Viagem
Apostólica do Papa Francisco ao México
Encontro
com os Bispos do México na Catedral
Estou feliz por vos poder encontrar no dia seguinte
ao da minha chegada a este amado país, que também eu, seguindo os passos dos
meus Predecessores, vim visitar.
Não podia deixar de vir! Poderia o Sucessor de
Pedro, chamado do profundo sul latino-americano, privar-se da possibilidade de
pousar o olhar na «Virgem Morenita»?
Agradeço-vos por me terdes recebido nesta Catedral
– a «casita», um pouco alongada mas sempre «sagrada», que pediu a Virgem de
Guadalupe – e pelas amáveis palavras de boas-vindas que me dirigistes.
Sabendo que aqui se encontra o coração secreto de
cada mexicano, entro com passo delicado, como se deve entrar na casa e na alma
deste povo, sentindo-me profundamente grato por me abrir a porta. Sei que,
fixando os olhos da Virgem, alcanço o olhar do seu povo, que aprendeu a
mostrar-se n’Ela. Sei que nenhuma outra voz pode falar tão profundamente do
coração mexicano, como me pode falar a Virgem; Ela guarda os seus mais nobres
desejos e as esperanças mais recônditas; recolhe as suas alegrias e lágrimas;
Ela compreende os seus numerosos idiomas e responde-lhes com ternura de Mãe,
porque são os seus filhos.
Estou feliz por estar convosco aqui, nas
proximidades da «Colina de Tepeyac», como nos alvores da evangelização deste
continente e, por favor, permiti-me que, tudo quanto vos disser, possa fazê-lo
partindo da Guadalupana. Como quereria que fosse Ela mesma a levar, até às
profundezas das vossas almas de pastores e – por vosso intermédio – a cada uma
das vossas Igrejas particulares presentes neste vasto México, tudo o que
intensamente brota do coração do Papa!
Como sucedeu com São Juan Diego e as sucessivas
gerações dos filhos da Guadalupana, também o Papa, há tempos, cultivava o desejo
de olhar para Ela. Mais ainda, queria eu mesmo ser envolvido pelo seu olhar
materno. Reflecti muito sobre o mistério deste olhar e peço-vos que acolhais
tudo o que brota do meu coração de Pastor neste momento.
Um olhar de
ternura
Antes de mais nada, a «Virgem Morenita» ensina-nos
que a única força capaz de conquistar o coração dos homens é a ternura de Deus.
Aquilo que encanta e atrai, aquilo que abranda e vence, aquilo que abre e
liberta das cadeias não é a força dos meios nem a dureza da lei, mas a fragilidade
omnipotente do amor divino, que é a força irresistível da sua doçura e a
promessa irreversível da sua misericórdia.
Um inquieto e ilustre escritor desta terra, Octávio
Paz, disse que, em Guadalupe, não se pede a abundância das colheitas nem a fertilidade
da terra, mas procura-se um regaço no qual os homens, sempre órfãos e
deserdados, buscam um abrigo, um lar.
Passados séculos do evento fundador deste país e da
evangelização do continente, porventura se diluiu ou está esquecida a
necessidade dum regaço por que anseia o coração do povo que vos está confiado?
Conheço a longa e dolorosa história que
atravessastes, não sem o derramamento de muito sangue, não sem convulsões
impiedosas e dilacerantes, não sem violência e incompreensões. Com razão, o meu
venerado e santo Predecessor, que se sentia no México como em sua casa, quis
lembrar que a vossa história «é percorrida, como rios às vezes ocultos e sempre
caudalosos, por três realidades que ora se encontram, ora revelam as suas
diferenças complementares, sem jamais se confundirem totalmente: a antiga e
rica sensibilidade dos povos indígenas que amaram Juan de Zumárraga e Vasco de
Quiroga, aos quais muitos desses povos continuam a chamar pais; o cristianismo
arraigado na alma dos mexicanos; e a moderna racionalidade, de perfil europeu,
que tanto quis enaltecer a independência e a liberdade» (João Paulo II,
Discurso na cerimónia de chegada ao México, 22 de Janeiro de 1999).
E nesta história, nunca se mostrou infecundo o
regaço materno que tem gerado continuamente o México, embora às vezes se
parecesse com aquela rede quase a romper-se que continha cento e cinquenta e
três peixes (Jo 21, 11), mas as fracturas ameaçadoras sempre se recompuseram.
