Quem toma em mãos a Sagrada Escritura para dela fazer o seu
livro de doutrina e espiritualidade, é geralmente movido por uma crença de
importância capital: a Bíblia é a Palavra de Deus, Livro inspirado pelo
Altíssimo; goza, pois, de autoridade única.
O conceito, porém, de inspiração bíblica não é claro a todos
os cristãos. Não poucos se admiram ao verificar que a Escritura se assemelha
muito a obras profanas, a documentos da literatura antiga; também não veem como
se possa conciliar o conceito de inspiração divina com o estudo das fontes
humanas de um trecho bíblico, com a crítica literária e paleográfica do texto,
com as hipóteses de acréscimos ou interpolações feitas a determinada passagem
etc. “Livro inspirado por Deus" parece-lhes ser obra absolutamente
emancipada das fases de preparação por que costuma passar todo produto
literário humano.
Ao estudo deste problema, que é capital em toda iniciação
bíblica, se dedicará o presente capítulo, abordando primeiramente o conceito de
inspiração em si Q 1. 0), depois as relações da Escritura com as conclusões das
ciências naturais (§ 2. 0) e da história profana Q 3.0).
Que se entende por
inspiração bíblica?
Na procura da resposta autêntica à pergunta, faz-se mister
remover logo duas opiniões errôneas:
a) inspiração bíblica de modo nenhum é revelação,
comunicação sobrenatural de verdades desconhecidas ao escritor. A inspiração
pode, sim, estar associada a este outro dom divino, ou seja, ao ensinamento de
verdades até o presente ignoradas pelo hagiógrafo.
Isto, porém, não ocorre necessariamente; verificou-se, por
exemplo, quando os profetas de Israel, séculos antes de Cristo, consignaram por
escrito pormenores da vida do Messias, tais como o seu nascimento em Belém de
Judá (Miq 5,1), sua paixão expiatória (Is 50,4-10; 52,13-53,12), sua crucifixão
na cruz (Zac 12,10). Tais episódios foram redigidos sob a influência de dois
dons sobrenaturais: o da inspiração bíblica, visto que deviam fazer parte da Escritura,
e o da revelação, pois certamente os autores sagrados não adquiriram essas
notícias por estudo ou por via meramente humana.
Quando, porém, os evangelistas, a seu turno, consignaram os
mesmos episódios (cf. Mt 2,6; 8,17; J0 19,37; At 8,32s), já o fizeram apenas
sob o influxo da inspiração bíblica, não por revelação divina, pois haviam
presenciado os fatos ou tinham sido informados por testemunhas abalizadas.
De resto, os autores bíblicos apelam frequentemente para a
sua experiência; atestam ter visto ou ouvido o que referem (cf. Jo 19,35; 21,
24; 1 J0 1, 1-3), ter investigado documentos, consultado testemunhas (cf. Lc
1,1-4; 2 Mac 2, 24-32; 11,16-38); citam também as fontes compulsadas (os anais
dos reis de Israel, por exemplo, em 1 Crôn 27,24; 29,29; 2 Crôn 9,29; 3 Rs
14,19.29; 15,7.23.31. ..).
Isto tudo quer dizer que, na Bíblia redigida sob a
inspiração divina, vamos encontrar noções que diríamos "humanas" (não
falsas, porém), ou seja, proposições verídicas, formuladas segundo os moldes
usuais entre os homens da antiguidade;