Importa agora abordar mais detidamente o problema particular
que acaba de ser insinuado, a saber: embora a Bíblia seja a inerrante Palavra
de Deus, entra por vezes em aparente conflito com as ciências da natureza. Como
será isto possível? Antes do mais, observe-se que a finalidade em vista da qual
Deus moveu os hagiógrafos a escrever, era estritamente religiosa: o Espírito
Santo, pelos autores bíblicos, quis ensinar aos homens unicamente verdades que
importem à salvação eterna, de modo nenhum temas que diríamos profanos ou
científicos. Contudo, já que o homem procura a salvação dentro do cenário da
natureza, a Sagrada Escritura também alude a conceitos de índole científica
(física, astronômica, biológica, etc.).
Estas noções profanas na Bíblia servem de mero veículo; não
são visadas em si, mas em função de proposições religiosas. Desta afirmação
decorrem importantes consequências: às proposições religiosas da Sagrada
Escritura cabe veracidade absoluta; quanto às referências de outra ordem, podem
exprimir veracidade relativa, popular, pré-científica, a qual se distingue da
veracidade científica, refletida técnica.
Ainda hoje na linguagem cotidiana se diz que "o sol
nasce e se põe"; fala-se da baleia como "peixe", do morcego como
"ave", etc. Estas expressões não deixam de ter fundamento objetivo,
pois se baseiam na aparência que os fenômenos realmente apresentam.
Mesmo quando o homem de ciências se refere ao
"nascer" e ao "pôr" do sol, todos sabem que não quer
ensinar astronomia, mas se adapta ao modo de falar dos contemporâneos, sem os
induzir em erro científico.
Ora o Espírito de Deus, ao inspirar os hagiógrafos, não
julgou necessário revelar-lhes a estrutura do universo e dos seres vivos;
permitiu, pois, que formulassem verdades religiosas mediante os conceitos de
ciência que estavam em voga no seu povo. Tais noções, embora imperfeitas aos
olhos do homem moderno, eram suficientes para designar o mundo visível e suas
relações com Deus, como se propunha o hagiógrafo; servir-se de outra linguagem
seria mesmo tornar a mensagem religiosa da Bíblia ininteligível aos seus
destinatários durante muitos séculos.
O leitor contemporâneo, portanto, não tomará as alusões da
Escritura como insinuação de teses físicas, cosmológicas, biológicas... Já que
o Livro de Deus nada quer ensinar neste setor, não há choque entre o mesmo e a
ciência humana quando se referem às criaturas materiais. Procedem, sim, de
pontos de vista diversos: o cientista considera os elementos em si mesmos,
refere-os às suas causas próximas e dá-se por satisfeito depois de ter tomado
conhecimento da estrutura de cada ente corpóreo; não o interessa ir além disto
(a menos que passe para os domínios da Filosofia e da Teologia).
A Bíblia, ao contrário, tudo contempla de um plano superior;
só a interessa, por assim dizer, a tangente que passa por cada ser visível e o
liga com Deus. Por isto é que a linguagem do cientista é precisa, enquanto a da
Bíblia, versando sobre os mesmos temas, pode ser assaz livre, impregnada
unicamente de Veracidade popular.
Aplicação muito clara desta distinção tem-se na narrativa da
criação em Gn 1,1-2,4a. A cosmologia pressuposta pelo autor sagrado é, aos
olhos da ciência moderna, insustentável (a luz seria anterior às estrelas;
haveria uma abóboda cristalina, o firmamento sobre a terra) todavia corresponde
ao que se ensinava entre os judeus antigos. 7
Ora bastava ao hagiógrafo esta veracidade relativa, pois ele
não queria descrever as fases pelas quais o mundo se originou, mas, sim,
inculcar que todos os seres designados mediante "tais" e
"tais" noções se relacionam com Deus como criaturas dependentes do
Criador, destinadas a refletir, com o homem, a perfeição do Altíssimo (no caso,
como se vê, pouco importavam as fórmulas cosmológicas ou biológicas, desde que
indicassem as diversas criaturas que cercam o homem).
Outro texto significativo é o de Lv 11,6, onde o hagiógrafo
apresenta a lebre como animal ruminante.
A classificação é, sem dúvida, deficiente; não carece,
porém, de veracidade popular (a lebre está continuamente a mover os maxilares e
os lábios); e tal veracidade era suficiente para que o Espirito Santo,
mencionando-a na Lei, despertasse no israelita uma atitude religiosa, ou seja,
fidelidade e amor a Deus. À luz destes princípios e exemplos, mostra-se
inconsistente a suspeita de desacordo entre a Sagrada Escritura genuinamente
entendida e os genuínos dados da ciência. 8
Dom Estêvão Bettencourt, OSB
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7 Ótimas são as observações
de J. Steinman,n, Les plus ancienfles traditions dit Pentateu que (Paris,
1954), 92: "Os dogmas (na narrativa bíblica da criação) são revestidos à
moda do Oriente e realçados por poesia maravilhosa. Como se poderiam, aliás,
conceber as coisas de outra forma? Dizer que Deus concebeu em sua mente as
nebulosas e criou a alma humana no fim de uma série de seres em evolução não
esclarece mais o mistério do que dizer que Deus plasmou o corpo do homem
servindo-se de barro e plantou num oásis árvores frutíferas. Terão sido
ingênuos (raïfs) os escritores javistas? Se o quisermos, sim! Como, de resto, o
foram Péguy e Claudel! Não falavam os antigos, com sentimentos de compaixão, da
barbárie dos escultores do estilo românico?"
8 É certo que nunca haverá
desacordo real entre o teólogo e o cientista, enquanto um e outro se mantiverem
dentro de seus limites e se esforçarem, como diz S. Agostinho, 'por nada
afirmar irrefletidamente e não fazer passar por verdade bem conhecida aquilo de
que não tenham conhecimento claro'." (Leão XIfl, Enc. Provi denttssimus;
cf. S. Agostinho, De Genesi ad Iitt. intperf. 9,30; ep. 82,1.)
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Para Entender o Antigo
Testamento
Livraria Agir Editora
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