quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Livro Inspirado por Deus (Capítulo 2 – Parte 1/2)


Quem toma em mãos a Sagrada Escritura para dela fazer o seu livro de doutrina e espiritualidade, é geralmente movido por uma crença de importância capital: a Bíblia é a Palavra de Deus, Livro inspirado pelo Altíssimo; goza, pois, de autoridade única.

O conceito, porém, de inspiração bíblica não é claro a todos os cristãos. Não poucos se admiram ao verificar que a Escritura se assemelha muito a obras profanas, a documentos da literatura antiga; também não veem como se possa conciliar o conceito de inspiração divina com o estudo das fontes humanas de um trecho bíblico, com a crítica literária e paleográfica do texto, com as hipóteses de acréscimos ou interpolações feitas a determinada passagem etc. “Livro inspirado por Deus" parece-lhes ser obra absolutamente emancipada das fases de preparação por que costuma passar todo produto literário humano.

Ao estudo deste problema, que é capital em toda iniciação bíblica, se dedicará o presente capítulo, abordando primeiramente o conceito de inspiração em si Q 1. 0), depois as relações da Escritura com as conclusões das ciências naturais (§ 2. 0) e da história profana Q 3.0).

Que se entende por inspiração bíblica?

Na procura da resposta autêntica à pergunta, faz-se mister remover logo duas opiniões errôneas:

a) inspiração bíblica de modo nenhum é revelação, comunicação sobrenatural de verdades desconhecidas ao escritor. A inspiração pode, sim, estar associada a este outro dom divino, ou seja, ao ensinamento de verdades até o presente ignoradas pelo hagiógrafo.

Isto, porém, não ocorre necessariamente; verificou-se, por exemplo, quando os profetas de Israel, séculos antes de Cristo, consignaram por escrito pormenores da vida do Messias, tais como o seu nascimento em Belém de Judá (Miq 5,1), sua paixão expiatória (Is 50,4-10; 52,13-53,12), sua crucifixão na cruz (Zac 12,10). Tais episódios foram redigidos sob a influência de dois dons sobrenaturais: o da inspiração bíblica, visto que deviam fazer parte da Escritura, e o da revelação, pois certamente os autores sagrados não adquiriram essas notícias por estudo ou por via meramente humana.

Quando, porém, os evangelistas, a seu turno, consignaram os mesmos episódios (cf. Mt 2,6; 8,17; J0 19,37; At 8,32s), já o fizeram apenas sob o influxo da inspiração bíblica, não por revelação divina, pois haviam presenciado os fatos ou tinham sido informados por testemunhas abalizadas.

De resto, os autores bíblicos apelam frequentemente para a sua experiência; atestam ter visto ou ouvido o que referem (cf. Jo 19,35; 21, 24; 1 J0 1, 1-3), ter investigado documentos, consultado testemunhas (cf. Lc 1,1-4; 2 Mac 2, 24-32; 11,16-38); citam também as fontes compulsadas (os anais dos reis de Israel, por exemplo, em 1 Crôn 27,24; 29,29; 2 Crôn 9,29; 3 Rs 14,19.29; 15,7.23.31. ..).

Isto tudo quer dizer que, na Bíblia redigida sob a inspiração divina, vamos encontrar noções que diríamos "humanas" (não falsas, porém), ou seja, proposições verídicas, formuladas segundo os moldes usuais entre os homens da antiguidade; 

b) se a inspiração bíblica não é necessariamente revelação, também não consiste em ditado meramente mecânico, tal como se dá entre o autor de uma carta e seu datilógrafo.

Esse ditado dispensaria toda a ciência pessoal do hagiógrafo, bem como o seu esforço de composição literária; o livro estaria, por assim dizer, emancipado de vestígios da personalidade do autor humano.

Em termos positivos, que é, pois, a inspiração bíblica? Supondo no homem um cabedal de cultura, Deus, pela inspiração, ilumina a inteligência do hagiógrafo, de sorte que este, com a lucidez do próprio Deus, perceba tais e tais verdades, previamente adquiridas, serem a expressão autêntica da mensagem que o Senhor quer transmitir aos leitores.

