"USEMOS AS ARMAS DA LUZ - A PUREZA CRISTÃ"
Em nosso comentário à parênese da Carta aos
Romanos, chegamos ao ponto em que se diz:
"A noite vai adiantada, e o dia vem chegando.
Despojemo-nos das obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz.
Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de
bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de contendas, nada de
ciúmes. Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da
carne nem lhe satisfaçais aos apetites" (Rm 13,12-14).
Santo Agostinho, nas Confissões, nos diz o lugar
que esta passagem teve em sua conversão. Ele já havia alcançado uma quase
completa adesão à fé; as suas objeções haviam sido aniquiladas uma após a outra
e a voz de Deus se tornara cada vez mais urgente. Mas havia uma coisa que o
detinha: o medo de não ser capaz de viver casto. Ele vivia, como sabemos, com
uma mulher sem ser casado.
Estava no jardim da casa que o abrigava, nas garras
dessa luta interior e com lágrimas nos olhos, quando, de uma casa próxima,
ouviu uma voz, como um menino ou menina, que repetia: "Tolle, lege!,
Pegue, leia; pegue, leia!". Ele interpretou estas palavras como um convite
de Deus e, tendo ao alcance das mãos o livro das Epístolas de São Paulo,
abriu-o ao acaso, determinado a considerar como vontade de Deus a primeira
frase em que seu olhar se fixasse.
A palavra em que seu olhar caiu foi, de fato,
aquela da Carta aos Romanos que acabamos de mencionar. Uma luz de segurança
brilhou dentro dele (lux securitatis), o que fez desaparecer toda a
escuridão da incerteza. Ele sabia agora que, com a ajuda de Deus, poderia ser
casto[1].
As coisas que o Apóstolo, naquela passagem, chama
“obras das trevas” são as mesmas que em outros lugares define "desejos, ou
obras, da carne" (cf. Rm 8,13; Gl 5,19) e as coisas que chama "armas
da luz" são as mesmas que em outros lugares chama de "obras do
Espírito", ou "frutos do Espírito" (cf. Gl 5, 22). Entre essas
obras da carne é enfatizada, com dois termos (koite e aselgeia),
a devassidão sexual, à qual se opõe a arma da luz que é a pureza.
O Apóstolo não se ocupa, no presente contexto, em
falar desse aspecto da vida cristã; mas da lista dos vícios, colocada no início
da Carta (cf. Rm 1, 26ss), sabemos quão importante era isso para os seus olhos.
São Paulo estabelece uma ligação muito estreita entre pureza e santidade e
entre pureza e Espírito Santo:
"Esta é a vontade de Deus: a vossa
santificação; que eviteis a impureza; que cada um de vós saiba possuir o seu
corpo santa e honestamente, sem se deixar levar pelas paixões desregradas, como
os pagãos que não conhecem a Deus; e que ninguém, nesta matéria, oprima nem
defraude a seu irmão, porque o Senhor faz justiça de todas estas coisas, como
já antes vo-lo temos dito e asseverado. Pois Deus não nos chamou para a
impureza, mas para a santidade. Por conseguinte, desprezar estes preceitos é
desprezar não a um homem, mas a Deus, que nos deu o seu Espírito Santo."
(1 Ts 4, 3-8)
Por isso, procuremos reunir esta última
"exortação" da palavra de Deus, aprofundando o fruto do Espírito que
é a pureza.
1. As
motivações cristãs da pureza
Na Carta aos Gálatas, São Paulo escreve: "O
fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade,
fidelidade, mansidão, autodomínio" (Gl 5, 22). O termo grego original, que
traduzimos com "autodomínio” é enkrateia e tem uma gama
muito ampla de significados; pode-se exercer, de fato, o domínio de si no
comer, no falar, no controle da ira, etc.
