Afinal, por que uma Constituinte?
Na primeira parte deste texto, expus algumas noções fundamentais sobre o “plebiscito
constituinte” que começou recentemente a pipocar pela internet: quem o está
organizando, o que ele pretende convocar e qual a dimensão do poder que uma
“assembleia constituinte” efetivamente possuirá caso venha a ser realizada.
Agora,
passo a um ponto ainda mais importante: a investigação dos motivos pelos quais
se pretende convocar um plebiscito e uma constituinte. Ainda que seja verdade o
fato de que o sistema atual tenha seus problemas e precise de reformas (embora
as reformas necessárias não coincidam com as propostas pela esquerda, que isso
fique claro), por que é que PT, CUT e “movimentos sociais” querem fazê-las por
meio de um novo poder constituinte, e não simplesmente emendando a constituição atual?
A
resposta é complexa. Não é minha intenção aqui esgotar o tema, mas apenas expor
algumas premissas iniciais que, em minha opinião, não podem ser ignoradas nesse
debate. Em um texto anterior,
cuja leitura ajuda a entender alguns dos pontos que pretendo levantar, procurei
fazer uma analogia entre uma medida recém-adotada pelo governo petista (o
Decreto 8.243) com a
experiência histórica anterior do socialismo e as lições deixadas por seus
teóricos. No caso do plebiscito constituinte, uma comparação similar pode ser
feita.
A defesa "light" da constituinte
Luís Roberto Barroso, Ministro do STF indicado pelo PT |
O
assunto deste texto são as motivações ideológicas que norteiam os promotores do
plebiscito. Antes de falar propriamente sobre elas, no entanto, é preciso
apontar que nem todos os defensores da ideia são socialistas, revolucionários
ou coisa que o valha. Quem defende o plebiscito não necessariamente usa camiseta
do Che Guevara. Há gente que, por uma razão ou outra, defende a ideia de uma
forma mais sutil, não recorrendo a noções relacionadas à ruptura institucional.
Vamos a dois exemplos.
A ideia
de uma constituinte exclusiva para a reforma política não é nova. Ao longo do
tempo, vários juristas se posicionaram contra ela, entre os quais o atual
ministro do STF, Luís Roberto Barroso, em entrevista concedida a um site
jurídico em 2011. Naquela ocasião, Barroso defendeu exatamente o mesmo
entendimento exposto na parte 1 deste artigo: “a teoria constitucional não conseguiria explicar uma constituinte
parcial. A ideia de poder constituinte é de um poder soberano, um poder que não
deve o seu fundamento de legitimidade a nenhum poder que não a si próprio e à
soberania popular que o impulsionou. De modo que ninguém pode convocar um poder
constituinte e estabelecer previamente qual é a agenda desse poder
constituinte. O poder constituinte não tem agenda pré-fixada”.
No
entanto, o mesmo Barroso milagrosamente negaria seu próprio entendimento dois
anos depois, logo após ser indicado para o STF. Que coincidência, não? Na ocasião (logo após os protestos de jun/13,
quando a história da “constituinte” ganhou força) ele chegou a afirmar que
sempre fora “a favor de uma Constituinte
específica, que possa tratar de temas específicos como, por exemplo, uma
reforma política”. Coerência zero.
Outro
jurista esquizofrênico no que concerne o tema é o atual presidente da
República (e professor de direito constitucional) Michel Temer. No caso dele é ainda pior: a incoerência
está dentro de um mesmo texto, publicado em 2007. Nele, Temer inicialmente se
diz contra uma constituinte exclusiva para a reforma política, por questões
técnicas e também porque sua instalação significaria “a desmoralização absoluta da atual representação” e “a
prova da incapacidade de realizarmos a atualização do sistema
político-partidário e eleitoral”. Até aí tudo bem. O problema é o trecho em que
ele menciona que seria possível “uma autorização popular, plebiscitária, para permitir a revisão do
pacto federativo e de outras matérias que são imodificáveis no texto constitucional. E desde que não se pense em modificar os direitos e
as garantias individuais e os direitos sociais”. Ora, decida-se: dá
para fazer constituinte ou não?
Posições
como as de Barroso e Temer acabam por se revelar completamente incoerentes – na
busca por uma solução conciliatória incorre-se em uma contradição intrínseca,
defendendo-se ao mesmo tempo o poder atualmente vigente e o que seria instituído
pela assembleia. Sr. Spock diria que isso é ilógico. Das duas, uma: ou não se
convoca uma constituinte e se mantém o estado atual, ou se convoca e se dá um
chute na ordem vigente. Se não existe meio estado, também não existe meia
constituinte.