Essa iluminação faz que noções ineptas a comunicar as verdades intencionadas por Deus apareçam à mente do hagiógrafo como inadequadas, enquanto as proposições aptas a este fim lhe são apresentadas como tais.

Em outros termos: a inspiração faz que, com a clarividência de Deus, o hagiógrafo examine a veracidade das noções que ele tem na mente, as escolha e formule de modo a se tornarem a expressão fiel dos pensamentos do Altíssimo.

Como se vê, este processo não implica comunicação de novos conhecimentos, mas de maior certeza (da certeza do próprio Deus) na posse das verdades já adquiridas.

Além de iluminação da inteligência, a inspiração importa moção da vontade e das potências executivas do hagiógrafo, a fim de que este resolva escrever & de fato, sem o mínimo erro, escreva aquilo que percebeu em sua mente ilustrada.

O que acaba de ser dito, ainda se pode explicitar do seguinte modo: a inspiração bíblica, longe de extinguir a atividade do hagiógrafo (ou o trabalho de um escritor), ao contrário a suscita; suscitando-a, porém, eleva-a a plano superior, a fim de que produza efeito não simplesmente humano, mas humano e divino. Sim; pelo influxo do carisma, 1  Deus penetra todas as faculdades do escritor (inteligência, vontade, potências executivas) e percorre simultaneamente com este as etapas necessárias para a redação de um livro, de modo que a obra daí resultante não apenas contém a Palavra de Deus, mas é a Palavra de Deus, que tomou a face, a veste, de palavra do homem.

Em consequência, a inspiração tem sua semelhança com o mistério da Encarnação, mistério pelo qual o Filho de Deus apareceu na terra revestido da natureza humana, sem mutilar a esta, antes servindo-se de tudo que lhe pertence e equiparando-se integralmente (exceto no pecado; cf. Hebr 4,15) aos demais homens.

O conceito de inspiração é bem ilustrado pela analogia do homem que, com um pedaço de giz, escreve sobre o quadro-negro. O efeito produzido na pedra se deve atribuir tanto ao escritor como ao seu instrumento; um sem o outro não o produziria. E nesse efeito encontram-se inevitavelmente os vestígios de um e outro agente: ao homem se devem atribuir os pensamentos expressos, ao passo que ao giz se deve reduzir a forma visível dos mesmos na pedra (côr, grossura, certa graciosidade, etc.); um só pensamento pode mesmo tomar configurações bem diversas conforme os diversos tipos de giz usados.

Analogamente se relacionam Deus e o hagiógrafo na composição dos livros sagrados: as ideias ensinadas pela obra provêm primariamente de Deus, Autor principal; todavia a forma literária, a veste, que serve para exprimir tais ideias, é condicionada pelo hagiógrafo; o que quer dizer: fica subordinada à educação e às categorias culturais de um escritor humano; mais precisamente: de um judeu que viveu no Oriente há mais de três ou há quase dois milênios atrás, ignorando muita coisa das ciências e das artes que hoje se conhecem, possuindo, não obstante, cultura própria, não desprezível. E note-se que cada hagiógrafo deu os seus pressupostos pessoais, um cabedal, rico ou pobre, de valores humanos, para exprimir a verdade divina. 2 

Do fato de que a Escritura é inspirada por Deus (nos termos acima expostos) segue-se a sua inerrância ou isenção de erro doutrinário; este, caso nela existisse, deveria ser imputado ao próprio Deus!

Jamais, porém, se poderia esquecer neste assunto uma cláusula de grande alcance: já que a inerrante Palavra de Deus toma na Bíblia uma veste humana, não é senão mediante a interpretação desta que aquela pode ser atingida.

O que quer dizer, em termos mais claros: as afirmações da Sagrada Escritura só gozam da absoluta veracidade da Palavra de Deus quando entendidas no sentido mesmo que o hagiógrafo, seu porta-voz humano, lhes queria atribuir; não, pois, quando interpretadas no sentido que um leitor moderno, em leitura superficial, lhes possa dar.

