Para mim, simples leigo há muito atraído pela teologia e gostando de compreender a fé católica que professo, a primordial questão é a do alcance,
naquela frase, do significado da palavra inadmissível.
No passado dia 2 (de agosto), foi publicado no site do Vaticano [1] uma nova redação do nº 2267 do Catecismo da Igreja Católica, que trata da pena de morte, assim como uma carta endereçada aos bispos com esclarecimentos a respeito do mesmo assunto, aprovada pelo Papa
e subscrita pelo Cardeal Ladaria, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé — o departamento que tem por missão tutelar, conforme a designação indica, justamente pela ortodoxia
da doutrina da fé e da moral católicas. No terceiro parágrafo da nova redação conclui-se assim:
“Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade
e dignidade da pessoa»[1], e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo”.
Sendo que a nota [1] que ali aparece remete para um Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização,
proferido pelo Papa a 11 de Outubro de 2017, o qual mais à frente citarei.
Esta nova redação – nova relativamente à da edição típica latina de 1997 – logo atiçou inúmeras polêmicas
interpretativas, expostas sobretudo nos meios digitais internacionais. Polêmicas essas que já tinham sido ateadas na sequência do referido discurso de Outubro de 2017; e até já antecipadas
pelo livro By Man Shall His Blood Be Shed: A Catholic Defense of Capital Punishment, de Edward Feser e Joseph Bessette, editado pela editora Ignatius dos Estados Unidos, em Maio de 2017.
A polêmica centra-se na questão de saber se a nova redação desejada pelo Papa Francisco, é apenas mais um progresso ou desenvolvimento da doutrina católica de sempre que admite a moralidade da pena de morte em si mesma, independentemente do facto de aquela constar ou não da legislação penal e da sua aplicação concreta; ou, ao contrário, se estamos perante uma rotura ou corrupção da doutrina. É sobre isto que aqui me debruço, sendo que me parece fundamental ainda antes recuar ao século V para ir beber a um tratado escrito por um santo monge.
Vejamos:por mais vivo e verdadeiro que se considere serem a Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério
dos sucessores dos apóstolos (ou seja, o ensino do Papa sozinho; ou o do bispos em comunhão com ele), também é muito exato e verdadeiro o que São Vicente de Lérins – um monge
que morreu algures antes do ano 450 – afirmou num seu tratado que ficou conhecido pelo nome de Commonitorium, sobre os critérios como a doutrina deve ou pode progredir (do latim profectus) ao longo do tempo, sem se corromper ou desdizer-se [2].
Neste contexto, vale a pena lembrar aos católicos – e outros interessados – que estes mesmos critérios do documento do monge de Lérins (assim como as
passagens referidas no final, na nota 2), são referência de diversos documentos do mais alto Magistério da Igreja [3]. Este facto observável, constitui um indubitável reconhecimento,
por parte das mesmas instâncias do Magistério da Igreja, da autoridade daquele tratado de São Vicente de Lérins.
Já mais contemporaneamente – como exemplo mais recente – permito-me transcrever aqui, apenas os seguintes três excertos em que isso se pode notar.
Do discurso de João XXIII, ao inaugurar o Concílio Vaticano II, dia 11 de Outubro de 1962, as seguintes palavras apontam claramente para a doutrina exposta por São
Vicente no Commonitorium, nomeadamente para o capítulo XXIII, versículo 3 (itálico meu):
«4. A finalidade principal deste Concílio não é, portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando
o ensino dos Padres e dos Teólogos antigos e modernos, que se supõe sempre bem presente e familiar ao nosso espírito. 5. Para isto, não havia necessidade de um Concílio. Mas da renovada, serena e tranquila adesão a todo o ensino da Igreja, na sua integridade e exatidão, como ainda brilha nas Atas Conciliares desde Trento até ao Vaticano I, o espírito cristão, católico e apostólico do mundo inteiro espera um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências; é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do «depositum fidei», isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes,
contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance.»
E daquele mesmo Concílio, leia-se esta passagem (do nº 62) da Constituição pastoral Gaudium et Spes, de 7 de Dezembro de 1965, onde a mesma alusão ao Commonitorium é óbvia (itálicos meus):
«62. Ainda que a Igreja muito tem contribuído para o progresso cultural, mostra, contudo, a experiência que, devido a causas contingentes, a harmonia da cultura com
a doutrina nem sempre se realiza sem dificuldades.
