Viagem
Apostólica do Papa Francisco ao México
Encontro
com os Bispos do México na Catedral
Estou feliz por vos poder encontrar no dia seguinte
ao da minha chegada a este amado país, que também eu, seguindo os passos dos
meus Predecessores, vim visitar.
Não podia deixar de vir! Poderia o Sucessor de
Pedro, chamado do profundo sul latino-americano, privar-se da possibilidade de
pousar o olhar na «Virgem Morenita»?
Agradeço-vos por me terdes recebido nesta Catedral
– a «casita», um pouco alongada mas sempre «sagrada», que pediu a Virgem de
Guadalupe – e pelas amáveis palavras de boas-vindas que me dirigistes.
Sabendo que aqui se encontra o coração secreto de
cada mexicano, entro com passo delicado, como se deve entrar na casa e na alma
deste povo, sentindo-me profundamente grato por me abrir a porta. Sei que,
fixando os olhos da Virgem, alcanço o olhar do seu povo, que aprendeu a
mostrar-se n’Ela. Sei que nenhuma outra voz pode falar tão profundamente do
coração mexicano, como me pode falar a Virgem; Ela guarda os seus mais nobres
desejos e as esperanças mais recônditas; recolhe as suas alegrias e lágrimas;
Ela compreende os seus numerosos idiomas e responde-lhes com ternura de Mãe,
porque são os seus filhos.
Estou feliz por estar convosco aqui, nas
proximidades da «Colina de Tepeyac», como nos alvores da evangelização deste
continente e, por favor, permiti-me que, tudo quanto vos disser, possa fazê-lo
partindo da Guadalupana. Como quereria que fosse Ela mesma a levar, até às
profundezas das vossas almas de pastores e – por vosso intermédio – a cada uma
das vossas Igrejas particulares presentes neste vasto México, tudo o que
intensamente brota do coração do Papa!
Como sucedeu com São Juan Diego e as sucessivas
gerações dos filhos da Guadalupana, também o Papa, há tempos, cultivava o desejo
de olhar para Ela. Mais ainda, queria eu mesmo ser envolvido pelo seu olhar
materno. Reflecti muito sobre o mistério deste olhar e peço-vos que acolhais
tudo o que brota do meu coração de Pastor neste momento.
Um olhar de
ternura
Antes de mais nada, a «Virgem Morenita» ensina-nos
que a única força capaz de conquistar o coração dos homens é a ternura de Deus.
Aquilo que encanta e atrai, aquilo que abranda e vence, aquilo que abre e
liberta das cadeias não é a força dos meios nem a dureza da lei, mas a fragilidade
omnipotente do amor divino, que é a força irresistível da sua doçura e a
promessa irreversível da sua misericórdia.
Um inquieto e ilustre escritor desta terra, Octávio
Paz, disse que, em Guadalupe, não se pede a abundância das colheitas nem a fertilidade
da terra, mas procura-se um regaço no qual os homens, sempre órfãos e
deserdados, buscam um abrigo, um lar.
Passados séculos do evento fundador deste país e da
evangelização do continente, porventura se diluiu ou está esquecida a
necessidade dum regaço por que anseia o coração do povo que vos está confiado?
Conheço a longa e dolorosa história que
atravessastes, não sem o derramamento de muito sangue, não sem convulsões
impiedosas e dilacerantes, não sem violência e incompreensões. Com razão, o meu
venerado e santo Predecessor, que se sentia no México como em sua casa, quis
lembrar que a vossa história «é percorrida, como rios às vezes ocultos e sempre
caudalosos, por três realidades que ora se encontram, ora revelam as suas
diferenças complementares, sem jamais se confundirem totalmente: a antiga e
rica sensibilidade dos povos indígenas que amaram Juan de Zumárraga e Vasco de
Quiroga, aos quais muitos desses povos continuam a chamar pais; o cristianismo
arraigado na alma dos mexicanos; e a moderna racionalidade, de perfil europeu,
que tanto quis enaltecer a independência e a liberdade» (João Paulo II,
Discurso na cerimónia de chegada ao México, 22 de Janeiro de 1999).
E nesta história, nunca se mostrou infecundo o
regaço materno que tem gerado continuamente o México, embora às vezes se
parecesse com aquela rede quase a romper-se que continha cento e cinquenta e
três peixes (Jo 21, 11), mas as fracturas ameaçadoras sempre se recompuseram.
Por isso, convido-vos a começar de novo desta
necessidade de um regaço que emana da alma do vosso povo. O regaço da fé cristã
é capaz de reconciliar o passado marcado muitas vezes por solidão, isolamento e
marginalização, com o futuro continuamente relegado para um amanhã que escapa.
Apenas naquele regaço é possível, sem renunciar à própria identidade,
«descobrir a verdade profunda da nova humanidade, em que todos são chamados a
ser filhos de Deus» (João Paulo II, Homilia na canonização de São Juan Diego, 31
de Julho de 2002).
Inclinai-vos, com delicadeza e respeito, sobre a
alma profunda do vosso povo, debruçai-vos com atenção e decifrai o seu rosto
misterioso. Porventura o presente, muitas vezes dissolvido em dispersões e
festas, não é prenúncio de Deus que é o único e pleno presente? Porventura a
familiaridade com a dor e a morte não são formas de coragem e caminhos rumo à
esperança? Porventura a percepção de que o mundo esteja necessitado sempre e
somente de redenção não será um antídoto à auto-suficiência arrogante de
quantos julgam possível poder prescindir de Deus?