Por isso,
a análise das razões ideológicas do plebiscito deve ir mais a fundo do que o
exposto nesse tipo de opinião. Deve-se entender a motivação por trás de quem
propõe a ideia “completa”: ou seja, daqueles que sabem, assumem e defendem que
a constituinte será um reboot no estado brasileiro. É o caso, por exemplo, dos
autores que assinam o “livro jurídico” destinado a justificar o plebiscito.
Teórico do pensamento comunista, Karl Marx |
Creio
que não haverá discordâncias se essa análise for iniciada por Karl Marx – na
verdade, estranho seria se alguém não associasse uma iniciativa apoiada por
inúmeros “sindicatos”, “movimentos sociais”, “frentes de luta” e partidos de
esquerda com o pensamento do filósofo alemão. Como se não bastasse, vários
textos que defendem o plebiscito se baseiam nas teorias do barbudo. Nada mais
natural do que falar sobre ele, então.
Para
Marx e seu amigo Engels, o estado (ou melhor, a forma como o estado estava constituído
a seu tempo) nada mais era do que um instrumento ideológico a serviço da
“burguesia” – como afirmado no Manifesto Comunista, “o governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios
comuns de toda a classe burguesa” (p. 10). A solução para esse
problema seria a derrota da burguesia e a tomada dos meios de produção pelo
proletariado, seguida pela substituição da organização estatal outrora vigente
pelo “proletariado organizado em classe dominante”. Como esse processo seria
realizado? Marx e Engels não dão muitos detalhes no Manifesto, até porque o
livro foi escrito em 1848 e, na época, não havia lá muitas experiências
históricas de “revoluções proletárias” nas quais eles pudessem se basear.
Marx
voltaria a se debruçar sobre a questão mais de vinte anos depois, ao analisar
as razões pelas quais a Comuna de Paris havia falhado. Para refrescar a memória
das aulas de História: a Comuna foi a primeira vez na história em que um
governo socialista foi de fato implantado, o que ocorreu na capital francesa
após o fim da Guerra Franco-Prussiana, em 1871. O descontentamento popular
gerou uma insurreição que derrubou o governo republicano e instituiu o governo
comunal, que duraria menos de dois meses.
Por
motivos óbvios, Marx se interessou bastante pelo assunto e escreveu vários
textos a respeito. Um deles interessa particularmente aqui. Trata-se de uma carta a
seu amigo Ludwig Kugelmann, enviada em abril de 1871, ainda durante a
existência da Comuna. Nessa carta, Marx afirmou que os communards não
deveriam “passar para outras mãos a
máquina burocrática e militar, como se tem feito até aqui, mas destruí-la”
– o original fala em zerbrechen, verbo alemão que significa algo como
“quebrar em pedaços”. Para uma análise mais completa a respeito da ideia do
estado em Marx, sugiro a parte final deste texto.
Quase
cinquenta anos depois, essa passagem influenciaria o pensamento de Lênin – que,
em sua obra “O Estado e a Revolução”, afirmou que “essas palavras … condensam a
grande lição do marxismo a propósito do papel do proletariado revolucionário
com relação ao Estado”. A análise que Lênin desenvolve indica que “todas as revoluções anteriores
aperfeiçoaram a máquina do Estado, mas é preciso demoli-la, quebrá-la”
– ou seja, substituir o estado que existia até então por outro, inteiramente
novo.
Imagino
que o leitor mais atento já tenha adivinhado onde quero chegar. Mas
prossigamos.
As
ideias de Marx e Lênin são fundamentais para se entender o porquê de
determinadas entidades preferirem reescrever a constituição brasileira do zero a reformá-la “por dentro”. Mas há uma
segunda noção que deve ser entendida sobre o assunto, igualmente importante.
Ela vem do trabalho de Ferdinand Lassalle, um teórico socialista do século XIX,
e é estudada até hoje nas faculdades de direito.
Na
teoria de Lassalle, exposta neste texto de 1862, a verdadeira constituição de
um país não seria aquilo que está escrito em um conjunto de normas jurídicas
com esse nome, e sim o que ele chama de “fatores reais do poder” – as relações
concretas que existem entre soberano, burguesia, povo etc. De acordo com
Lassalle, uma constituição escrita
que não reflita tais “fatores de poder” será apenas uma “folha de papel” – isto
é, algo que não vale porcaria nenhuma.
