem, o texto bíblico se abre para falar da pecaminosidade humana, pois: “O homem é abominável e corrompido. Ele bebe da iniquidade” (TERRIEN, 1994, p. 145-146; ODEN, 2010, p. 130). Para Jó, diante de todo este quadro de precariedade humana, “apenas uma intervenção pessoal de Deus pode mudar a situação do paciente” (WAISER, 1975, p. 284; TERRIEN, 1994, p. 138). Aliás, Jó “tem consciência da personalidade coletiva da humanidade” (TERRIEN, 1994, p. 139), e a sua reflexão discorre “sobre a fragilidade e a debilidade da vida humana […] e sobre as condições que levaram a humanidade a viver em fragilidade e miséria” (ODEN, 2010, p. 122). E é justamente esta “personalidade coletiva da humanidade” que vai ser recordada por Paulo, em Gl 4,4, apontando que Jesus participa desta historicidade do ser humano.
 
A CRÍTICA TEXTUAL
 
É muito importante recordar a discussão que existe ao redor de uma possível variante para γενμενον, que seria γεννμενον, ou ainda sobre a tradução para γενμενον como sendo tornou-se”. Fato é que o texto da LXX traduz a expressão por “nascer” e não por “tornar-se”, como também lemos nas traduções modernas inclusive para o texto de Sb 7,3 (Quadro 4):
 
Quadro 4 – Texto de Sb 7,3
 
E quando eu nasci, também eu respirei o ar que todos respiram; e ao cair na terra que recebe a todos do mesmo modo, fui como os outros: o primeiro som que saiu da minha boca foi o choro.
 
κα γ δ γενμενος σπασα τν κοινν ἀέρα κα π τν μοιοπαθ κατπεσον γν πρτην φωνν τν μοαν πσιν σα κλαων.
 
Fonte: Elaborado pelo autor.
 
Ainda importante é frisar que as edições críticas de Nestle-Aland28 The Greek New Testament sequer mencionam a variante γεννμενον, visto que a leitura γενμενον é amplamente sustentada pelos principais e mais importantes Unciais Papiros, enquanto que a variante γεννμενον é sustantada apenas por alguns manuscritos minúsculos e secundários. Aliás, a edição de Nestle-Aland28 tampouco coloca algum problema de crítica textual ou de possibilidade de variantes neste versículo.
 
Além disso, o contexto de Gl 4,4 pede um particípio aoristo (γενμενον, particípio aoristo médio deponente, acusativo masculino singular de γνομαι) e não um particípio presente (γεννμενον, particípio presente passivo nominativo neutro singular de γεννω), que é a forma usada em Lc 1,35, afirmando: “Por isso também o santo que nascer, será chamado Filho de Deus / δι κα τ γεννμενον γιον κληθσεται υἱὸς θεο, ou ainda como encontramos na narrativa da genealogia de Cristo em Mt 1,2-26, com uma sequência de γννησεν (verbo indicativo aoristo ativo 3 pes. sing. de γεννω), para se falar do pai que gera o filho, até se chegar a Jesus, diferentemente de Lc 3,23-38, que apenas diz que “ν υἱός / era filho de...”, e não que foi gerado.
 
Como em Gl 4,4, também na carta aos Romanos, encontramos o uso de γνομαι para falar de nascimento, como lemos em Rm 1,3: Acerca de seu Filho, nascido da descendência de Davi segundo a carne / περ το υο ατο το γενομνου κ σπρματος Δαυδ κατ σρκα”. Porém, a Vulgata traduziu γενμενον, em Gl 4,4, não por “natum” e sim por “factum”: “factum ex muliere, factum sub lege”, tradução esta que é conservada na Nova Vulgata.
 
