TERCEIRA
PREGAÇÃO DA QUARESMA
"PERTO
DA CRUZ DE JESUS ESTAVA MARIA SUA MÃE".
A palavra de Deus que nos acompanha em nossa
meditação é a de João, aquele que “viu e que, por isso, sabe que fala a
verdade” (Jo 19,35):
Perto da cruz de Jesus estavam de pé a sua
mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena. Jesus, ao ver sua
mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse a sua mãe: ‘Mulher, este
é o teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Esta é a tua mãe’. Daquela hora em
diante, o discípulo a acolheu consigo (Jo 19,25-27).
Desse texto, tão denso, vamos considerar agora
só a narrativa, deixando para a próxima vez a meditação do restante da passagem
evangélica que contém as palavras de Jesus.
Se, no Calvário, junto da cruz de Jesus,
estava Maria, sua Mãe, isso quer dizer que ela estava em Jerusalém naqueles
dias; se estava em Jerusalém, então viu tudo, assistiu a tudo. Ouviu os gritos:
“Esse não, mas Barrabás!”, assistiu ao Ecce homo, viu a carne da sua carne
açoitada, sangrante, coroada de espinhos, seminua perante a multidão, estremecendo
sacudida por arrepios de morte na cruz. Ouviu o barulho dos golpes de martelo e
os insultos: “Se és o Filho de Deus...”. Viu os soldados dividindo entre si as
vestes, a túnica que talvez ela mesma tinha tecido.
“Perto da cruz de Jesus estavam de pé a sua
mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena”. Havia, pois, um
grupo de mulheres, quatro no total (como aparece no ícone). Maria não estava,
pois, sozinha; era uma das mulheres. Sim, Maria estava ali como “sua mãe” e
isto muda tudo, pondo Maria numa situação totalmente diferente. Assisti, às
vezes, ao funeral de alguns jovens; penso particularmente no de um rapaz.
Várias mulheres seguiam o féretro. Todas vestidas de preto, todas chorando.
Pareciam todas iguais. Mas entre elas havia uma diferente, uma na qual pensavam
todos os presentes, e para a qual todos olhavam disfarçadamente: a mãe. Era
viúva e tinha só aquele filho. Olhava para o caixão, percebia-se que seus
lábios repetiam sem parar o nome do filho. Quando os fiéis, no momento do
Sanctus, começaram a proclamar: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus do
universo”, também ela, talvez sem o perceber, começou a murmurar: Santo, Santo,
Santo... Naquele momento pensei em Maria aos pés da cruz. Mas a ela foi pedido
algo de mais difícil: perdoar. Quando ouviu o Filho dizendo: Pai, perdoa-lhes!
Eles não sabem o que fazem! (Lc 23,34), ela entendeu o que o Pai do céu
esperava dela: que dissesse com o coração as mesmas palavras: “Pai,
perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!”. E ela as disse. Perdoou.
Se Maria pôde ser tentada, como o foi também
Jesus no deserto, isto aconteceu particularmente junto da cruz. E foi uma
tentação profundíssima e dolorosíssima, porque tinha como causa o mesmo Jesus.
Ela acreditava nas promessas, acreditava que Jesus era o Messias, o Filho de
Deus; sabia que, se Jesus tivesse pedido, o Pai lhe teria enviado “mais de doze
legiões de anjos” (cf. Mt 26,53). Mas percebe que Jesus não faz nada.
Libertando a si mesmo da cruz, libertaria também ela de sua terrível dor, mas
não o faz. Maria, porém, não grita: “Desce da cruz; salva-te a ti mesmo e a
mim!”; ou: “Salvaste muitos outros, por que não salvas agora também a ti mesmo,
ó meu filho?”, ainda que seja fácil entender como seria natural que semelhantes
pensamentos e desejos surgissem no coração de uma mãe. Maria cala-se.