Esta cláusula, de resto, se prende a uma regra geral de hermenêutica, a saber: o autêntico significado de uma obra literária só se patenteia a quem procure reconstituir a mentalidade do respectivo autor e as circunstâncias em que escrevia. Embora não raro as palavras de determinado texto sejam suscetíveis de mais de uma interpretação, ninguém ousará atribuir indiferentemente ao autor qualquer das teses conciliáveis com o conteúdo "bruto" de seus vocábulos.

Daqui se deduz a imperiosa necessidade de discernir o que se chama o "gênero literário" de cada livro da Sagrada Escritura.

E que será propriamente o "gênero literário"? Esta expressão •designa o conjunto das regras de estilo e o vocabulário que os homens de determinada época ou região costumavam observar quando queriam escrever sobre certo tema; não há dúvida, outras são as normas de redação de um texto de leis, outras as de uma seção de crônicas, outras as da poesia, outras as da história "edificante" ou "moralizante", outras as da profecia, etc., de tal modo que nenhum leitor interpretaria uma peça jurídica, à qual prima pela precisão de suas palavras e a concisão de suas sentenças, como interpreta uma seção poética, em que os artifícios e as metáforas são de praxe. 3 

Ora na Bíblia há livros de leis (o Levítico), poesia (o Cântico dos Cânticos, os Salmos), história estritamente dita (os livros dos Reis, o primeiro dos Macabeus), história edificante ou ornamentada com fim catequético (Tobias, Judite e Ester), profecias (Isaías, Jeremias, Ezequiel), diálogos (Jó) ... Sem saber qual o gênero literário com que se defronta, nenhum leitor se pode julgar autorizado intérprete de tal ou tal seção bíblica. 4

O fato de que a inerrante Palavra de Deus está associada aos gêneros literários dos antigos semitas ainda é fecundo para explicar um fenômeno aparentemente estranho: hoje os autores católicos já não atribuem à Escritura proposições que antigos e medievais afirmavam em nome da mesma. 5 

Isto poderia fazer crer que a Igreja mudou os seus dogmas e praticamente nega a inerrância da Palavra de Deus. Tal conclusão seria precipitada. Deus e as Escrituras não alteram a sua doutrina; todavia, já que esta só pode ser percebida mediante a consideração da sua face humana ou dos gêneros literários, está claro que, na proporção em que melhor se vão conhecendo os processos de redação dos povos antigos, se vai manifestando deficiente a interpretação que a certos trechos se dava, quando não se possuíam tão esmerados instrumentos de trabalho.

Distinga-se, por conseguinte, entre doutrina divina inerrante, contida na Escritura, e interpretação falível que os homens podem dar a este texto.

As recentes escavações no Oriente, tendo projetado luz valiosa sobre as páginas bíblicas levam-nos a dizer que a genuína mensagem das Escrituras, em pontos de importância secundária, não era sempre plenamente percebida pelos intérpretes antigos. Em nossos dias, pois, o que se dá na Igreja não é mudança de dogma, mudança da Palavra de Deus (o Magistério eclesiástico nunca declarou verdades de fé as proposições dos exegetas hoje revogadas); o que se verifica é, antes, o aperfeiçoamento dos métodos exegéticos e consequentemente a reforma da interpretação de um texto cuja mensagem em si mesma é una e constante.

O labor do homem é indispensável para se entender a Bíblia, e este labor pode, sim, necessitar de remodelação à medida que se descobrem novos instrumentos de pesquisa.

Em suma, dir-se-á: todas as vezes que uma antiga sentença exegética seja comprovada falsa à luz das ciências modernas, reconheça-se que o erro estava contido não na Sagrada Escritura, mas na interpretação que os homens davam a esta.

Haja vista o caso de Galileu Galilei, cientista que por volta de 1615 começou a ensinar a tese do movimento da terra em torno do sol. Muitos de seus contemporâneos julgavam que contradizia à inerrante palavra da Sagrada Escritura; esta, com efeito, lhes parecia Inculcar o geocentrismo, tanto por causa do propalado milagre de Josué (Jos 10,7-15) como pel0 fato de que a Encarnação teve lugar na terra, a qual deveria ser, por conseguinte, o centro do universo.