Não obstante o contexto da afirmação “nascido de mulher” de Gl 4,4 se relacionar muito mais à questão da precariedade humana, Albert Vanhoye (1978) afirma que Paulo, ao dizer que o “Filho de Deus nasceu de uma mulher” também quer falar “da maternidade divina desta mulher”, ainda que não tenha dito de forma explícita “nascido da Virgem Maria” ou pelo menos “nascido de uma virgem” (VANHOYE, 1978, p. 240), pois o contexto pede não o linguajar de “um privilégio único”, como é o da concepção no seio da Virgem Maria e sim o da normal condição humana, com todas as suas precariedades (VANHOYE, 1978, p. 241; BONNARD, 1953, p. 86; BLIGH, 1972, p. 604). É neste sentido que precisamos entender a opção de Deus em enviar o seu Filho “seguindo a via comum de todos os homens. Toma forma no seio de sua mãe. É dado à luz por ela” (STOCK, 2006, p. 196). 
ESTRUTURA E TRADUÇÃO
 
Tomando o texto da carta aos Gálatas a partir da ótica da Análise Retórica, podemos dividi-la em 3 Seções 15 Sequências, sendo: A (1,1-2,21), B (3,1-4,31) e C (5,1-6,18), podendo ser subdivididas em vários passos menores, que facilitam a localização de cada uma das perícopes, para que possamos melhor trabalhar a carta como um todo, bem como cada uma de suas partes. Traduzindo esta estrutura da carta aos Gálatas num quadro referencial, temos: a introdução da carta (Gl 1,1-5), e, em seguida, as 3 Seções e as 15 Sequências, de 5 passos cada (Quadro 5):
 
Quadro 5 – Introdução de Gl 1,1-5; seções e sequências.
Introdução da carta: 1,1-5
 
3 Seções
15 Sequências
(Subdivisões: passos)
 
A1: 1,6-10
A2: 1,11-17
A3: 1,18-24
A4: 2,1-10
A5: 2,11-21
 
B1: 3,1-14
B2: 3,15-25
B3: 3,26-29
B4: 4,1-20
B5:4,21-31 A (1,6-2,21)
(3,1-4,31)
 
C (5,1-6,18)
C1: 5,1-12
C2: 5,13-18
C3: 5,19-26
C4: 6,1-10
C5:6,11-18
 
Fonte: Elaborado pelo autor.
 
No que diz respeito à nossa perícope, tendo presente o texto grego de Gl 4,1-7, podemos obter uma estrutura a partir da Seção B, Sequência 4 (B4: 4,1-20), onde boa parte dos autores divide esta perícope em duas partes: 4,1-11 e 4,12-20, mas “fortemente articuladas entre si” (MEYNET, 2012, p. 430). Assim sendo, iremos pegar a perícope 4,1-11, indicando uma possível estrutura, como segue, em 5 partes. Finalmente, tomamos os vv. 1-7, que tratam da temática da filiação divina no Filho de Deus, sendo que a afirmação “nascido de mulher” demarca o “coração” desta pequena unidade literária (PERROT, 2013, p. 136). Outro texto paulino paralelo a este é o de Rm 8,14-17, que nos coloca a filiação divina por obra do Espírito Santo. A estrutura de Gl 4,1-11 pode ser subdividida em 4 seguimentos, respeitando a temática da filiação do Filho de Deus, embora o que nos interessa de fato seja a estrutura de Gl 4,4-5, que desenvolveremos no tópico seguinte.
 
1) 4,1-3: Filhos menores e escravos

2) 4,4-5Nascido de mulher e sob a lei para nos tornar filhos de Deus

3) 4,6-7: Filhos de Deus e não escravos

4) 4,8-11: Deus e os falsos deuses
 
A MATERNIDADE DIVINA A PARTIR DE GL 4,4-5
 
Tomando a estrutura apenas de Gl 4,4-5, a fim de percebermos todos os seus elementos linguísticos, deparamo-nos com uma construção composição quiástica (letras c,d,e,f, conforme gráfico abaixo), que revela o tempo (a) e a ação divina do envio do Filho de Deus (b) segundo a modalidade (Gl 4,4: γενμενον /nascido de mulher e π νμον / sob a lei) e a finalidade (Gl 4,5: να - a fim de libertar da lei e conferir a adoção filial), sendo inegável o paralelismo (PITTA, 1996, p. 238; BETZ, 1979, p. 206-207; LONGENECKER, 1998, p. 171) entre as modalidades (c-d) e as finalidades (e-f):
 