Aqui, porém, como nos demais, quase sempre no Novo
Testamento, isso significa o domínio de si em uma esfera bem precisa da pessoa,
ou seja, no âmbito da sexualidade. Deduzimos isso do fato de que, pouco acima,
elencando as “obras da carne”, o Apóstolo chama porneia , ou
seja, impureza, aquilo que se opõe ao domínio de si (é o mesmo termo do qual
deriva “pornografia”!).
Nas traduções modernas da Bíblia, o termo porneia é
traduzido ora como prostituição, ora como impureza, ora como fornicação ou
adultério, e ora como outros vocábulos. A ideia de fundo, contida no termo é,
todavia, aquela de “vender-se”, de alienar o próprio corpo, portanto, de
prostituir-se (pernemi, em grego, significa “me vendo”).
Usando este termo para indicar quase todas as
manifestações de desordem sexual, a Bíblia diz que todo pecado de impureza é,
em certo sentido, um prostituir-se, um vender-se.
Os termos usados por São Paulo nos dizem, portanto, que são possíveis, com
relação ao nosso
próprio corpo e a própria sexualidade, duas atitudes opostas, uma atitude do
Espírito e a outra obra da carne; uma, virtude e a outra vício.
A primeira atitude é conservar o controle de si e
do próprio corpo; a segunda é, pelo contrário, vender ou alienar o próprio
corpo, ou seja, dispor da sexualidade à vontade, para fins utilitaristas e
diversos daqueles para os quais foi criada; um transformar o ato sexual em um
ato venal, mesmo que o útil em questão não seja sempre constituído pelo
dinheiro, como no caso da prostituição verdadeira e real, mas também pelo
prazer egoísta como um fim em si mesmo.
Quando falamos da pureza e da impureza em simples
listas de virtudes ou de vícios, sem aprofundar a matéria, a linguagem do Novo
Testamento não é muito diferente da linguagem dos moralistas pagãos, por
exemplo, dos Estoicos.
Até os moralistas pagãos exaltavam o domínio de si,
mas somente em função da quietude interior, da impassividade (apatheia),
do autodomínio; a pureza era governada, para eles, pelo princípio da "reta
razão".
Na realidade, porém, dentro desses velhos
vocabulários pagãos, existe um conteúdo totalmente novo que brota, como sempre,
do querigma. Isso já é visível em nosso texto, onde a devassidão é contraposta,
de modo muito significativo, como seu contrário, do “revestir-se do Senhor
Jesus Cristo”.
Os primeiros cristãos foram capazes de compreender
este conteúdo novo, porque isso era objeto específico de catequese em outros
contextos.
Vamos agora examinar uma dessas catequeses
específicas sobre pureza, para descobrir o verdadeiro conteúdo e as verdadeiras
motivações cristãs dessa virtude que derivam do evento pascal de Cristo.
Trata-se do texto de 1 Cor 6, 12-20. Parece que os Coríntios - talvez
deturpando uma frase do Apóstolo - alegassem o princípio: "tudo me é
lícito", para justificar também os pecados da impureza.
Na resposta do Apóstolo está contida uma motivação
absolutamente nova da pureza que brota do mistério de Cristo. Não é lícito -
diz ele – entregar-se à impureza (porneia), não é lícito vender-se, ou
dispor de si à vontade, pelo simples fato de que nós não nos pertencemos mais,
não somos nossos, mas de Cristo. Não se pode dispor do que não é nosso:
"Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo [...] e que não
pertenceis a vós mesmos?" (1 Cor 6, 15.19).
A motivação pagã é, em certo sentido, invertida; o
valor supremo a ser salvaguardado não é mais o domínio de si, mas o “não
domínio de si”. “O corpo não é para a impureza, mas para o Senhor!” (1 Cor 6,
13): a motivação última da pureza é, portanto, que “Jesus é o Senhor!”. A
pureza cristã, em outras palavras, não consiste tanto em estabelecer o domínio
da razão sobre os instintos, mas em estabelecer o domínio de Cristo sobre toda
a pessoa, razão e instintos.