Explico
melhor. Para Lassalle, não adianta nada uma constituição dizer
que “os órgãos responsáveis pelo poder são x, y e z”: se essas relações não
existirem previamente na sociedade, “nem Deus nem a força” salvam essa constituição.
O real precede o escrito. Nas palavras do próprio autor, “de nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se
justifica pelos fatos reais e efetivos do poder”. Uma consequência
dessas premissas é a de que, se uma constituição não
está de acordo com “os fatores reais e efetivos do poder” que imperam em
uma sociedade, ela deve ser reformada – “virada da direita para e esquerda”, como diz o autor.
Essas
ideias já foram aplicadas na prática. Na história constitucional soviética,
elas se transformaram naquilo que se chamou de “constituição-balanço”. Uma
“constituição-balanço” é um documento que descreve e registra a organização
política estabelecida em um determinado momento, a qual muda conforme o
processo revolucionário avança. Esse tipo de constituição funciona
como uma “fotografia” das relações de poder que existem em um país em um
determinado estágio da marcha para o socialismo. Quando essa marcha alcança um
novo patamar, uma nova constituição é
promulgada – e assim sucessivamente.
A história da União Soviética registrou três
“constituições-balanço”, após um primeiro texto constitucional elaborado em 1918. A primeira delas (1924) foi uma simples consolidação
de declarações e tratados anteriores, entre os quais o que criou a URSS em
1922. A segunda (1936), por sua vez, aboliu o sistema de
voto limitado e em escalões sucessivos herdado dos sovietes de 1917,
instituindo o sufrágio universal – a premissa que norteou a mudança foi a de
que à época a revolução já estaria consolidada e não haveria mais uma
“burguesia exploradora”. Já a terceira (1977) procurou aprofundar a “democracia
socialista” que se julgava existir na época – seu preâmbulo afirma que “como as metas da ditadura do proletariado foram cumpridas, o
estado soviético se transformou em um estado do povo. O papel de liderança do
Partido Comunista, a vanguarda de todo o povo, cresceu” (o uso de
verbos no pretérito revela exatamente o que expliquei acima: no
constitucionalismo socialista, considera-se que a relação real de poder é
anterior ao texto da constituição).
Seguindo
uma lógica similar, outros países socialistas também tiveram o hábito de
reformar continuamente suas constituições. A Iugoslávia, por exemplo, passou
por três reformas (1953, 1963 e 1974). Após a assunção do chairman Mao, a
China viu quatro constituições (1954, 1975, 1978 e 1982) – a última, em vigor
até hoje, passou por processos de revisão em 1988, 1993, 1999 e 2004. Na
América Latina, a Venezuela adotou uma nova constituição em 1999 e a Bolívia em
2009. Cuba reformou a constituição de 1976 duas vezes (1992 e 2002). Foram
apenas emendas ao texto original, mas com significação profunda – a última
chegou a lançar um double dare no artigo 3º, dizendo que o
socialismo no país “es irrevocable y Cuba no volverá jamás al capitalismo”.
Com a
teoria e essas experiências históricas, dá para entender qual é a visão que um socialista
tem a respeito da constituição.
Na visão socialista, a constituição está
para o processo de tomada do poder assim como os níveis estão para um jogo de
videogame: basicamente, ela sinaliza que um conjunto x de objetivos já foi
superado e que ainda restam os objetivos y, z e w até o resultado final. Foi o
que ocorreu, por exemplo, no processo constitucional soviético: enquanto a
constituição de 1936 foi editada após os revolucionários julgarem ter “acabado
com a burguesia exploradora”, a de 1977 demonstrou que se considerava ter sido
consolidada uma “democracia socialista”.
E o que
exatamente está fazendo o PT e os “movimentos sociais” acreditarem que passaram
de nível no jogo político brasileiro, a ponto de justificar uma nova
constituição? A resposta não é simples, nem de longe. Mas tentarei esboçá-la no
próximo item.