Humanamente falando, Maria tinha todos os
motivos para gritar a Deus: “Tu me enganaste!”, ou, como um dia gritou o
profeta Jeremias: “Tu me seduziste e eu me deixei seduzir!” (cf. Jr 20,7), e
fugir do Calvário. Ela, pelo contrário, não fugiu, mas ficou “de pé”, em
silêncio, tornando-se assim, de maneira toda especial, mártir da fé e, seguindo
o Filho, testemunha suprema da confiança em Deus. Esta visão de Maria que se
une ao sacrifício do Filho encontrou uma expressão sóbria e solene num texto do
Concilio Vaticano II:
“Assim a Bem-aventurada Virgem avançou em
peregrinação de fé. Manteve fielmente sua união com o Filho até à cruz, onde
esteve não sem desígnio divino. Veementemente sofreu junto com seu Unigénito. E
com ânimo materno se associou ao seu sacrifício, consentindo com amor na
imolação da vítima por ela mesma gerada”[1].
Maria não estava, pois, “junto da cruz de
Jesus”, perto dele, só num sentido físico e geográfico, mas também num sentido
espiritual. Ela estava unida à cruz de Jesus; estava no mesmo sofrimento;
sofria com ele. Sofria no seu coração o que o Filho sofria na carne. E quem
poderia pensar diversamente, se, ao menos, sabe o que significa ser mãe?
Jesus era também homem; enquanto homem, diante
de todos ele não é, neste momento, senão um filho justiçado na presença de sua
mãe. Jesus já não diz: Que temos nós com isso, mulher? A minha hora ainda não
chegou (Jo 2,4). Agora que a sua “hora” chegou, há entre ele e sua mãe algo de
grande em comum: o mesmo sofrimento. Naqueles momentos extremos, quando também
o Pai se escondeu misteriosamente do seu olhar de homem, restou para Jesus
somente o olhar de sua mãe onde procurar refúgio e consolação. Por acaso vai
desdenhar esta presença e esta consolação materna aquele que, no Getsêmani,
suplicou aos três discípulos: Ficai aqui e vigiai comigo (Mt 26,38)?
Estar junto da cruz de Jesus
Agora, seguindo como sempre o nosso
princípio-guia, conforme o qual Maria é tipo e espelho da Igreja, suas
primícias e modelo, temos que nos perguntar: o que o Espírito Santo quis dizer
à Igreja dispondo que, na Escritura, fosse registrada essa presença de Maria e
essa palavra de Jesus sobre ela?
Também desta vez, é a mesma Palavra de Deus
que, implicitamente, indica a passagem de Maria à Igreja, dizendo o que cada
fiel deve fazer para imitá-la: “Junto da cruz de Jesus estava Maria, sua Mãe,
e, junto dela, o discípulo que ele amava”. Na notícia está contida a parênese.
O que aconteceu naquele dia indica o que deve acontecer cada dia: é preciso
ficar junto de Maria perto da cruz de Jesus, como aí ficou o discípulo que ele
amava.
Há duas coisas escondidas nesta frase:
primeiro, que é preciso ficar “junto da cruz” e, em segundo lugar, que é
preciso ficar junto da cruz “de Jesus”. Veremos que essas são duas coisas
diferentes, embora inseparáveis
Ficar perto da cruz “de Jesus”. Estas palavras
dizem-nos que a primeira coisa a ser feita, a mais importante de todas, não é
ficar perto de qualquer cruz, mas ficar perto da cruz “de Jesus”. Não é
suficiente ficar perto da cruz, no sofrimento, e aí ficar em silêncio. Isto só
já parece algo de heroico, todavia, não é o mais importante. Pode, aliás, não
ser nada. Decisivo é ficar perto da cruz “de Jesus”. O que vale não é a própria
cruz, mas a de Cristo. Não é o fato de sofrer, mas de acreditar, apropriando-se
assim do sofrimento de Cristo. A primeira coisa é a fé. A realidade maior de
Maria junto da cruz foi a sua fé, maior ainda do que o seu sofrimento. Paulo
diz que a palavra da cruz é “poder de Deus e sabedoria de Deus para aqueles que
são chamados” (cf. 1Cor 1,18.24) e diz que o Evangelho é poder de Deus “para
todos aqueles que creem” (cf. Rm 1,16). Para todos que creem, não para todos os
que sofrem, ainda que, como veremos, ambas as coisas geralmente estejam unidas.