Esta motivação cristológica da pureza torna-se mais
convincente com aquilo que São Paulo acrescenta no mesmo texto: não somos
apenas genericamente “de” Cristo, como sua propriedade ou sua coisa; nós somos
o próprio corpo de Cristo, os seus membros! Isso torna tudo imensamente mais
delicado, porque significa que, ao cometer a impureza, eu prostituo o corpo de
Cristo, realizo uma espécie de sacrilégio odioso; uso da "violência"
ao corpo do Filho de Deus. Diz o Apóstolo: "Tomarei então os membros de
Cristo e torná-los-ei membros de uma prostituta?" (1 Cor 6, 15).
A esta motivação cristológica, acrescenta-se em
seguida aquela pneumatológica, isto é, relativa ao Espírito Santo: "Ou não
sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós?" (1
Cor 6, 19). Abusar do próprio corpo é, portanto, profanar o templo de Deus; mas
se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá (cf. 1 Cor 3, 17).
Cometer impureza é "entristecer o Espírito Santo de Deus" (cf. Ef 4,
30).
Juntamente com as motivações cristológicas e
pneumatológicas, o Apóstolo também menciona uma motivação escatológica, que se
refere ao destino final do homem: "Deus, que ressuscitou o Senhor, também
nos ressuscitará" (1 Cor 6, 14). O nosso corpo está destinado à
ressurreição; está destinado a participar, um dia, na bem-aventurança e na
glória da alma. A pureza cristã não se baseia no desprezo do corpo, mas, ao
contrário, na grande estima de sua dignidade.
O Evangelho - diziam os Padres da Igreja ao
combater os gnósticos - não prega a salvação "de" carne, mas a
salvação "da" carne. Aqueles que consideram o corpo um "traje
estrangeiro", destinado a ser abandonado aqui, não possuem os motivos que o
cristão tem para mantê-lo imaculado.
O Apóstolo conclui a sua catequese sobre a pureza
com o convite apaixonado: "Glorificai, pois, Deus no vosso corpo" (1
Cor 6, 20). O corpo humano é, portanto, para a glória de Deus e expressa essa
glória quando a pessoa vive a própria sexualidade e toda a sua corporeidade em
obediência amorosa à vontade de Deus, que é como dizer: em obediência ao
próprio sentido da sexualidade, à sua natureza intrínseca e originária que não
é aquela de vender-se, mas aquela de doar-se.
Tal glorificação de Deus através do seu próprio
corpo não exige necessariamente a renúncia ao exercício da própria sexualidade.
No capítulo imediatamente seguinte, isto é, em 1 Cor 7, São Paulo explica, de
fato, que tal glorificação de Deus é expressa de duas maneiras e em dois
carismas diferentes: ou através do casamento, ou através da virgindade.
Glorifica a Deus em seu corpo a virgem e o celibatário, mas também o glorifica
quem se casa, desde que todos vivam as exigências do próprio estado.
2. Pureza, beleza
e amor ao próximo
Na nova luz que emergiu do mistério pascal e
ilustrada até agora por São Paulo, o ideal da pureza ocupa um lugar
privilegiado em toda síntese da moral cristã do Novo Testamento. Não existe,
podemos dizer, uma carta de São Paulo na qual ele não dedique um espaço, quando
descreve a vida nova no Espírito (cf. por exemplo, Ef 4, 17-5, 33; Cl 3, 5 12).
Este requisito fundamental de pureza é
especificado, de tempos em tempos, de acordo com os diferentes estados de vida
dos cristãos. As epístolas pastorais mostram como a pureza deve ser configurada
em jovens, mulheres, casais, idosos, viúvas, presbíteros e bispos; nos
apresentam a pureza em suas várias faces de castidade, fidelidade conjugal,
sobriedade, continência, virgindade, modéstia.
