Quarto sermão de Quaresma
MATRIMÔNIO E FAMÍLIA
na “Gaudium et Spes” e no hoje
Dedico esta meditação a uma reflexão espiritual
sobre a Gaudium et Spes, constituição pastoral sobre a Igreja no mundo. Dos
vários problemas da sociedade abordados neste texto conciliar – cultura,
economia, justiça social, paz –, o mais atual e problemático é o do matrimônio
e família. A ele a Igreja dedicou os dois últimos sínodos dos bispos. A maioria
de nós aqui presentes não vive diretamente esse estado de vida, mas todos temos
de conhecer os seus problemas para compreender e ajudar a grande maioria do povo
de Deus que vive no matrimônio, especialmente agora que ele está no centro de
ataques e ameaças de todas as partes.
A Gaudium et Spes trata a fundo da família no
início da segunda parte (núm. 46-53). Não há necessidade de citar as suas
declarações, que refletem a doutrina católica tradicional que todos nós
conhecemos, além do novo destaque dado ao amor mútuo entre os cônjuges,
abertamente reconhecido como um bem do matrimônio, também este primário, junto
com a procriação.
Sobre o matrimônio e a família, a Gaudium et Spes,
de acordo com o seu bem conhecido procedimento, destaca antes de tudo as
conquistas positivas do mundo moderno (“as alegrias e as esperanças”), e, em
segundo lugar, os problemas e os perigos (“as tristeza e as angústias”). Eu
proponho seguir o mesmo método, tendo em conta, no entanto, as mudanças
dramáticas que ocorreram neste campo ao longo do meio século transcorrido desde
então. Evocarei rapidamente o desígnio de Deus sobre matrimônio e família,
porque é sempre dele que nós, crentes, devemos partir, para em seguida ver o
que a revelação bíblica pode trazer para a solução dos problemas atuais.
Deliberadamente me abstenho de tocar alguns problemas particulares discutidos
no sínodo dos bispos, sobre os quais só o Papa tem agora o direito de ainda
dizer alguma palavra.
Matrimônio e
família no projeto divino e no Evangelho de Cristo
O livro do Gênesis tem dois relatos diferentes da
criação do primeiro casal humano, que remontam a duas tradições diferentes: a
javista (século X a.C.) e a mais recente (século VI a.C.), chamada de
“sacerdotal”. Na tradição sacerdotal (Gênesis 1, 26-28), o homem e a mulher são
criados simultaneamente, não um do outro; há uma relação entre ser homem e
mulher e ser à imagem de Deus: “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de
Deus o criou; homem e mulher os criou”. O fim primário da união entre o homem e
a mulher é visto no serem fecundos e encherem a terra.
Na tradição javista, que é a mais antigo (Gn 2,
18-25), a mulher vem do homem; a criação dos dois sexos é vista como um remédio
para a solidão (“Não é bom que o homem esteja só; vou lhe dar uma ajuda que lhe
seja semelhante”); mais que o fator da procriação, acentua-se o fator unitivo
(“o homem se unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne”); cada um é livre
diante da própria sexualidade e da sexualidade do outro: “ambos estavam nus, o
homem e sua mulher, mas não se envergonhavam”.
A explicação mais convincente do porquê desta
“invenção” divina da distinção dos sexos eu encontrei não num exegeta, mas em
um poeta, Paul Claudel:
“O homem é um ser orgulhoso; não havia outra
maneira de fazê-lo compreender o próximo senão fazê-lo vir da sua carne; não
havia outra maneira de fazê-lo entender a dependência e a necessidade se não
mediante a lei sobre ele deste ser diferente [a mulher], devida ao simples fato
de que esse ser existe”[1].
Abrir-se ao outro sexo é o primeiro passo para se
abrir ao outro que é o próximo, até o Outro com letra maiúscula que é Deus. O
matrimônio nasce sob o signo da humildade; é reconhecimento de dependência e,
portanto, da própria condição de criatura. Enamorar-se de uma mulher ou de um
homem é fazer o ato mais radical de humildade. É tornar-se mendicante e dizer
ao outro: “Eu não basto para mim mesmo; eu preciso do teu ser”. Se, como pensava
Schleiermacher, a essência da religião consiste no “sentimento de dependência”
(Abhaengigheitsgefühl) perante Deus, então podemos dizer que a sexualidade
humana é a primeira escola da religião.
Até aqui, o projeto de Deus. Não é explicável o
resto da própria Bíblia, no entanto, se, junto com o relato da criação, não se
leva em conta ainda o da queda, em especial o que é dito à mulher:
“Multiplicarei as tuas dores; na dor darás à luz os filhos. Ao teu marido se
voltará o teu instinto, mas ele te dominará” (Gn 3,16). O predomínio do homem
sobre a mulher faz parte do pecado do homem, não do projeto de Deus; com
aquelas palavras, Deus o prenuncia, não o aprova.
A Bíblia é um livro divino-humano não só porque tem
como autores Deus e o homem, mas também porque descreve, misturadas entre si, a
fidelidade de Deus e a infidelidade do homem. Isto é particularmente evidente
quando se compara o projeto de Deus sobre o matrimônio e a família com a sua
aplicação prática na história do povo escolhido. Para ficar no livro do
Gênesis, o filho de Caim, Lameque, já viola a lei da monogamia tomando duas
esposas. Noé, com a sua família, se mostra uma exceção em meio à corrupção
geral do seu tempo. Os mesmos patriarcas Abraão e Jacó têm filhos com mais de
uma mulher. Moisés autoriza a prática do divórcio; Davi e Salomão mantêm um
verdadeiro harém de mulheres.
Mais do que nas transgressões práticas específicas,
o afastamento do ideal inicial é visível na concepção de fundo que se tem do
matrimônio em Israel. O principal obscurecimento se refere a dois pilares. O
primeiro é que o matrimônio, de fim, se torna meio. O Antigo Testamento, como
um todo, considera o matrimônio como uma estrutura de autoridade patriarcal,
destinada principalmente à perpetuação do clã. Neste sentido, devem ser
entendidas as instituições do levirato (Dt 25, 5-10), do concubinato (Gn 16) e
da poligamia provisória. O ideal de uma comunhão de vida entre o homem e a
mulher, fundada em uma relação pessoal e recíproca, não é esquecido, mas passa
a segundo plano em relação ao bem da prole. O segundo grande obscurecimento se
refere à condição da mulher: de companheira do homem, dotada de igual
dignidade, ela aparece cada vez mais subordinada ao homem e em função do homem.
Um papel importante em manter vivo o projeto inicial
de Deus sobre o matrimônio é desempenhado pelos profetas, em especial Oseias,
Isaías, Jeremias e o Cântico dos Cânticos. Assumindo a união do homem e da
mulher como símbolo da aliança entre Deus e seu povo, eles recolocavam em
primeiro plano os valores do amor mútuo, da fidelidade e da indissolubilidade
que caracterizam a atitude de Deus para com Israel.