a) τε δ λθεν τ πλρωμα το χρνου, / Quando, porém, veio a plenitude do
tempo,
 
b) ξαπστειλεν θες τν υἱὸν ατο, Enviou Deus o seu Filho,
 
c) γενμενον κ γυναικς, / nascido de mulher,
 
d) γενμενον π νμον nascido sob a lei,
 
e) να τος π νμον ξαγορσ, / a fim de resgatar os que estavam sob a lei,
 
f) να τν υοθεσαν πολβωμεν. / a fim de que recebêssemos a adoção de filhos.
 
Esta composição de Gl 4,4-5, com seus “paralelos entrelaçados: a mulher e a lei, a libertação da lei e a nova filiação”, pressupõe de forma clara que Cristo nasceu de uma mulher, como todos os demais seres humanos (PERROT, 2013, p. 137; HENDRIKSEN, 1984, p. 166; BURTON, 1988, p. 217). Este quiasmo, interligando suas partes simétricas entre si, por meio de palavras e personagens, é de grande valor para entendermos o raciocínio de Paulo (PITTA, 1996, p. 237; CORSANI, 1990, p. 263), pois estas partes simétricas se esclarecem reciprocamente: aquele que nasceu de mulher, e sob a lei, nos faz nascer como filhos de Deus.
 
Se a segunda modalidade realça a submissão do Filho de Deus “γενμενον π νμον” (nascido sob a lei”), é óbvio que a primeira modalidade não poderia ir noutra direção. Não há outra forma de que nascendo sob a lei não seja nascido de mulher. Neste sentido, o texto vai acentuar igualmente o abaixamento do Filho de Deus ao mesmo nível dos homens: “γενμενον κ γυναικς” (nascido de mulher”), já que afirmar que ele “nasceu de uma virgem” seria apelar a um privilégio e não a um igualar-se aos demais (VANHOYE, 1978, p. 241; LAGRANGE, 1950, p. 102).
 
Se Paulo tivesse dito “γενμενον κ παρθνου” (nascido de uma virgem”), a expressão não produziria o mesmo efeito aqui no conjunto desta perícope e nem na obra toda, visto o valor da expressão para a afirmação paulina “de forma alguma é incompatível com a cristologia de outros autores posteriores do Novo Testamento que afirmam a concepção virginal” (FITZMYER, 1985, p. 53), pelo contrário, “com Paulo há um encontro da mariologia com a cristologia […] visto que após Paulo tudo o que se pode dizer de Maria é em relação a Cristo e à sua obra de salvação” (STAGLIANÒ, 2016, p. 68; BETZ, 1979, p. 205-208).
 
Observemos ainda o paralelismo que aparece entre a segunda modalidade (d: γενμενον π νμον / nascido sob a lei) e a primeira finalidade (e: να τος π νμον ξαγορσ / a fim de resgatar os que estavam sob a lei). Seja na segunda modalidade como na primeira finalidade encontramos um elo na expressão “π νμον / sob a lei”, que revela a submissão tanto do Filho de Deus como dos demais filhos de Deus, mas num movimento de submissão do Filho de Deus em virtude do resgate dos demais filhos de Deus.
 
A passagem de uma situação gloriosa do Filho de Deus a uma situação de submissão se dá em virtude do resgate dos demais filhos de Deus. É este movimento que vai explicar e esclarecer a relação e analogia existentes entre a primeira modalidade (c: γενμενον κ γυναικς / nascido de mulher) e a segunda finalidade (f: να τν υοθεσαν πολβωμεν / a fim de que recebêssemos a adoção de filhos), visto que a parte introdutória fala do envio do Filho de Deus (b: ξαπστειλεν θες τν υἱὸν ατο / Deus enviou seu Filho) e a parte conclusiva fala da adoção filial dos filhos de Deus (f: να τν υοθεσαν πολβωμεν / a fim de que recebêssemos a adoção de filhos), pois assim como “por amor aos homens o Pai envia o Filho, também o Filho ama aos homens” (STOCK, 2006, p. 193).
 