No seu conjunto, este aspecto da vida cristã
determina o que o Novo Testamento – de modo especial, as Epístolas pastorais –
chama de “beleza” ou o caráter “belo” da vocação cristã, que, fundindo-se com
outra característica, a de bondade, forma o ideal único da "boa
beleza", ou da "bela bondade", o que nos levou a falar,
indiferentemente, tanto de obras boas como de obras belas.
A tradição cristã, chamando a pureza de “bela
virtude”, recolheu esta visão bíblica, que expressa, apesar dos abusos e das
ênfases muito unilaterais que também houve, algo de profundamente verdadeiro. A
pureza, de fato, é beleza!
Essa pureza é um modo de vida, mais que uma única
virtude. Tem uma gama de manifestações que vai além da esfera propriamente
sexual. Há uma pureza do corpo, mas há também uma pureza do coração que evita
não só os atos, mas também os desejos e os pensamentos “feios” (cf. Mt 5,
8.27-28).
Há também uma pureza da boca que consiste,
negativamente, em abster-se de palavras obscenas, de vulgaridades e futilidades
(cf Ef 5, 4; Cl 3, 8) e, positivamente, na sinceridade e retidão do falar, ou
seja, no dizer: “sim, sim” e “não, não”, a imitação do Cordeiro imaculado “em
cuja boca não se encontrou engano” (cf. 1 Pd 2, 22). Finalmente, há uma pureza
ou claridade dos olhos e do olhar.
O olho – dizia Jesus – é a luz do corpo; se o olho
é puro e claro, todo o corpo está na luz (cf. Mt 6, 22s; Lc 11, 34). São Paulo
usa uma imagem muito sugestiva para indicar este novo estilo de vida: diz que
os cristãos, nascidos pela Páscoa de Cristo, devem ser “fermento de pureza e de
sinceridade” (cf. 1 Cor 5, 8). O termo usado aqui pelo Apóstolo - eilikrinéia -
contém, por si só, a imagem de uma "transparência solar". Em nosso
próprio texto, ele fala da pureza como uma "arma da luz".
Hoje em dia, tende-se a contrapor entre si os
pecados contra a pureza e os pecados contra o próximo e tende-se a considerar
verdadeiro pecado somente o que é feito contra o próximo; ironiza-se, às vezes,
o culto excessivo concedido no passado à "bela virtude".
Essa atitude, em parte, pode ser explicada; a moral
havia enfatizado muito unilateralmente, no passado, os pecados da carne, até
criar, por vezes, verdadeiras e reais neuroses, em detrimento aos deveres para
com o próximo e em detrimento da própria virtude da pureza que foi, assim,
empobrecida e reduzida a virtude quase somente negativa, a virtude de saber
dizer não. Mas agora, porém, se passou ao excesso oposto e se tende a minimizar
os pecados contra a pureza, privilegiando (muitas vezes somente de palavra) uma
atenção ao próximo. O erro de fundo está no opor estas duas virtudes.
A palavra de Deus, longe de opor pureza e caridade,
liga-as intimamente uma a outra. Basta ler a continuação da passagem da
Primeira Carta aos Tessalonicenses que mencionei no início, para entender como
as duas coisas são interdependentes entre si segundo o Apóstolo (cf. 1 Ts 4,
3-12). O propósito único da pureza e da caridade é ser capaz de levar uma vida
"cheia de decoro", isto é, íntegra em todas as suas relações, tanto
em relação a si mesmos quanto em relação aos outros. No nosso texto, o Apóstolo
resume tudo isso com a expressão: “comportar-se honestamente como em pleno dia”
(cf. Rm 13, 13).
Pureza e amor ao próximo estão entre si como o
autocontrole e a doação aos demais. Como posso doar-me, se não me possuo, mas
sou escravo das minhas paixões? Como posso doar-me aos demais, se não
compreendi ainda o que me disse o Apóstolo, ou seja, que não me pertenço e que
o meu próprio corpo não é meu, mas do Senhor?
