"USEMOS AS ARMAS DA LUZ - A PUREZA CRISTÃ"
Em nosso comentário à parênese da Carta aos
Romanos, chegamos ao ponto em que se diz:
"A noite vai adiantada, e o dia vem chegando.
Despojemo-nos das obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz.
Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de
bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de contendas, nada de
ciúmes. Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da
carne nem lhe satisfaçais aos apetites" (Rm 13,12-14).
Santo Agostinho, nas Confissões, nos diz o lugar
que esta passagem teve em sua conversão. Ele já havia alcançado uma quase
completa adesão à fé; as suas objeções haviam sido aniquiladas uma após a outra
e a voz de Deus se tornara cada vez mais urgente. Mas havia uma coisa que o
detinha: o medo de não ser capaz de viver casto. Ele vivia, como sabemos, com
uma mulher sem ser casado.
Estava no jardim da casa que o abrigava, nas garras
dessa luta interior e com lágrimas nos olhos, quando, de uma casa próxima,
ouviu uma voz, como um menino ou menina, que repetia: "Tolle, lege!,
Pegue, leia; pegue, leia!". Ele interpretou estas palavras como um convite
de Deus e, tendo ao alcance das mãos o livro das Epístolas de São Paulo,
abriu-o ao acaso, determinado a considerar como vontade de Deus a primeira
frase em que seu olhar se fixasse.
A palavra em que seu olhar caiu foi, de fato,
aquela da Carta aos Romanos que acabamos de mencionar. Uma luz de segurança
brilhou dentro dele (lux securitatis), o que fez desaparecer toda a
escuridão da incerteza. Ele sabia agora que, com a ajuda de Deus, poderia ser
casto[1].
As coisas que o Apóstolo, naquela passagem, chama
“obras das trevas” são as mesmas que em outros lugares define "desejos, ou
obras, da carne" (cf. Rm 8,13; Gl 5,19) e as coisas que chama "armas
da luz" são as mesmas que em outros lugares chama de "obras do
Espírito", ou "frutos do Espírito" (cf. Gl 5, 22). Entre essas
obras da carne é enfatizada, com dois termos (koite e aselgeia),
a devassidão sexual, à qual se opõe a arma da luz que é a pureza.
O Apóstolo não se ocupa, no presente contexto, em
falar desse aspecto da vida cristã; mas da lista dos vícios, colocada no início
da Carta (cf. Rm 1, 26ss), sabemos quão importante era isso para os seus olhos.
São Paulo estabelece uma ligação muito estreita entre pureza e santidade e
entre pureza e Espírito Santo:
"Esta é a vontade de Deus: a vossa
santificação; que eviteis a impureza; que cada um de vós saiba possuir o seu
corpo santa e honestamente, sem se deixar levar pelas paixões desregradas, como
os pagãos que não conhecem a Deus; e que ninguém, nesta matéria, oprima nem
defraude a seu irmão, porque o Senhor faz justiça de todas estas coisas, como
já antes vo-lo temos dito e asseverado. Pois Deus não nos chamou para a
impureza, mas para a santidade. Por conseguinte, desprezar estes preceitos é
desprezar não a um homem, mas a Deus, que nos deu o seu Espírito Santo."
(1 Ts 4, 3-8)
Por isso, procuremos reunir esta última
"exortação" da palavra de Deus, aprofundando o fruto do Espírito que
é a pureza.
1. As
motivações cristãs da pureza
Na Carta aos Gálatas, São Paulo escreve: "O
fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade,
fidelidade, mansidão, autodomínio" (Gl 5, 22). O termo grego original, que
traduzimos com "autodomínio” é enkrateia e tem uma gama
muito ampla de significados; pode-se exercer, de fato, o domínio de si no
comer, no falar, no controle da ira, etc.
Aqui, porém, como nos demais, quase sempre no Novo
Testamento, isso significa o domínio de si em uma esfera bem precisa da pessoa,
ou seja, no âmbito da sexualidade. Deduzimos isso do fato de que, pouco acima,
elencando as “obras da carne”, o Apóstolo chama porneia , ou
seja, impureza, aquilo que se opõe ao domínio de si (é o mesmo termo do qual
deriva “pornografia”!).
Nas traduções modernas da Bíblia, o termo porneia é
traduzido ora como prostituição, ora como impureza, ora como fornicação ou
adultério, e ora como outros vocábulos. A ideia de fundo, contida no termo é,
todavia, aquela de “vender-se”, de alienar o próprio corpo, portanto, de
prostituir-se (pernemi, em grego, significa “me vendo”).
Usando este termo para indicar quase todas as
manifestações de desordem sexual, a Bíblia diz que todo pecado de impureza é,
em certo sentido, um prostituir-se, um vender-se.
Os termos usados por São Paulo nos dizem, portanto, que são possíveis, com
relação ao nosso
próprio corpo e a própria sexualidade, duas atitudes opostas, uma atitude do
Espírito e a outra obra da carne; uma, virtude e a outra vício.
A primeira atitude é conservar o controle de si e
do próprio corpo; a segunda é, pelo contrário, vender ou alienar o próprio
corpo, ou seja, dispor da sexualidade à vontade, para fins utilitaristas e
diversos daqueles para os quais foi criada; um transformar o ato sexual em um
ato venal, mesmo que o útil em questão não seja sempre constituído pelo
dinheiro, como no caso da prostituição verdadeira e real, mas também pelo
prazer egoísta como um fim em si mesmo.