Por isso, convido-vos a começar de novo desta
necessidade de um regaço que emana da alma do vosso povo. O regaço da fé cristã
é capaz de reconciliar o passado marcado muitas vezes por solidão, isolamento e
marginalização, com o futuro continuamente relegado para um amanhã que escapa.
Apenas naquele regaço é possível, sem renunciar à própria identidade,
«descobrir a verdade profunda da nova humanidade, em que todos são chamados a
ser filhos de Deus» (João Paulo II, Homilia na canonização de São Juan Diego, 31
de Julho de 2002).
Inclinai-vos, com delicadeza e respeito, sobre a
alma profunda do vosso povo, debruçai-vos com atenção e decifrai o seu rosto
misterioso. Porventura o presente, muitas vezes dissolvido em dispersões e
festas, não é prenúncio de Deus que é o único e pleno presente? Porventura a
familiaridade com a dor e a morte não são formas de coragem e caminhos rumo à
esperança? Porventura a percepção de que o mundo esteja necessitado sempre e
somente de redenção não será um antídoto à auto-suficiência arrogante de
quantos julgam possível poder prescindir de Deus?
Naturalmente, para tudo isto é necessário um olhar
capaz de reflectir a ternura de Deus. Por isso, sede bispos de olhar límpido,
alma transparente, rosto luminoso; não tenhais medo da transparência; a Igreja
não precisa da obscuridade para trabalhar. Vigiai para que os vossos olhares
não se cubram com as penumbras da névoa do mundanismo; não vos deixeis
corromper pelo vulgar materialismo nem pelas ilusões sedutoras dos acordos
feitos por baixo da mesa; não ponhais a vossa confiança nos «carros e cavalos»
dos faraós de hoje, porque a nossa força é a «coluna de fogo» que irrompe
separando em duas as águas do mar, sem fazer grande rumor (Ex 14, 24-25).
O mundo, onde o Senhor nos chama a exercer a nossa
missão, tornou-se muito complexo. À prepotente ideia do «cogito», que pelo
menos não negava que houvesse uma rocha acima da areia do ser, sobrepôs-se hoje
uma concepção da vida – no dizer de muitos – mais vacilante, vaga e caótica do
que nunca, porque carece de um substrato sólido. As fronteiras, tão
intensamente exigidas e sustentadas, tornaram-se permeáveis à novidade dum
mundo em que a força de alguns já não pode sobreviver sem a vulnerabilidade dos
outros. A hibridação irreversível da tecnologia aproxima o que está afastado,
mas, infelizmente, torna distante o que deveria estar perto.
E, precisamente neste mundo, Deus pede-vos para ter
um olhar capaz de interceptar a pergunta que grita no coração do vosso povo, o
único que, no próprio calendário, possui uma «festa do grito». Àquele grito, é
preciso responder que Deus existe e, graças a Jesus, está perto; responder que
só Deus é a realidade sobre a qual se pode construir, porque «Deus é a
realidade fundante, não um Deus apenas pensado ou hipotético, mas o Deus com um
rosto humano» (Bento XVI, Discurso inaugural da V Conferência Geral do CELAM,
13 de Maio de 2007).
Nos vossos olhares, o povo mexicano tem o direito
de encontrar os indícios de quem «viu o Senhor» (cf. Jo 20, 25), de quem esteve
com Deus. Isto é o essencial. Assim, não percais tempo e energias nas coisas
secundárias, nas críticas e intrigas, em projectos vãos de carreira, em planos
vazios de hegemonia, nos clubes estéreis de interesses ou compadrios. Não vos
deixeis paralisar pelas murmurações e maledicências. Introduzi os vossos
sacerdotes nesta compreensão do ministério sagrado. A nós, ministros de Deus,
basta a graça de «beber o cálice do Senhor», o dom de guardar a parte da sua
herança que nos foi confiada, apesar de sermos administradores inexperientes.
Deixemos o Pai atribuir-nos o lugar que preparou para nós (Mt 20, 20-28).
Poderemos nós ocupar-nos verdadeiramente doutras coisas que não sejam as do
Pai? Fora das «coisas do Pai» (Lc 2, 48-49), perdemos a nossa identidade e,
culpavelmente, tornamos vã a sua graça.
Se o nosso olhar não dá testemunho de ter visto
Jesus, então as palavras que recordamos d’Ele não passam de figuras retóricas
vazias. Talvez expressem a nostalgia daqueles que não podem esquecer o Senhor,
mas, em todo o caso, são apenas o balbuciar de órfãos junto do sepulcro. No fim
de contas, são palavras incapazes de impedir que o mundo fique abandonado e
reduzido ao próprio poder desesperado.