É uma ilusão acreditar que se pode colocar junto um
autêntico serviço aos irmãos, que requer sempre sacrifício, altruísmo,
esquecimento de si e generosidade, e uma vida pessoal desordenada, inteiramente
voltada a gratificar a si mesmos e as próprias paixões. Terminamos, inevitavelmente,
por instrumentalizar os irmãos, como se instrumentaliza o próprio corpo. Não
sabe dizer “sim” aos irmãos quem não sabe dizer “não” a si mesmo.
Uma das "desculpas" que mais contribuem
para favorecer o pecado de impureza, na mentalidade popular, e eliminar
qualquer responsabilidade, é a indiferença do tanto faz, pois isso não faz mal
a ninguém, não viola os direitos e a liberdade dos demais, a menos – se fala –
que se trate de violência carnal. Mas, além do fato de que viola o direito
fundamental de Deus de dar uma lei às suas criaturas, essa "desculpa"
é falsa também com relação ao próximo.
Não é verdade que o pecado de impureza termina com
quem o comete. Há uma solidariedade entre todos os pecados. Todo pecado, onde
quer que seja e por quem quer que seja cometido, contagia e polui o ambiente
moral do homem; este contágio é chamado por Jesus “o escândalo” e é condenado
por ele com algumas das palavras mais terríveis de todo o Evangelho (cf Mt 18,
6 ss; Mc 9, 42 ss; Lc 17, 1 s). Mesmo os maus pensamentos que estagnam no
coração, de acordo com Jesus, poluem o homem e, portanto, o mundo: "Do
coração vêm os propósitos maus; os homicídios, os adultérios, as
prostituições... Estas são as coisas que poluem o homem"(Mt 15, 19-20).
Todo pecado produz uma erosão dos valores e todos
juntos criam o que Paulo chama de "a lei do pecado" e da qual ele
ilustra o terrível poder sobre todos os homens (cf. Rm 7, 14ss). No Talmud
judaico se lê uma parábola que ilustra bem a solidariedade que existe no pecado
e o dano que cada pecado, também o pessoal, faz aos demais: "Algumas
pessoas estavam a bordo de um barco. Uma delas pegou uma broca e começou a
fazer um buraco embaixo dela. Os outros passageiros, vendo, disseram-lhe:
"O que você está fazendo? - Ele respondeu: O que isso importa a vocês? Eu
não estou fazendo o buraco debaixo do meu assento? - Mas eles responderam: -
Sim, mas a água virá e nos afogará a todos!" A própria natureza começou a
nos enviar sinais sinistros de protesto contra certos modernos abusos e excessos
na esfera da sexualidade.
3. Pureza e
renovação
Estudando a história das origens cristãs, fica
claro com clareza que foram dois os principais instrumentos com o qual a Igreja
conseguiu transformar o mundo pagão da época; o primeiro foi o anúncio da
Palavra, o querigma, e o segundo o testemunho de vida dos cristãos, a martyria;
e se vê como, no âmbito do testemunho de vida, duas foram, de novo, as coisas
que mais surpreenderam e converteram os pagãos: o amor fraterno e a pureza dos
costumes. Já a Primeira Carta de Pedro menciona o assombro do mundo pagão em
face do teor de vida tão diferente dos cristãos. Escreve:
"Baste-vos que no tempo passado tenhais vivido
segundo os caprichos dos pagãos, em luxúrias, concupiscências, embriaguez,
orgias, bebedeiras e criminosas idolatrias. Estranham eles agora que já não vos
lanceis com eles nos mesmos desregramentos de libertinagem, e por isso vos
cobrem de calúnias." (1 Pd 4, 3-4).
Os Apologistas - isto é, os escritores cristãos que
escreveram em defesa da fé, nos primeiros séculos da Igreja - atestam que os
padrões de vida puro e casto dos cristãos era, para os pagãos, algo de
“extraordinário e inacreditável”. Em particular, teve um impacto extraordinário
sobre a sociedade pagã a reestruturação da família, que as autoridades da época
queriam reformar, mas que eram impotentes para conter a desintegração.