Achievement unlocked: faça o povo se cansar das instituições
A ideia
de um “plebiscito constituinte” no Brasil, na verdade, já vem de longe – um
exemplo disso é o artigo de Michel Temer a que me referi acima, elaborado em
2007. Mas a coisa realmente começou a ser divulgada no ano passado, após o
quebra-pau nacional dos protestos de junho. Lembram-se do discurso de Dilma na
TV propondo um “pacto” pela reforma política? Pois então. Logo após, no dia 24
de junho de 2013, a ideia foi detalhada em um pronunciamento no Palácio do
Planalto: com sua habilidade retórica habitual, a presidente anunciou que pretendia “propor o debate sobre a convocação de um plebiscito popular que
autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a
reforma política que o país tanto necessita”. Tal debate não avançou no Congresso, apesar da insistência do Executivo e, particularmente, de
Dilma (1, 2).
Nesse
contexto, é fácil entender que o “plebiscito popular” nada mais é do que um
subterfúgio, uma maneira de se realizar extraoficialmente aquilo que não se
conseguiu pelas vias legais.
E por
que o PT insiste na realização do plebiscito neste momento? A resposta pode ser
encontrada na “resolução sobre a situação política” do Brasil
divulgada após a primeira reunião do Diretório Nacional do partido após os
protestos – note-se bem, o documento foi elaborado pelo próprio PT. Nessa
“resolução”, o repúdio aos espaços tradicionais de manifestação política é
evidente: diz-se que os protestos surgiram “à margem das instituições tradicionais de representação e
organização”, “deixaram perplexidade no mundo político institucional”
e “manifestavam um sentimento de
não-representação pelos partidos e governos”. A ideia de um
plebiscito é lançada três vezes ao longo do texto.
O “texto de contribuição ao debate” utilizado no V
Congresso do PT (dez/2013) aprofunda a ideia, citando como meta do partido “resolver as dificuldades
institucionais e burocráticas que se antepõe[sic] à ação governamental”
(item 17), chamando as instituições vigentes de “arcaicas” (item 18), apontando que “é importante igualmente avançar
na reforma político-institucional do país para dar continuidade e mais
velocidade à transição econômica e política em curso no país” (item
32, e sim, você leu bem: “transição econômica”), e assim por diante – recomendo
enfaticamente a leitura do documento inteiro. Seu ponto alto é o item 78, que
merece ser transcrito na íntegra: “a agenda é vasta e complexa e envolve a discussão de formas de
propriedade e de organização da economia, inclusive a democratização do espaço
fabril e de todos os locais de trabalho. Envolve, também, a democratização e
socialização da política, mudanças radicais na esfera da cultura e no
cotidiano, sob a égide da mais ampla liberdade e do respeito dos Direitos
Humanos”.
Um
primeiro passo disso que está se chamando de “democratização e socialização da política” foi o
Decreto 8.243, cujo
mecanismo de funcionamento foi explicado neste artigo. A intenção por trás do “plebiscito
constituinte” é similar, como pode ser facilmente percebido da leitura dos
textos acima.
Há, no
entanto, algo importante que deve ser notado. Como expliquei no item anterior,
a visão socialista de uma “constituição” envolve o equilíbrio entre “fatores
reais de poder” e a realidade – uma constituição não
criaria poderes novos, e sim consolidaria no papel o que já existe na prática.
PT, CUT e “movimentos sociais”, portanto, não julgam estar querendo
“revolucionar a política” – em sua visão de mundo, o Decreto 8.243 e a nova constituição são
apenas um retrato posterior de coisas que já existem de fato. Uma prova teórica disso
são os textos de petistas ou de jornalistas chapa-branca sobre o decreto
bolivariano: a grande maioria menciona “consolidar” ou “aprofundar” a
“participação popular” na política – e não se “consolida” nem “aprofunda” algo
que não se julgue existir previamente. Uma prova prática: movimentos sociais e similares já participam
da delimitação de políticas públicas em administrações conduzidas pela esquerda
brasileira (um exemplo aqui).
Para
resumir: aqueles que querem o “plebiscito constituinte” julgam ter mudado
suficientemente o Brasil, cansando o cidadão das instituições políticas já
existentes e criando uma demanda por novas. Nessa visão, uma etapa do “processo
revolucionário” já estaria queimada, e agora seria a hora de “passar de nível”
e iniciar a etapa seguinte. No que essa etapa consiste? Excelente pergunta, mas
que já extrapola o objeto deste texto. Fica para uma próxima.