Penso na necessidade de oferecer um regaço materno
aos jovens. Que os vossos olhares sejam capazes de se cruzar com o deles, de os
amar e individuar o que eles buscam com aquela força com que muitos como eles
deixaram barcos e redes na praia do mar (Mc 1, 17-18), abandonaram bancas de
extorsão para seguir o Senhor da verdadeira riqueza (Mt 9, 9).
Em particular preocupam-me tantos jovens que,
seduzidos pelo poder vazio do mundo, exaltam as quimeras e revestem-se dos seus
símbolos macabros para comercializar a morte em troca de moedas que, no fim, a
ferrugem corrói e os ladrões arrombam os muros para as roubar (Mt 6, 19).
Peço-vos que não subestimeis o desafio ético e anticívico que o narcotráfico
representa para a sociedade mexicana inteira, incluindo a Igreja.
A amplitude do fenômeno, a complexidade das suas
causas, a imensidade da sua extensão como metástase devoradora, a gravidade da
violência que desagrega e suas conexões transtornadas não consentem que nós,
pastores da Igreja, nos refugiemos em condenações genéricas, mas exigem uma
coragem profética e um projecto pastoral sério e qualificado para contribuir,
gradualmente, a tecer aquela delicada rede humana, sem a qual todos estaríamos,
desde o início, derrotados por tal ameaça insidiosa. Só começando das famílias;
aproximando-nos e abraçando a periferia humana e existencial das áreas
desoladas das nossas cidades; envolvendo as comunidades paroquiais, as escolas,
as instituições comunitárias, a comunidade política, as estruturas de
segurança; só assim será possível libertar-se totalmente das águas onde,
infelizmente, se afogam tantas vidas, seja a de quem morre como vítima, seja a
de quem diante de Deus terá as mãos sempre manchadas de sangue, mesmo que tenha
os bolsos cheios de dinheiro sórdido e a consciência anestesiada.
Um olhar
capaz de tecer
No manto da alma mexicana, Deus teceu, com o fio
dos traços mestiços do seu povo, o rosto da sua manifestação na «Morenita».
Deus não precisa de cores perecíveis para desenhar o seu rosto. Os desenhos de
Deus não são condicionados pelas cores e os fios, mas determinados pela
irreversibilidade do seu amor que quer tenazmente imprimir-se em nós.
Por isso, sede bispos capazes de imitar esta
liberdade de Deus, escolhendo o que é humilde para manifestar a majestade do
seu rosto e copiar esta paciência divina ao tecer, com o fio subtil da humanidade
que encontrais, aquele homem novo que o vosso país espera. Não vos deixeis
levar pela vã pretensão de mudar o povo, como se o amor de Deus não tivesse
força suficiente para o mudar.
Redescobri, depois, a constância sábia e humilde
com que os Pais da fé desta Pátria souberam introduzir as gerações sucessivas
na semântica do mistério divino. Primeiro aprendendo e, em seguida, ensinando a
gramática necessária para dialogar com Deus, escondido nos séculos da sua busca
e tornado próximo na pessoa do seu Filho Jesus, que hoje muitos reconhecem, na
sua imagem ensanguentada e humilhada, como figura do próprio destino. Imitai a
sua condescendência e capacidade de abaixar-se; nunca compreenderemos
suficientemente o fato de Deus ter tecido, com os fios mestiços do nosso povo,
o rosto com que Se deu a conhecer! Nunca Lhe agradeceremos bastante a esse
inclinar-se.
Peço-vos um olhar de singular delicadeza para os
povos indígenas e as suas fascinantes e não raro massacradas culturas. O México
tem necessidade das suas raízes ameríndias, para não ficar um enigma sem
solução. Os indígenas do México esperam ainda que se lhes reconheça,
efetivamente, a riqueza da sua contribuição e a fecundidade da sua presença
para herdar aquela identidade que vos torna uma nação única, e não apenas uma
entre outras.
Muitas vezes se falou do presunto destino por
cumprir desta nação, do «labirinto da solidão» em que estaria prisioneira, da
geografia como destino que a enreda. Segundo alguns, tudo isto seria obstáculo
para o desenho dum rosto unitário, duma identidade adulta, duma posição
singular no concerto das nações e duma missão compartilhada.