Na realidade, a Sagrada Escritura não ensina tais conclusões de ordem meramente científica; era, porém, erroneamente interpretada em tal sentido. Por isto é que, depois de momentaneamente condenado pelo Santo Ofício (tribunal eclesiástico que não goza da infalibilidade própria do magistério universal da Igreja), Galileo foi reabilitado e suas ideias aceitas por exegetas e teólogos; comprovara-se que errônea era determinada interpretação dada à Sagrada Escritura, não a Escritura mesma.

Dom Estêvão Bettencourt, OSB

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1 "Carisma", dom (de Deus) outorgado em favor da comunidade dos fiéis, designa aqui a inspiração.

2 Com efeito, na Escritura depreendem-se os vestígios característicos de um homem de cultura esmerada e trato nobre, como Isaías, um dos ilustres cidadãos de Jerusalém no séc. VIU a.C.; as impressões de um homem dos campos, simples pastor, como Amós; as de um temperamento muito sensível e vibrante, como o de Jeremias; os cálculos harmoniosos e simétricos de um cobrador de impostos, afeito aos números, como S. Mateus; a vivacidade de um Jovem fogoso, pouco preocupado com o estilo, como S. Marcos; a terminologia e a finura de espírito de um médico de formação helenista, como S. Lucas.

3 Verificando isto, Platão dizia: "Mentiroso como um poeta." (Citação transcrita de Gourbillon, Comment tire la Bible, Paris, 23.)

4 Esta verificação dá claramente a entender que o cultivo de certas disciplinas profanas, como a filologia, a arqueologia, a história do antigo Oriente, a arte crítica dos textos, etc., não constitui, para a exegese católica, modalidade contingente, mas vem a ser tarefa a que as nossas escolas não se podem furtar, como o recomendavam ainda recentemente os Sumos Pontífices. Após Leão XXII (Enc. Providentissimus) escrevia S. Santidade Pio XII em 1943: "Bem preparado com o conhecimento das línguas antigas e com os recursos da crítica, aplique-se o exegeta católico àquele que é o principal de todos os seus deveres: indagar e expor o sentido genuíno dos Livros sagrados. Neste trabalho tenham os intérpretes bem presente que o seu maior cuidado deve ser distinguir claramente e precisar qual seja o sentido literal das palavras bíblicas. Procurem-no, pois, com toda a diligência, valendo-se da ciência das línguas, do exame do contexto, da comparação com passos semelhantes; coisas todas de que se costuma tirar partido na interpretação dos escritores profanos, para tirar a limpo o pensamento do autor o intérprete deve, com o auxílio da história, arqueologia, etnologia e de outras ciências, examinar e distinguir claramente que gêneros literários quiseram empregar os escritores daquelas épocas remotas." (Enc. Divino ali jante Spiritu, Acta Apostolicae Sedis 35 [1943] 310. 315.)

5 É o que se verifica principalmente na história das origens do mundo e do homem.

6 Sua Santidade o Papa Pio XII manifestava em nossos dias a esperança deque os tempos futuros nos forneçam ainda novos meios de estudo e, por conseguinte, o conhecimento mais exato de passagens da Escritura que nos ficam obscuras: "Não é para admirar se não se venceram nem resolveram ainda todas as dificuldades, mas há ainda hoje graves questões que não pouco agitam os espíritos dos católicos. Não é caso para desanimar; basta refletir que nos estudos humanos sucede como nas coisas naturais; crescem pouco a pouco e não se colhe fruto senão depois de muito trabalho. Assim precisamente sucedeu que a muitas questões controversas, não resolvidas e indecisas nos tempos passados, só nos nossos dias com o progresso dos estudos se encontrou felizmente solução. Pode-se, pois, esperar que também as que hoje nos parecem sumamente complicadas e dificílimas, com uma constante aplicação virão a ser um dia plenamente dilucidadas." (Ibid., 318.)
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Para Entender o Antigo Testamento

Livraria Agir Editora

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