Naturalmente, para tudo isto é necessário um olhar
capaz de reflectir a ternura de Deus. Por isso, sede bispos de olhar límpido,
alma transparente, rosto luminoso; não tenhais medo da transparência; a Igreja
não precisa da obscuridade para trabalhar. Vigiai para que os vossos olhares
não se cubram com as penumbras da névoa do mundanismo; não vos deixeis
corromper pelo vulgar materialismo nem pelas ilusões sedutoras dos acordos
feitos por baixo da mesa; não ponhais a vossa confiança nos «carros e cavalos»
dos faraós de hoje, porque a nossa força é a «coluna de fogo» que irrompe
separando em duas as águas do mar, sem fazer grande rumor (Ex 14, 24-25).
O mundo, onde o Senhor nos chama a exercer a nossa
missão, tornou-se muito complexo. À prepotente ideia do «cogito», que pelo
menos não negava que houvesse uma rocha acima da areia do ser, sobrepôs-se hoje
uma concepção da vida – no dizer de muitos – mais vacilante, vaga e caótica do
que nunca, porque carece de um substrato sólido. As fronteiras, tão
intensamente exigidas e sustentadas, tornaram-se permeáveis à novidade dum
mundo em que a força de alguns já não pode sobreviver sem a vulnerabilidade dos
outros. A hibridação irreversível da tecnologia aproxima o que está afastado,
mas, infelizmente, torna distante o que deveria estar perto.
E, precisamente neste mundo, Deus pede-vos para ter
um olhar capaz de interceptar a pergunta que grita no coração do vosso povo, o
único que, no próprio calendário, possui uma «festa do grito». Àquele grito, é
preciso responder que Deus existe e, graças a Jesus, está perto; responder que
só Deus é a realidade sobre a qual se pode construir, porque «Deus é a
realidade fundante, não um Deus apenas pensado ou hipotético, mas o Deus com um
rosto humano» (Bento XVI, Discurso inaugural da V Conferência Geral do CELAM,
13 de Maio de 2007).
Nos vossos olhares, o povo mexicano tem o direito
de encontrar os indícios de quem «viu o Senhor» (cf. Jo 20, 25), de quem esteve
com Deus. Isto é o essencial. Assim, não percais tempo e energias nas coisas
secundárias, nas críticas e intrigas, em projectos vãos de carreira, em planos
vazios de hegemonia, nos clubes estéreis de interesses ou compadrios. Não vos
deixeis paralisar pelas murmurações e maledicências. Introduzi os vossos
sacerdotes nesta compreensão do ministério sagrado. A nós, ministros de Deus,
basta a graça de «beber o cálice do Senhor», o dom de guardar a parte da sua
herança que nos foi confiada, apesar de sermos administradores inexperientes.
Deixemos o Pai atribuir-nos o lugar que preparou para nós (Mt 20, 20-28).
Poderemos nós ocupar-nos verdadeiramente doutras coisas que não sejam as do
Pai? Fora das «coisas do Pai» (Lc 2, 48-49), perdemos a nossa identidade e,
culpavelmente, tornamos vã a sua graça.
Se o nosso olhar não dá testemunho de ter visto
Jesus, então as palavras que recordamos d’Ele não passam de figuras retóricas
vazias. Talvez expressem a nostalgia daqueles que não podem esquecer o Senhor,
mas, em todo o caso, são apenas o balbuciar de órfãos junto do sepulcro. No fim
de contas, são palavras incapazes de impedir que o mundo fique abandonado e
reduzido ao próprio poder desesperado.
Penso na necessidade de oferecer um regaço materno
aos jovens. Que os vossos olhares sejam capazes de se cruzar com o deles, de os
amar e individuar o que eles buscam com aquela força com que muitos como eles
deixaram barcos e redes na praia do mar (Mc 1, 17-18), abandonaram bancas de
extorsão para seguir o Senhor da verdadeira riqueza (Mt 9, 9).
Em particular preocupam-me tantos jovens que,
seduzidos pelo poder vazio do mundo, exaltam as quimeras e revestem-se dos seus
símbolos macabros para comercializar a morte em troca de moedas que, no fim, a
ferrugem corrói e os ladrões arrombam os muros para as roubar (Mt 6, 19).
Peço-vos que não subestimeis o desafio ético e anticívico que o narcotráfico
representa para a sociedade mexicana inteira, incluindo a Igreja.
A amplitude do fenômeno, a complexidade das suas
causas, a imensidade da sua extensão como metástase devoradora, a gravidade da
violência que desagrega e suas conexões transtornadas não consentem que nós,
pastores da Igreja, nos refugiemos em condenações genéricas, mas exigem uma
coragem profética e um projecto pastoral sério e qualificado para contribuir,
gradualmente, a tecer aquela delicada rede humana, sem a qual todos estaríamos,
desde o início, derrotados por tal ameaça insidiosa. Só começando das famílias;
aproximando-nos e abraçando a periferia humana e existencial das áreas
desoladas das nossas cidades; envolvendo as comunidades paroquiais, as escolas,
as instituições comunitárias, a comunidade política, as estruturas de
segurança; só assim será possível libertar-se totalmente das águas onde,
infelizmente, se afogam tantas vidas, seja a de quem morre como vítima, seja a
de quem diante de Deus terá as mãos sempre manchadas de sangue, mesmo que tenha
os bolsos cheios de dinheiro sórdido e a consciência anestesiada.