Tais dificuldades não são necessariamente danosas para a vida da fé; antes, podem levar o espírito a uma compreensão mais exata e mais profunda da
mesma fé. Efetivamente, as recentes investigações e descobertas das ciências, da história e da filosofia, levantam novos problemas, que implicam consequências também para a vida
e exigem dos teólogos novos estudos. Além disso, os teólogos são convidados a buscar constantemente, de acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico,
a forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo; porque uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra o modo como elas se enunciam, sempre,
porém, com o mesmo sentido e significado (12) [4]. Na atividade pastoral, conheçam-se e apliquem-se suficientemente, não apenas os princípios teológicos,
mas também os dados das ciências profanas, principalmente da psicologia e sociologia, para que assim os fiéis sejam conduzidos a uma vida de fé mais pura e adulta.»
Por fim: também o Santo Padre Francisco, já citou aquele tratado de São Vicente de Lérins, designadamente o capítulo XXIII, versículos 1 e 9
– ainda que, infelizmente, de forma incompleta, como se pode constatar pela comparação com os originais [5]. Foi justamente no discurso que proferiu aos participantes no encontro por ocasião
do XXV aniversário do Catecismo da Igreja Católica, dia 11 de Outubro de 2017, em que aludiu à necessidade de mudar o texto do Catecismo, no que
respeita à pena de morte. Disse então o Papa:
[…] «Aqui não estamos perante qualquer contradição com a doutrina do passado, porque a defesa da dignidade da vida humana desde o primeiro instante da
concepção até à morte natural sempre encontrou, no ensinamento da Igreja, a sua voz coerente e autorizada. O desenvolvimento harmônico da doutrina, porém, requer que se abandone tomadas
de posição em defesa de argumentos que agora se apresentem decididamente contrários à nova compreensão da verdade cristã. Aliás, como já recordava São Vicente de Lérins, «talvez alguém pergunte: Não haverá progresso algum dos conhecimentos religiosos na Igreja de Cristo? Há, sem dúvida,
e muito grande. Com efeito, quem será tão malévolo para com a humanidade e tão inimigo de Deus que pretenda impedir este progresso?» (Commonitorium, 23.1: PL50, 667). Por isso é necessário reiterar que, por muito grave que possa ter sido o delito cometido, a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa.» (na transcrição que aqui faço deste parágrafo o itálico e sublinhado é meu).
«”A Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita” (Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 8). No Concílio, os Padres não podiam encontrar afirmação sintética mais feliz para expressar a natureza e missão da Igreja. Não
só na “doutrina”, mas também na “vida” e no “culto”, é oferecida aos crentes a capacidade de ser Povo de Deus. Com uma sequência evolutiva de verbos, a Constituição
dogmática sobre a Divina Revelação exprime a dinâmica resultante do processo: «esta Tradição progride (…), cresce (…), tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus» (ibid.). (itálico conforme está na versão original portuguesa do Vaticano).
«A Tradição é uma realidade viva; e somente uma visão parcial pode conceber o “depósito da fé” como algo de estático.
A Palavra de Deus não pode ser conservada em naftalina, como se se tratasse de uma velha coberta que é preciso proteger da traça! Não. A Palavra de Deus é uma realidade dinâmica, sempre
viva, que progride e cresce, porque tende para uma perfeição que os homens não podem deter. Esta lei do progresso – segundo a fórmula feliz de São Vicente de Lérins: «
annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate – fortalece-se com o decorrer dos anos, cresce com o andar dos tempos, desenvolve-se através
das idades» ( Commonitorium, 23.9: PL50, 668) – pertence à condição peculiar da verdade revelada, enquanto transmitida pela Igreja, e não significa de modo algum uma mudança de doutrina.» (itálico conforme está na versão original portuguesa do Vaticano).
Como se vê – para além das duas citações do Commonitorium –– a frase sublinhada no primeiro parágrafo, é exatamente a mesma que agora o Papa entendeu usar na nova redação do nº
2267 do Catecismo.