Segundo outros, a própria Igreja no México estaria
condenada a escolher entre sofrer a inferioridade para onde foi relegada
nalguns períodos da sua história, como quando a sua voz foi silenciada e
procurou-se suprimir a sua presença, ou aventurar-se nos fundamentalismos para
recuperar certezas provisórias, esquecendo-se que tem inscrita no coração a
sede do Absoluto e está chamada, em Cristo, a congregar todos e não apenas uma parte
(cf. Lumen gentium 1, 1).
Em vez disso, não vos canseis de lembrar ao vosso
povo como são fortes as raízes antigas que permitiram a viva síntese cristã de
comunhão humana, cultural e espiritual que aqui se forjou. Recordai que as asas
do vosso povo já planaram várias vezes por cima de não poucas vicissitudes.
Guardai a memória do longo caminho percorrido até agora e sabei suscitar a
esperança de novas metas, porque o amanhã será uma terra «rica de frutos»
embora nos coloque desafios não indiferentes (Nm 13, 27-28).
Que os vossos olhares, fixos sempre e apenas em
Cristo, sejam capazes de contribuir para a unidade do vosso povo; favorecer a
reconciliação das suas diferenças e a integração das suas diversidades;
promover a solução dos seus problemas endógenos; lembrar a medida alta que o
México pode alcançar, se aprender a pertencer-se a si mesmo antes que aos
outros; ajudar a encontrar soluções compartilhadas e sustentáveis para as suas
misérias; motivar a nação inteira para não se contentar com menos de quanto se
espera do modo mexicano de habitar o mundo.
Um olhar
atento e solidário, não adormecido
Peço-vos para não cairdes na estagnação de dar
velhas respostas às novas questões. O vosso passado é um poço de riquezas por
escavar, que pode inspirar o presente e iluminar o futuro. Ai de vós se vos
deixais adormentar sobre os louros! É preciso não desperdiçar a herança
recebida, guardando-a com um trabalho constante. Estais sentados aos ombros de
gigantes: bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos fiéis «até ao
fim», que deram a vida para que a Igreja pudesse cumprir a sua missão. Do alto
de tal pódio, sois chamados a alongar o olhar sobre o campo do Senhor para
programar a sementeira e esperar a colheita.
Convido-vos a trabalhar sem medo, a cansar-se sem
medo na tarefa de evangelizar e aprofundar a fé, por meio duma catequese
mistagógica que saiba valorizar a religiosidade popular da vossa gente. O nosso
tempo exige atenção pastoral às pessoas e grupos que esperam poder encontrar-se
com Cristo vivo. Só uma corajosa conversão pastoral das nossas comunidades pode
procurar, gerar e nutrir os atuais discípulos de Jesus (cf. Documento de
Aparecida, 226; 368; 370).
Por isso nós, pastores, precisamos de vencer a
tentação da distância e do clericalismo, da frieza e da indiferença, do
triunfalismo e da auto-referencialidade. Guadalupe ensina-nos que Deus é
familiar no seu rosto, que a proximidade e esse abaixar-se, podem fazer mais do
que a força.
Como ensina a bela tradição guadalupana, a
«Morenita» guarda os olhares daqueles que A contemplam, reflete o rosto
daqueles que A encontram. É necessário aprender que há algo de irrepetível em
cada pessoa que olha para nós à procura de Deus. Compete-nos a nós tornar-nos
permeáveis a tais olhares: guardar em nós cada um deles, conservá-los no
coração, protegê-los.
Só uma Igreja que saiba proteger o rosto dos homens
que vêm bater à sua porta, será capaz de lhes falar de Deus. Se não decifrarmos
os seus sofrimentos, se não nos dermos conta das suas necessidades, nada
poderemos oferecer. A riqueza de que dispomos flui somente quando encontramos a
pequenez daqueles que mendigam, encontro esse que se realiza, precisamente, no
nosso coração de pastores.
Peço-vos que o primeiro rosto a guardar no vosso
coração seja o dos vossos sacerdotes. Não os deixeis expostos à solidão e ao
abandono, como presa do mundanismo que devora o coração. Estai atentos e
aprendei a ler os seus olhares, para vos alegrardes com eles quando se sentem
felizes contando tudo o que «fizeram e ensinaram» (Mc 6, 30), e para não os
abandonardes quando se sentem um pouco desanimados, só conseguindo chorar
porque «negaram o Senhor» (Lc 22, 61-62), e também para os apoiardes, em
comunhão com Cristo, quando algum, abatido, sair com Judas «na noite» (Jo 13, 30).