Quando falamos da pureza e da impureza em simples
listas de virtudes ou de vícios, sem aprofundar a matéria, a linguagem do Novo
Testamento não é muito diferente da linguagem dos moralistas pagãos, por
exemplo, dos Estoicos.
Até os moralistas pagãos exaltavam o domínio de si,
mas somente em função da quietude interior, da impassividade (apatheia),
do autodomínio; a pureza era governada, para eles, pelo princípio da "reta
razão".
Na realidade, porém, dentro desses velhos
vocabulários pagãos, existe um conteúdo totalmente novo que brota, como sempre,
do querigma. Isso já é visível em nosso texto, onde a devassidão é contraposta,
de modo muito significativo, como seu contrário, do “revestir-se do Senhor
Jesus Cristo”.
Os primeiros cristãos foram capazes de compreender
este conteúdo novo, porque isso era objeto específico de catequese em outros
contextos.
Vamos agora examinar uma dessas catequeses
específicas sobre pureza, para descobrir o verdadeiro conteúdo e as verdadeiras
motivações cristãs dessa virtude que derivam do evento pascal de Cristo.
Trata-se do texto de 1 Cor 6, 12-20. Parece que os Coríntios - talvez
deturpando uma frase do Apóstolo - alegassem o princípio: "tudo me é
lícito", para justificar também os pecados da impureza.
Na resposta do Apóstolo está contida uma motivação
absolutamente nova da pureza que brota do mistério de Cristo. Não é lícito -
diz ele – entregar-se à impureza (porneia), não é lícito vender-se, ou
dispor de si à vontade, pelo simples fato de que nós não nos pertencemos mais,
não somos nossos, mas de Cristo. Não se pode dispor do que não é nosso:
"Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo [...] e que não
pertenceis a vós mesmos?" (1 Cor 6, 15.19).
A motivação pagã é, em certo sentido, invertida; o
valor supremo a ser salvaguardado não é mais o domínio de si, mas o “não
domínio de si”. “O corpo não é para a impureza, mas para o Senhor!” (1 Cor 6,
13): a motivação última da pureza é, portanto, que “Jesus é o Senhor!”. A
pureza cristã, em outras palavras, não consiste tanto em estabelecer o domínio
da razão sobre os instintos, mas em estabelecer o domínio de Cristo sobre toda
a pessoa, razão e instintos.
Esta motivação cristológica da pureza torna-se mais
convincente com aquilo que São Paulo acrescenta no mesmo texto: não somos
apenas genericamente “de” Cristo, como sua propriedade ou sua coisa; nós somos
o próprio corpo de Cristo, os seus membros! Isso torna tudo imensamente mais
delicado, porque significa que, ao cometer a impureza, eu prostituo o corpo de
Cristo, realizo uma espécie de sacrilégio odioso; uso da "violência"
ao corpo do Filho de Deus. Diz o Apóstolo: "Tomarei então os membros de
Cristo e torná-los-ei membros de uma prostituta?" (1 Cor 6, 15).
A esta motivação cristológica, acrescenta-se em
seguida aquela pneumatológica, isto é, relativa ao Espírito Santo: "Ou não
sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós?" (1
Cor 6, 19). Abusar do próprio corpo é, portanto, profanar o templo de Deus; mas
se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá (cf. 1 Cor 3, 17).
Cometer impureza é "entristecer o Espírito Santo de Deus" (cf. Ef 4,
30).
Juntamente com as motivações cristológicas e
pneumatológicas, o Apóstolo também menciona uma motivação escatológica, que se
refere ao destino final do homem: "Deus, que ressuscitou o Senhor, também
nos ressuscitará" (1 Cor 6, 14). O nosso corpo está destinado à
ressurreição; está destinado a participar, um dia, na bem-aventurança e na
glória da alma. A pureza cristã não se baseia no desprezo do corpo, mas, ao
contrário, na grande estima de sua dignidade.
O Evangelho - diziam os Padres da Igreja ao
combater os gnósticos - não prega a salvação "de" carne, mas a
salvação "da" carne. Aqueles que consideram o corpo um "traje
estrangeiro", destinado a ser abandonado aqui, não possuem os motivos que o
cristão tem para mantê-lo imaculado.
O Apóstolo conclui a sua catequese sobre a pureza
com o convite apaixonado: "Glorificai, pois, Deus no vosso corpo" (1
Cor 6, 20). O corpo humano é, portanto, para a glória de Deus e expressa essa
glória quando a pessoa vive a própria sexualidade e toda a sua corporeidade em
obediência amorosa à vontade de Deus, que é como dizer: em obediência ao
próprio sentido da sexualidade, à sua natureza intrínseca e originária que não
é aquela de vender-se, mas aquela de doar-se.
Tal glorificação de Deus através do seu próprio
corpo não exige necessariamente a renúncia ao exercício da própria sexualidade.
No capítulo imediatamente seguinte, isto é, em 1 Cor 7, São Paulo explica, de
fato, que tal glorificação de Deus é expressa de duas maneiras e em dois
carismas diferentes: ou através do casamento, ou através da virgindade.
Glorifica a Deus em seu corpo a virgem e o celibatário, mas também o glorifica
quem se casa, desde que todos vivam as exigências do próprio estado.