Dizer “nascido de mulher” é uma afirmação necessária para se falar da “encarnação do Filho de Deus nascido de uma filha de Israel, portanto, vindo sob a lei” (PERROT, 2013, p. 138), para se falar da mediação e solidariedade do Filho de Deus em relação aos demais filhos de Deus (FERREIRA, 2005, p. 130), visto que “Paulo está certamente sublinhando a humanidade de Jesus (‘nascido de uma mulher’) e sua relação com Israel (‘nascido sob a Lei’)” (FITZMYER, 1985, p. 53).
 
Também é interessante observar que a expressão b: “ξαπστειλεν θες τν υἱὸν ατο / Deus enviou seu Filho” é muito clara, e usada no singular para expressar firmemente que se trata do Filho de Deus. Em todo o texto da carta aos Gálatas é aqui que Paulo deixa isso muito claro. Em Gl 1,12 Paulo fala de “Jesus Cristo”; em Gl 1,16 ele acena para o fato de que o “Filho” é objeto de uma revelação divina; em Gl 4,6, ele fala que “Deus enviou o Espírito de seu Filho”. Enfim, o apóstolo não tinha dúvidas da divindade do “Filho de Deus”, como se lê já na introdução da carta aos Gálatas: “Paulo, Apóstolo - não da parte dos homens nem por intermédio de um homem, mas por Jesus Cristo e Deus Pai que o ressuscitou dentre os mortos” (Gl 1,1).
 
Se por um lado Paulo nada fala expressamente ou explicitamente sobre a “concepção virginal de Maria” (VANNI, 1995, p. 49), por outro lado ele, ao falar que “Deus enviou seu filho nascido de mulher”, é óbvio que ele também afirma que “uma mulher se tornou a mãe humana do próprio Filho de Deus” (VANHOYE, 1978, p. 243), ou ainda, “que ele nasceu de uma mãe humana” (LÉGASSE, 2000, p. 297). É neste sentido que é possível afirmar que Gl 4,4 fala da maternidade divina.
 
Fora desta possibilidade o texto diz respeito à precariedade humana de todo e qualquer ser humano (BONNARD, 1953, p. 86; GONZÁLEZ RUIZ, 1971, p. 194), à qual o Filho de Deus se submeteu a fim de salvar os demais “filhos de Deus”, inclusive “até à morte violenta na cruz” (STOCK, 2006, p. 193; BARBAGLIO, 1991, p. 85), dando uma “informação genérica” (VANNI, 1995, p. 49) sobre o nascimento e a humanidade de Jesus (FAUSTI, 1999, p. 199; DUNN, 1993, p. 215; MARTYN, 1998, p. 390), ou ainda, sobre a “qualidade representativa” (LONGENECKER, 1998, p. 171), humanamente falando, da inserção vital de Cristo na história humana e, concretamente, total imersão do modus vivendi judaico (BETZ, 1979, p. 207).
 
Enfim, é bom recordar que a omissão do nome de Maria neste texto não é suficiente e nem forte motivo para se afirmar que Paulo desconhecia ou negava a “concepção virginal” ou a “maternidade de Maria” em relação a Jesus Cristo, o Filho de Deus (BURTON, 1988, p. 217). Aliás, “é difícil crer que Paulo jamais tinha ouvido falar da concepção virginal” (MCHUGH, 1997, p. 319), mas também “é em vão buscar nesta fórmula o rastro de um nascimento virginal de Jesus” (LÉGASSE, 2000, p. 297-298). Ademais, este nascimento fazia parte das esperanças messiânicas, ainda que possamos dizer que não da forma como aconteceu, pois seria por meios humanos apenas e não por meio divino, por geração direta de Deus. Porém, também não temos como afirmar que Paulo não sabia que o nome da mãe do Messias-Redentor se chamava Maria. Pelo contrário, isso é algo que devia ser do conhecimento comum entre os cristãos, como sendo “uma mulher reconhecida por todos” (STAGLIANÒ, 2016, p. 68).
 