Aqui está a fonte de toda a força e
fecundidade da Igreja. A força da Igreja vem da pregação da cruz de Jesus – de
algo que, aos olhos do mundo, é o próprio símbolo da loucura e da fraqueza –,
renunciando a qualquer possibilidade ou vontade de enfrentar o mundo, descrente
e leviano, com seus meios que são a sabedoria das palavras, a força da
argumentação, a ironia, o ridículo, o sarcasmo e todas as outras “coisas fortes
do mundo” (cf. 1Cor 1,27). É preciso renunciar a uma superioridade humana para
que possa surgir e agir a força divina contida na cruz de Cristo. É preciso
insistir neste primeiro ponto. A maioria dos fiéis nunca foi ajudada a entrar
neste mistério que é o coração do Novo Testamento, o centro do kerigma e que
muda a vida.
“Ficar perto da cruz”. Mas qual é o sinal e a
prova de que se acredita verdadeiramente na cruz de Cristo, que “a palavra da
cruz” não é apenas uma palavra, um princípio abstrato, uma bela teologia ou
ideologia, mas que é verdadeiramente cruz? O sinal, a prova, é: tomar sua
própria cruz e ir atrás de Jesus (cf. Mc 8,34). O sinal é a participação nos
seus sofrimentos (Fl 3,10; Rm 8,17), é estar crucificado com ele (Gl 2,19), é
completar, pelos próprios sofrimentos, o que falta à paixão de Cristo (Cl
1,24). A vida inteira do cristão, como a de Cristo, deve ser um sacrifício vivo
(cf. Rm 12,1). Não se trata só de sofrimento aceito passivamente, mas também de
sofrimento ativo, vivido em união com Cristo: Trato duramente o meu corpo e o
subjugo (1Cor 9,27). “Toda a vida de Cristo foi cruz e martírio; e tu procuras
só descanso e gozo?”, admoesta o autor da “Imitação de Cristo”[2].
Existiram na Igreja duas maneiras diferentes
de colocar-se diante da cruz e da paixão de Cristo: a primeira, mais
característica da teologia protestante, baseada na fé e na apropriação, que se
apoia na cruz de Cristo, que quer gloriar-se só na cruz de Cristo; a segunda –
pelo menos no passado cultivada de preferência pela teologia católica –, que
insiste no sofrer com Cristo, no partilhar de sua paixão e, como no caso de
alguns santos, até no reviver em si mesmo a paixão de Cristo. O ecumenismo nos
leva a reconstruir a síntese daquilo que na Igreja gradualmente acabou se
opondo.
Não se trata, evidentemente, de pôr no mesmo
plano a obra de Cristo e a nossa, mas de acolher a palavra da Escritura que
afirma que tanto a fé como a obra estão mortas uma sem a outra (cf. Tg 2,14ss).
Aliás, poderíamos dizer que o problema diz respeito à própria fé. É a fé na
cruz de Cristo que precisa passar pelo sofrimento para ser autêntica. A
Primeira Carta de Pedro diz que o sofrimento é o “crisol” da fé, que a fé
precisa do sofrimento para ser purificada como o ouro no fogo (cf. 1Pd 1,6-7).
Em outras palavras, a nossa cruz não é salvação
em si mesma, não é nem poder, nem sabedoria; por si mesma, é pura obra humana,
ou até mesmo um castigo. Torna-se poder e sabedoria de Deus enquanto –
acompanhada pela fé, por disposição de Deus mesmo – nos une à cruz de Cristo.
“Sofrer significa tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à
ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade”[3]. O
sofrimento une à cruz de Cristo de maneira não só intelectual, mas existencial
e concreta; é uma espécie de canal, de caminho para chegar à cruz de Cristo,
não à margem da fé, mas fazendo uma coisa só com ela.