Uma
observação fundamental não poderia passar batida antes da conclusão. O PT, na
verdade, não gosta de consultas populares – aliás, tem motivos para odiá-las
profundamente. Na única que fizeram, em 2005,
perderam feio. Aliás, parecem não ter aceitado o resultado escolhido pela
maioria (64%) da população: nove anos depois, campanhas do desarmamento vivem
aparecendo por aí e somos enxurrados periodicamente por propaganda
governamental dizendo “entregue sua arma”. E já se cogitou um segundo plebiscito para que a escolha do
primeiro fosse revogada. Definitivamente essa não é a conduta de alguém que de
fato se importe com o resultado de uma votação popular.
É
importante notar que um plebiscito ou referendo “verdadeiro”, como foi o das
armas, não tem resultado pré-determinado. Duas ou mais opções são lançadas um
debate paritário e vence aquela que for considerada a melhor – e isso é tudo o
que a esquerda não quer. Basta ver como funciona qualquer reunião de grupelhos
revolucionários, do soviete de Petrogrado em 1917 a uma assembleia de DCE
universitário hoje em dia. Decisões são tomadas por grupos pequenos e levadas
ao conhecimento popular em um segundo momento – e, nesse processo, a única
função da massa é aplaudir. O modus operandi da esquerda é sempre o mesmo:
“vontade popular” significa “aclamação de uma decisão anterior”.
Dito isso,
vamos aos fatos. O “plebiscito popular” será realizado quer você queira, quer
não, e possivelmente você será convidado a votar nesse estrupício em algum
momento. Nesse caso, você se verá em um dilema: se não votar, estará ajudando o
resultado a ser uma esmagadora maioria para a opção pró-constituinte; se votar
contra a constituinte, estará aumentando o número total de votos e legitimando
o plebiscito. Que fazer?
A resposta
a esse dilema – que não existe, é só aparente – deve considerar um ponto
fundamental, que parece ser ignorado pelos organizadores do plebiscito e não
deve sê-lo por seus opositores. Como o plebiscito pretende ser uma iniciativa
“democrática”, nunca é demais lembrar que está faltando a ele um pressuposto
fundamental à democracia: a transparência. Em uma atividade de cunho eleitoral
como essa, a transparência se traduziria em revelar quem a está financiando,
quanto dinheiro está envolvido em sua organização e qual sua origem. Envolveria
a realização de campanhas eleitorais pró e contra a alternativa proposta,
disponibilizando-se aos votantes toda a informação necessária para a tomada da
melhor decisão. Além disso, demandaria a fiscalização de todo o processo de
votação (cadastro dos votantes, distribuição das cédulas, contagem e recontagem
dos votos etc.) por delegados neutros e/ou indicados pelos dois lados da
disputa – sem isso é impossível saber se princípios básicos como o do “um
homem, um voto” estão sendo respeitados.
Sem essas
medidas básicas – e absolutamente nenhuma delas está sendo tomada – o resultado
final do plebiscito não tem legitimidade alguma, quer ele venha a ser
interpretado por seus organizadores como “manifestação da vontade popular” ou
usado como instrumento de pressão junto ao Congresso. Uma votação que não
atenda a esses pressupostos nada mais é que uma farsa, e deve ser tratada como
tal.
É claro
que, exatamente por causa do exposto nos parágrafos anteriores, a (não)
participação dos opositores da “constituinte” na votação não importa tanto
assim – o resultado final da votação será um embuste de qualquer forma.
Independentemente da adesão que o plebiscito realmente provoque, as
organizações “participantes” já estarão prontas para encher as urnas com votos
favoráveis à iniciativa. Muito provavelmente veremos notícias chapa-branca
dizendo algo como “95% dos votantes querem a constituinte” – um dado tão
relevante quanto “100% dos torcedores do Flamengo torcem para o Flamengo”. Foi
o que ocorreu, por exemplo, em 2002, quando esse mesmo povo montou um “plebiscito popular”
em que 98% dos participantes (uau!) se posicionou contra a ALCA, aquele acordo
de livre comércio que poderia inundar os supermercados de importados baratos
dos EUA. Você votou nesse negócio? É, eu também não.
Em suma: o
plebiscito constituinte pode ser comparado a uma gigantesca assembleia de DCE
universitário, só que a nível nacional. Seu objetivo é claro: referendar uma
decisão já tomada pelos dirigentes do grupo político que está no poder. Nesse
contexto, cabe a todos aqueles que se opõem a tal decisão – ou, mais
claramente, à reforma política – a tarefa de desmontar essa farsa, demostrando
que, em uma campanha que desde o início está sendo direcionada para um fim
determinado, não existe resultado mais previsível do que uma pretensa
aclamação.
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Opinião
Crítica/ Liberzone
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