CONCLUSÃO
 
O exame da perícope de Gl 4,1-7 nos ajuda e muito a esclarecer alguns pontos acerca da afirmação paulina sobre a “maternidade de Maria” em relação ao Filho de Deus. Mesmo que Paulo não tenha feito nenhuma afirmação categórica acerca do nascimento de Jesus Cristo por meio de Maria Virgem e nem tenha se interessado em afirmar alguma coisa sobre a concepção virginal de Maria, isso não nega e nem comprova nada. Até mesmo porque isso por si só não quer dizer que Paulo desconhecesse a concepção virginal de Maria e muito menos que ele não acreditasse nela. Pelo contrário, Paulo devia estar plenamente a par disso, pois fazia parte da tradição oral entre os cristãos, como foi registrado depois tanto por Mateus como por Lucas (cf. Mt 1,18-25; Lc 1,26-38). Porém, não era isso o que estava em jogo e sim a participação de Cristo em todos os aspectos humanos (ALETTI, 1988, p. 409), em sua plena historicidade e precariedade, como todos os demais seres humanos (BLIGH, 1972, p. 604; BRUCE, 2004, p. 269; LÉGASSE, 2000, p. 298), como filho de uma filha de Israel (PERROT, 2013, p. 138).
 
Paulo não tem dúvida em afirmar que Cristo “nasceu de mulher, nasceu sob a lei”, a fim de identificá-lo plenamente com a humanidade (FAUSTI, 1999, p. 199).
 
Neste sentido, podemos afirmar que a expressão paulina “nascido de mulher”, aqui em Gl 4,4, “muito mais do que uma expressão de preocupação mariológica, trata-se de uma fórmula antropológica e cristológica: o Filho de Deus tornou-se plenamente homem como nós” (PITTA, 1996, p. 238; LÉGASSE, 2000, p. 298; BUSCEMI, 2004, p. 391), indicando “vulnerabilidade e fragilidade do humano” (NAVARRO PUERTO,1997, p. 331).
 
Os autores, seja em comentários, em artigos ou em capítulos de obras coletivas acerca do texto paulino de Gl 4,4, como vimos aqui, não têm dúvidas em afirmar que este texto não nega a concepção virginal de Maria, mas também afirmam que não é este o interesse na afirmação paulina em jogo (ZERWICK, 1965, p. 76-77; VANNI, 1995, p. 49). Pelo contrário, eles são concordes em falar do mistério da encarnação real e concreta do Filho de Deus, “nascido de mulher, nascido sob a lei”, para falar de sua plena solidariedade com a humanidade (VANHOYE, 1978, p. 240-241; FERREIRA, 2005, p. 130) ou de sua “solidariedade radical” com a realidade humana, até a morte de cruz (BARBAGLIO, 1991, p. 85).
 
Não temos dúvidas de que Gl 4,4 se trata do texto mais antigo do NT que possa fazer uma referência à Maria, mãe de Jesus Cristo. Mas também não temos dúvidas que Paulo não tem em mente fazer a mesma afirmação que fazem os Sinóticos, como em Mt 1,18-25 e Lc 1,26-38. Ele quer fazer apenas uma afirmação genérica (VANNI, 1995, p. 49) acerca do fato de que Jesus nasceu de mulher “como todos os outros seres humanos” (CORSANI, 1990, p. 262), na concretude dos filhos de Israel, na história e realidade do mundo judaico (BARBAGLIO, 1991, p. 84-85; DUNN, 1993, p. 216), a fim de libertar a todos da escravidão da Lei e dar a todos a liberdade de filhos e filhas de Deus. Paulo faz uma afirmação “genérica” inclusive em relação à mulher, visto que não tem em mente, em primeiro lugar, falar de Maria e sim da encarnação histórica e real de Jesus, o Filho de Deus, que se fez em tudo solidário à humanidade, na concretude social dos filhos e filhas Israel (NAVARROPUERTO,1997, p. 332; 335).
 