Um dos argumentos que São Justino Mártir utiliza
para basear a sua Apologia dirigida ao imperador Antonino Pio, é este: os
imperadores romanos estão preocupados em restaurar os costumes e a família e se
esforçam para emanar, para esse fim, oportunas leis, que se revelam, no entanto,
insuficientes. Bem, por que não reconhecer o que conseguiram obter as leis
cristãs junto àqueles que a acolheram e a ajuda que podem dar também à
sociedade civil? Algumas donzelas cristãs brilhantes, mortas mártires,
mostraram até onde chegava, nesse ponto, a força do cristianismo.
Não devemos pensar que a comunidade cristã estava
totalmente livre de desordens e pecados em questões sexuais. São Paulo teve que
repreender um caso, até mesmo, de incesto, na comunidade de Corinto. Mas esses
pecados eram claramente reconhecidos como tais, denunciados e corrigidos. Não
se exigia que se fosse sem pecado, nesta matéria, como no resto, mas de lutar
contra o pecado.
Agora vamos dar um salto das origens cristãs para
os nossos dias. Qual é a situação no mundo de hoje em relação à pureza? A
mesma, se não pior, do que era naquele tempo! Nós vivemos em uma sociedade que,
em termos de costumes, mergulhou em pleno paganismo e em plena idolatria do
sexo. A tremenda denúncia que São Paulo faz do mundo pagão, no começo da Carta
aos Romanos, se aplica, ponto a ponto, ao mundo de hoje, especialmente nas
sociedades assim chamadas do bem-estar (cf. Rm 1, 26-27.32).
Também hoje, não só se fazem essas coisas e outras
piores, mas também se tenta justificá-las, ou seja, justificar toda licença
moral e toda perversão sexual, desde que - dizem - ela não faça violência aos
outros e não prejudique a liberdade dos outros. Como se Deus não tivesse nada a
ver com isso!
Famílias inteiras são destruídas e dizem: o que há
de errado? Não há dúvida de que certos juízos da moral sexual tradicional
deviam ser revistos e que as modernas ciências do homem têm ajudado a lançar
luz sobre certos mecanismos e condicionamentos da psique humana que removem ou
diminuem a responsabilidade moral de certos comportamentos considerados, uma
vez, pecaminosos.
Mas este progresso não tem nada a ver com o
pansexualismo de certas teorias pseudo-científicas e permissivas que tendem a
negar qualquer norma objetiva em questões de moral sexual, reduzindo tudo a uma
questão de evolução espontânea dos costumes, ou seja, a uma questão de cultura.
Se examinarmos de perto aquela que é chamada de revolução sexual dos nossos
dias, percebemos, com espanto, que ela não é simplesmente uma revolução contra
o passado, mas é, muitas vezes, também uma revolução contra Deus.
4. Puro de
coração!
Mas eu não quero me demorar muito descrevendo a
situação atual que nos circunda que, além disso, todos conhecemos bem. Muito me
interessa, de fato, descobrir e transmitir o que Deus quer de nós cristãos em
tal situação. Deus nos chama ao mesmo empreendimento ao qual ele chamou nossos
primeiros irmãos de fé: "se opor a essa torrente de perdição". Nos
chama a fazer a "beleza" da vida cristã brilhar novamente diante dos
olhos do mundo. Nos chama a lutar pela pureza. Lutar com tenacidade e
humildade; não necessariamente a ser, todos e imediatamente, perfeitos. Esta é
uma luta tão antiga quanto a própria Igreja.
