Antes de qualquer
coisa, encararemos os fatos: a constituição brasileira é longa,
prolixa e chata pra caramba. Como material de leitura, é pior até que poesia
vogon. No total, 348 artigos pululam em seu texto – 250 na parte principal e 98
em um anexo chamado “Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, que
trata de temas tão disparatados entre si quanto seringueiros (art. 54),
defensores públicos (art. 98) e o estado do Tocantins (art. 13). Esses 348
artigos (e seus parágrafos, incisos e alíneas, cuja contabilização por um ser
humano comum é impossível) abordam muita coisa mesmo: só o índice tem 56 páginas, em
fonte tamanho 10.
Não surpreende,
então, que a maior parte dos brasileiros não faça a mínima ideia do que está
contido ali dentro. Um rápido exercício pode confirmar isso: peço ao leitor que
recite, de cor, um artigo qualquer dentre esses 348. Um só. Não conseguiu, né?
Nem se preocupe: se 0,1% dos brasileiros tiver essa habilidade já é muito. No
máximo, estudantes e profissionais da área jurídica conhecem algumas
referências pontuais, e só. Por exemplo: sabem que os direitos fundamentais
estão lá no artigo 5º, mas não se recordam exatamente qual tema está em cada um
dos seus 78 incisos (se você é um aluno exemplar de direito e duvida disso,
diga-me sem colar: em qual deles está definido o direito ao habeas
corpus?).
Não bastasse o
desconhecimento sobre o texto, a constituição atrapalha a vida dos brasileiros
em praticamente tudo. É nela que se encontram as bases da máquina estatal
gigante a que estamos submetidos, de um sistema tributário absolutamente irracional (arts. 145 a
162), de privilégios a funcionários públicos (arts. 39 a 41, e outras
disposições específicas ao longo do texto) ou a determinados empresários (art.
175), de um direito de propriedade praticamente inexistente (art. 5º, XXIII e arts. 182 a 191), de
monopólios públicos (arts. 21, XXIII e 177) e tantos outros. Não é, nem de
longe, a melhor constituição do mundo.
No meio de inúmeros
deméritos, no entanto, ela tem ao menos um mérito: o de fornecer algumas
garantias (ex: separação de poderes, eleições diretas, voto secreto, direitos
fundamentais) que impedem que a coisa descambe de vez para um regime
excessivamente autoritário ou até mesmo ditatorial. Essas questões inclusive
fazem parte daquilo que se chama de “cláusulas
pétreas” (art. 60, §4º), o que significa
que é impossível retirá-las da constituição atual.
Isto é: graças a
essa constituição que está aí, você tem certeza de que o poder no Brasil é
exercido por instituições determinadas, sujeitas a regras fixas que podem ser
conhecidas por todos. Ok, o estado atrapalha sua vida, e muito – mas pelo menos
você pode saber quem são as pessoas por trás dele e qual o seu mecanismo de
funcionamento.
Esse ponto é
importantíssimo. Se você não gosta de intervenções exageradas do estado na vida
alheia, deve estar ciente de que essas garantias constitucionais são o pouco
que ainda temos diante delas. Por esse motivo, qualquer mudança nelas (isto é,
qualquer alteração no sistema político do país) deve ser feita com a maior
cautela possível. É óbvio que há muito que pode (e deve) ser melhorado no
sistema atual. Mas, do outro lado da questão, ainda há bastante espaço para que
a coisa degringole ainda mais. E é por esse motivo que, se alguém anuncia que
tem a intenção de iniciar um procedimento que pode mudar todas as
regras do jogo político de uma só vez, tal atitude deve no mínimo ser refletida
com extrema prudência.
Uma ponderação
desse tipo envolve dois lados. Em primeiro lugar, é preciso considerar os motivos
subjacentes
à tentativa de reforma – isto é, compreender por
que raios estão tentando mudar a constituição, e se as razões
para isso são legítimas ou não. Em segundo lugar, devem ser avaliadas as consequências do
ato – ou seja, responder às perguntas: a mudança
que se propõe será boa ou ruim? Por quê?
São essas as
premissas que devem nortear a análise do tal “plebiscito constituinte”, uma
iniciativa que declaradamente pretende ser o primeiro passo para a implantação
de uma “reforma política” no Brasil. Uma investigação sobre esse tema poderia
abordar os motivos que alegadamente justificam o plebiscito e a reforma, suas
eventuais consequências ou os dois. Pretendo, aqui, me focar no primeiro desses
pontos. Abordar o segundo exigiria analisar minuciosamente cada um dos itens
propostos na reforma política (fim do financiamento privado de campanhas, voto
em lista etc.), o que demandaria um espaço muito maior, talvez até mesmo um
texto específico para cada questão. Mas não se preocupe: muita coisa ainda será
escrita sobre o tema. O trabalho está apenas começando.