Nestas situações, nunca falte a vossa paternidade de bispos para com os vossos
sacerdotes. Encorajai a comunhão entre eles; fazei com que possam aperfeiçoar
os seus dons; inseri-os nas grandes causas, porque o coração do apóstolo não
foi feito para coisas pequenas.
A necessidade de familiaridade habita no coração de
Deus. Assim Nossa Senhora de Guadalupe pede apenas uma «casita sagrada». Os
nossos povos latino-americanos apreciam os diminutivos na linguagem e usam-nos
de bom grado. Talvez necessitem de diminutivos porque, doutra forma,
sentir-se-iam perdidos. Adaptaram-se a sentir-se pequeninos e acostumaram-se a
viver na modéstia.
A Igreja, mesmo quando se reúne numa majestosa
catedral, não poderá deixar de considerar-se como uma «casita» onde os seus
filhos se sintam à vontade. Diante de Deus, pode-se permanecer apenas se se é
pequeno, se se é órfão, se se é mendicante.
«Casita» familiar e, ao mesmo tempo, «sagrada»,
porque a proximidade se enche da grandeza onipotente. Somos guardiões deste
mistério. Às vezes perdemos este sentido da medida divina humilde e cansamo-nos
de oferecer ao nosso povo a «casita», onde possa sentir-se em intimidade com
Deus. Pode acontecer também que, tendo descuidado um pouco o sentido da sua
grandeza, se perdeu em parte o temor reverencial para com tal amor. Onde habita
Deus, o homem não pode aceder sem ter sido admitido e sem antes «tirar as
sandálias dos pés» (Ex 3, 5) confessando assim a própria insuficiência.
O fato de nos termos esquecido de «tirar as
sandálias» para entrar não estará porventura na raiz da perda do sentido da
sacralidade da vida humana, da pessoa, dos valores essenciais, da sabedoria
acumulada ao longo dos séculos, do respeito pela natureza? Sem recuperar, na
consciência dos homens e da sociedade, estas raízes profundas, até ao generoso
empenho em prol dos legítimos direitos humanos faltará a seiva vital que só
pode vir dum manancial que a humanidade não poderá jamais dar-se por si mesma.
Um olhar de
conjunto e de unidade
Só olhando a «Morenita» é que o México tem uma
visão completa de si mesmo. Por isso convido-vos a compreender que a missão que
a Igreja vos confia exige este olhar que abrace a totalidade. E isto não se
pode realizar isoladamente, mas só em comunhão.
A cintura da Guadalupana anuncia a sua fecundidade.
É a Virgem que traz, no ventre, o Filho esperado pelos homens. É a Mãe que já
tem em gestação a humanidade do novo mundo que nasce. É a Esposa que prefigura
a maternidade fecunda da Igreja de Cristo. Vós tendes a missão de cingir a
nação mexicana inteira com a fecundidade de Deus. Nenhum pedaço desta cintura
pode ser desprezado.
O episcopado mexicano realizou passos notáveis
nestes anos conciliares; aumentaram os seus membros; promoveu-se uma contínua e
qualificada formação permanente; não faltou o ambiente fraterno; cresceu o
espírito de colegialidade; as intervenções pastorais influíram sobre as vossas
Igrejas e sobre a consciência nacional; as actividades pastorais compartilhadas
revelaram-se frutuosas em áreas essenciais da missão eclesial como a família,
as vocações, a presença social.
Ao mesmo tempo que nos alegramos com o caminho
destes anos, peço-vos que não vos deixeis desanimar com as dificuldades nem
poupeis qualquer esforço possível para promover, entre vós e nas vossas
dioceses, o zelo missionário, especialmente a favor das partes mais
necessitadas do único corpo da Igreja mexicana. Redescobrir que a Igreja é
missão constitui um elemento fundamental para o seu futuro, porque só o
entusiasmo, a admiração convicta dos evangelizadores tem a força de arrastar.
Por isso, peço-vos que cuideis de maneira especial da formação e preparação dos
leigos, superando toda a forma de clericalismo e envolvendo-os activamente na
missão da Igreja, principalmente tornando presente, com o testemunho da própria
vida, o Evangelho de Cristo no mundo.