Hoje há algo novo que o Espírito Santo nos chama a
fazer: ele nos chama a testemunhar ao mundo a inocência original das criaturas
e das coisas. O mundo afundou muito baixo; o sexo - foi escrito - subiu na
cabeça de todos. Algo muito forte é necessário para quebrar esse tipo de
narcose e intoxicação sexual. É necessário despertar no homem a nostalgia da
inocência e da simplicidade que ele traz em seu coração com pungência, ainda
que tantas vezes coberta de lama.
Não de uma inocência de criação que não há mais,
mas de uma inocência de redenção que nos foi devolvida por Cristo e que nos é
oferecida nos sacramentos e na palavra de Deus. São Paulo assinala este
programa quando escreve aos Filipenses: " Sejam irrepreensíveis e simples,
filhos de Deus imaculados no meio de uma geração perversa e degenerada, na qual
vocês devem brilhar como estrelas no mundo, mantendo no alto a palavra de vida
"(Fp 2, 15 ss). Isto é o que o apóstolo chama, em nosso texto, "usar
as armas da luz".
Não basta mais uma pureza feita de medos, de tabus,
de proibições, de fuga recíproca entre o homem e a mulher, como se um fosse, sempre
e necessariamente, uma armadilha para o outro e um inimigo potencial, mais que
uma "ajuda". No passado, a pureza tinha sido reduzida, às vezes, pelo
menos na prática, precisamente a este complexo de tabu, de proibições e de
medos, como se a virtude tivesse que se envergonhar perante o vício e não, pelo
contrário, o vício a ter que se envergonhar perante a virtude.
Devemos desejar, graças à presença em nós do
Espírito, uma pureza que seja mais forte do que o vício; uma pureza positiva,
não somente negativa, que seja capaz de fazer-nos experimentar a verdade dessa
palavra do Apóstolo: "Tudo é puro para os que são puros!" (Tt 1, 15)
e desta outra palavra da Escritura: " Aquele que está em ti é maior do que
aquele que está no mundo "(1 Jo 4, 4).
Temos de começar curando a raiz que é o
"coração", porque é dali que sai tudo aquilo que polui
verdadeiramente a vida de uma pessoa (cf. Mt 15, 18 ss). Jesus dizia:
"Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus" (Mt 5, 8).
Eles realmente verão, isto é, terão novos olhos para ver o mundo e Deus, olhos
limpos que sabem ver o que é belo e o que é feio, o que é verdade e o que é
mentira, o que é vida e o que é morte. Olhos, em suma, como os de Jesus.
Com que liberdade Jesus podia falar de tudo: das
crianças, da mulher, da gestação, do parto... Olhos como os de Maria. A pureza
não consiste mais, então, em dizer “não” às criaturas, mas em dizer “sim”; sim
em quanto criaturas de Deus que eram, e permanecem, “muito boas”.
Nós não nos iludimos. Para poder dizer esse
"sim", devemos passar pela cruz, porque depois do pecado, nosso olhar
sobre as criaturas se tornou nublado; a concupiscência foi desencadeada em nós;
a sexualidade não é mais pacífica, tornou-se uma força ambígua e ameaçadora que
nos atrai contra a lei de Deus, apesar de nossa própria vontade. Na primeira
meditação desta Quaresma, insistimos em um aspecto particularmente atual e
necessário da mortificação: a dos olhos. Um jejum saudável das imagens é mais
importante hoje do que o jejum das comidas e das bebidas.
Concluo trazendo à vossa mente a experiência de
Santo Agostinho recordada no início. Depois daquela experiência, o santo
inventou uma oração toda sua para obter a castidade: “Senhor, disse, tu me
ordenas ser casto. Pois bem, dá-me o que me ordenas e então ordena-me o que
quiseres”. Uma oração que todos podemos fazê-la nossa, recordando que nisso,
bem como em qualquer outro campo, sem a graça de Deus não podemos fazer nada.
Frei Raniero
Cantalamessa, OFMCap
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[1] S. Agostino, Confessioni, VIII, 11-12.
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Tradução de Thácio Siqueira
Vatican News
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