 
 
 
Waldecir Gonzaga
Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Professor da PUC-Rio. País de origem: Brasil. E-mail: waldecir@puc-rio.br
 

[1] A única menção que temos em um “texto paulino”, e duplamente, é no apócrifo 3 Coríntios, no qual lemos: “Nosso Senhor Jesus Cristo naceu de Maria, da semente de Davi [...]. Mas Deus, o todo poderoso, que é justo e não repudiaria sua própria criação, enviou o Espírito Santo à Maria da Galieia, que creu com todo o seu coração, e recebeu o Espírito Santo em seu ventre para que Jesus pudesse adentrar ao mundo, para que o maligno pudesse ser conquistado pela mesma carne que dominou, e ser convencido de que não era Deus.” (PROENÇA, 2012, p. 316).
2
A fim de se ter uma ideia da interpretação acerca da virgindade de Maria na afirmação paulina de Gl 4,4, tanto a partir da teologia oriental como da ociental, sugerimos a obra de Roover (1963, p. 17-37), onde o autor trabalha a temática desde a Patrística, os gregos e latinos, passando por Tomás de Aquino, por Lutero, por Calvino e por outros autores protestantes, até os autores católicos de sua época, trazendo uma lista de autores que defendem que o texto de Gl 4,4 fala da maternidade virginal de Maria e de outros que defendem que o texto aqui não trata dessa temática, embora Paulo não ignorasse a concepção virginal a mãe de Jesus, por obra do Espírito Santo, como encontramos nos Sinóticos. Igualmene importante é a leitura do texto de DLPOTERRIE (1978, p. 41-90), visto que o autor analisa a possibilidade de uma “alusão à concepção virginal” a partir do texto de Jo 1,13 (“os que foram gerados não pelo sangue, nem pela vontade da carne, nem pela vontade de homem, mas pela vontade de Deus”), visto que há um problema de crítica textual neste texto de João, a saber, se se lê na 3ª pes. plural (“ἐγεννήθησαν / foram gerados”), como na maioria dos Manuscritos, ou se se lê na 3ª pes. singular (“ἐγεννήθη / foi gerado”), como encontramos em Mt 1,16 (“Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual foi gerado Jesus, chamado o Cristo”), quando fala da concepção virginal do Verbo Eterno que se faz carne no seio de Maria Virgem. Mas aqui em Jo 1,13, a variante plural é atestada e preferida pelos mais importantes se significativos Manuscritos que trazem o Evangelho de João; e sempre um indicativo aoristo passivo.

[2] Ver Schnelle (2004, p. 152-154).

[3] “De Gl 4,4s não se pode tirar um argumento nem a favor nem contra o nascimento de Jesus de uma virgem, coisas ambas que são tentadas pela exegese. Os Padres, mas também Lutero e Calvino e em parte também a exegese atual, explicam o texto no sentido do nascimento de uma virgem. Mas, evidentemente, não se pode concluir que S. Paulo, por não nomear um pai, esteja indicando o nascimento de uma virgem. Mas também não se pode raciocinar que S. Paulo deveria ter dito “nascido da virgem” se tivesse tido a intenção de ensinar o nascimento de uma virgem. S. Paulo só quer atestar a encarnação e humanidade verdadeira do Filho. Ou, contudo se pode entreouvir, que toda esta humanidade inteira e verdadeira era atingida por uma conceição e nascimento milagroso?” (SCHELKLE, 1975, p. 144-145).
 
[4] O autor remete a Flávio Josefo, Antiquidades Judaicas, 2.216; 7.21; 16.382; além disso, Longenecker também cita os textos de Eclo 44,9; 1Esd 4,16; Tb 8,6; Sb 7,3; Mt 11,11; Lc 7,28 e Rm 1,3, a fim de se conferir a expressão “nascido de” ou “ser nascido”.
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Artigo submetido em 18 de junho de 2018 e aprovado em 15 abril de 2019
Horizonte, Belo Horizonte, v. 17, n. 53, p. 1194-1216, maio/ago. 2019 – ISSN 2175-5841
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Disponível em: Periódicos PUC Minas

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