Muito ajudaria a este povo mexicano um testemunho
unificante da síntese cristã e uma visão compartilhada da identidade e destino
dele. Neste sentido, será muito importante que a Pontifícia Universidade do
México esteja cada vez mais presente no coração dos esforços eclesiais para
garantir aquele olhar de universalidade sem o qual a razão, resignada com
modelos parciais, renuncia à sua mais alta aspiração de buscar a verdade.
A missão é vasta, e levá-la por diante requer uma
multiplicidade de caminhos. Exorto-vos, com a mais viva insistência, a
conservar a comunhão e a unidade entre vós. Isso é essencial, irmãos. Se
tiverem que brigar, briguem, mas como homens, homens de Deus, à frente. Que ao
passar a brigar, peçam perdão. A comunhão é a forma vital da Igreja, e a
unidade dos seus pastores dá prova da sua veracidade. O México e a sua vasta e
multiforme Igreja têm necessidade de bispos servidores e guardiães da unidade
construída sobre a Palavra do Senhor, alimentada com o seu Corpo e guiada pelo
seu Espírito que é o alento vital da Igreja.
Não há necessidade de «príncipes», mas duma
comunidade de testemunhas do Senhor. Cristo é a sua única luz; é a fonte da
água viva; da sua respiração, sai o Espírito que estende as velas da barca
eclesial. Em Cristo glorificado, que os membros deste povo gostam de honrar
como Rei, acendei juntos a luz, enchei-vos da sua presença que não Se extingue;
respirai a plenos pulmões o ar bom do seu Espírito. Compete-vos semear Cristo
no território, manter acesa a sua luz humilde que ilumina sem ofuscar, garantir
que nas suas águas se sacie a sede do vosso povo; levantar as velas de modo que
o sopro do Espírito as impulsione e não encalhe a barca da Igreja no México.
Lembrai-vos de que a Esposa sabe bem que o Pastor
amado (Ct 1, 7) Se encontra apenas onde as pastagens são verdejantes e os
ribeiros cristalinos. A Esposa desconfia dos companheiros do Esposo que, às
vezes por descuido ou incapacidade, conduzem o rebanho para lugares áridos e
cheios de pedregulhos. Ai de nós, pastores, companheiros do Supremo Pastor, se
deixarmos vagar a sua Esposa, porque, na tenda por nós construída, não se
encontra o Esposo.
Permiti-me uma última palavra para expressar o apreço
do Papa por tudo o que tendes feito para enfrentar o desafio deste nosso tempo
que são as migrações. Hoje, são milhões os filhos da Igreja que vivem na
diáspora ou em trânsito peregrinando para o norte à procura de novas
oportunidades. Muitos deles deixam para trás as suas raízes para se aventurar,
mesmo na clandestinidade que envolve todo o tipo de riscos, em busca da «luz
verde» que olham como a sua esperança. Muitas famílias se dividem; e nem sempre
a integração na alegada «terra prometida» é tão fácil como se pensa.
Irmãos, que os vossos corações sejam capazes de os
seguir e alcançar além das fronteiras. Reforçai a comunhão com os vossos irmãos
do episcopado estadunidense, para que a presença materna da Igreja mantenha
viva as raízes da sua fé, as razões da sua esperança e a força da sua caridade.
Para não acontecer que, pendurando as suas cítaras, emudeçam as suas alegrias,
esquecendo-se de Jerusalém e transformando-se em «exilados de si mesmos» (Salmo
136). Juntos, testemunhai que a Igreja é guardiã duma visão unitária do homem e
não pode aceitar que seja reduzido a mero «recurso humano».
Não será vã a solicitude das vossas dioceses ao
derramar o pouco bálsamo que possuem nos pés feridos de quantos atravessam os
seus territórios e gastar em favor deles o dinheiro duramente arrecadado; no
fim, o divino Samaritano enriquecerá a quem não passou indiferente por Ele
quando estava caído na estrada (Lc 10, 25-37).
Queridos irmãos, o Papa tem a certeza de que o
México e a sua Igreja chegarão a tempo ao encontro consigo mesmo, com a
história, com Deus. Talvez alguma pedra no caminho atrase a marcha, e o cansaço
da viagem exigirá alguma pausa, mas nunca será suficiente para vos fazer perder
a meta. Na verdade, poderá chegar tarde quem tem uma Mãe à sua espera? Quem
pode ouvir continuamente ressoar no próprio coração: «Não estou aqui Eu, que
sou tua Mãe?
_________________________________________
Canção Nova
Nenhum comentário:
Postar um comentário