"CADA
QUAL SEJA SUBMISSO ÀS AUTORIDADES CONSTITUÍDAS”
1. O fio do alto
Ao delinear os traços, ou as virtudes, que devem resplandecer na
vida dos renascidos do Espírito, depois de ter falado da caridade e da
humildade, São Paulo, no capítulo 13 da Carta aos Romanos, também fala da
obediência:
"Cada qual seja submisso às autoridades constituídas,
porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram
instituídas por Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem
estabelecida por Deus" (Rm, 13,1 ss).
O restante da passagem, que fala da espada e dos tributos, bem
como a comparação com outros textos do Novo Testamento sobre o mesmo assunto
(cf. Tt 3, 1; 1 Pd 2, 13-15), indicam claramente que o Apóstolo não fala aqui
da autoridade em geral e de qualquer autoridade, mas apenas da autoridade civil
e estatal. São Paulo trata de um aspecto particular da obediência que era
particularmente sentido quando ele escrevia e, talvez, também pela comunidade à
qual ele escrevia.
Era o momento em que estava amadurecendo, dentro do judaísmo
palestino, a revolta zelota contra Roma que terminará, alguns anos depois, com
a destruição de Jerusalém. O cristianismo nasceu do judaísmo; muitos membros da
comunidade cristã, também de Roma, eram judeus convertidos. O problema de
obedecer ou não ao Estado romano colocava-se, indiretamente, também para os
cristãos.
A Igreja apostólica estava diante de uma escolha decisiva. São
Paulo, como também todo o Novo Testamento, resolve o problema à luz da atitude
e das palavras de Jesus, especialmente da palavra sobre o tributo a César (cf.
Mc 12, 17). O Reino pregado por Cristo "não é deste mundo", não é,
isto é, de natureza nacional e política. Pode, por conseguinte, viver sob
qualquer regime político, aceitando suas vantagens (como era a cidadania
romana), mas também as suas leis. O problema é, em suma, resolvido no sentido
de obediência ao Estado.
A obediência ao Estado é uma conseqüência e um aspecto de uma
obediência muito mais importante e abrangente que o Apóstolo chama de
"obediência ao Evangelho" (cf. Rm 10, 16). A severa advertência do
Apóstolo mostra que pagar impostos e, em geral, cumprir o próprio dever com a
sociedade não é apenas um dever civil, mas também um dever moral. Aqueles que o
transgridem não só enfrentarão o juízo do Estado, mas também o de Deus.
Tudo isso é muito atual, mas nós não podemos limitar o discurso
sobre a obediência somente a este aspecto de obediência ao Estado. São Paulo
nos mostra o lugar onde se coloca o discurso cristão sobre a obediência, mas
não nos diz, neste único texto, tudo o que se pode dizer sobre essa virtude.
Ele traça aqui as consequências de princípios anteriores, na mesma Carta aos
Romanos e em outros lugares, e devemos buscar esses princípios para fazer um
discurso sobre a obediência que seja útil e atual para nós hoje.
Devemos ir à descoberta da obediência "essencial", a
partir da qual surgem todas as obediências particulares, inclusive aquela às
autoridades civis. De fato, há uma obediência que diz respeito a todos -
superiores e súditos, religiosos e leigos - , que é a mais importante de todas,
que governa e vivifica todas as outras, e esta obediência não é a obediência do
homem ao homem, mas a obediência do homem a Deus.
Depois do Concílio Vaticano II, alguém escreveu: "Se há um
problema de obediência hoje, não é o da docilidade direta ao Espírito Santo -
ao qual, pelo contrário, todos mostram aderir-se voluntariamente - mas sim a
submissão a uma hierarquia, a uma lei e a uma autoridade humanamente
expressadas". Estou convencido de que este é o caso. Mas é precisamente para
tornar possível de novo esta obediência concreta à lei e à autoridade visível
que devemos recomeçar da obediência a Deus e ao Seu Espírito.
A
obediência a Deus é como "o fio do alto” que mantém a esplêndida teia da
aranha pendurada em uma sebe. Descendo do alto por meio do fio que ela própria
produz, a aranha constrói a sua teia, perfeita e tensa em cada canto. No
entanto, aquele fio do alto que foi usado para construir a teia não é cortado,
uma vez interrompida a obra, mas permanece. Pelo contrário, é ele que, do
centro, sustenta todo o enredo; sem ele tudo colapsa. Caso se rompa um dos fios
laterais (uma vez testei isso), a aranha aparece e repara velozmente a sua
teia, mas uma vez cortado aquele fio do alto ela vai embora: não há mais nada a
se fazer.
Algo parecido acontece com o enredo das autoridades e das
obediências em uma sociedade, em uma ordem religiosa e na Igreja. Cada um de
nós vive em uma espessa teia de dependências: das autoridades civis, das
eclesiásticas; nestas últimas, do superior local, do bispo, da Congregação do
clero ou dos religiosos, do Papa. A obediência a Deus é o fio do alto: tudo é
construído sobre ela, mas ela não pode ser esquecida nem mesmo após a conclusão
da construção. Pelo contrário, tudo recai sobre si mesmo e não se entende mais
por que é preciso obedecer.
2. A obediência de Cristo
É relativamente simples descobrir a natureza e a origem da
obediência cristã: basta ver com base em qual concepção da obediência Jesus é
definido, pela Escritura, “o obediente”. Descobrimos imediatamente, desta
forma, que o verdadeiro fundamento da obediência cristã não é uma ideia de
obediência, mas é um ato de obediência; não é o princípio abstrato de
Aristóteles segundo o qual “o inferior deve se submeter ao superior", mas
é um evento; não se encontra na “reta razão”, mas no Querigma, e tal fundamento
é que Cristo “se fez obediente até a morte” (Fl 2, 8); que Jesus "aprendeu
a obediência por meio dos sofrimentos que teve. E uma vez chegado ao seu termo,
tornou-se autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem" (Hb 5,
8-9).
O centro luminoso, que dá sentido a todo o discuso sobre a
obediência na Carta aos Romanos, é Rm 5, 19: “Pela obediência de um só todos se
tornarão justos”. Quem conhece o lugar que ocupa, na Carta aos Romanos, a
justificação, pode conhecer, deste texto, o lugar que ocupa a obediência!
Procuremos conhecer a natureza daquele ato de obediência sobre o
qual é fundada a nova ordem; procuremos conhecer, em outras palavras, em que
consiste a obediência de Cristo. Jesus, desde criança, obedeceu aos pais;
depois, quando grande, submeteu-se à lei mosaica, ao Sinédrio, a Pilatos. Mas
São Paulo não pensa em nenhuma dessas obediências; pensa, pelo contrário, na
obediência de Cristo ao Pai.
A obediência de Cristo é considerada a antítese exata da
desobediência de Adão: "Assim como pela desobediência de um só homem foram
todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos se tornarão
justos." (Rm 5, 19; cf. 1 Cor 15, 22). Mas a quem Adão desobedeceu? Certamente,
não aos pais, à autoridade, às leis. Desobedeceu a Deus. Na origem de todas as
desobediências há uma desobediência a Deus e na origem de todas as obediências
há a obediência a Deus.
A obediência recobre toda a vida de Jesus. Se São Paulo e a
Carta aos Hebreus destacam o lugar da obediência na morte de Jesus, São João e
os Sinóticos completam o quadro, destacando o lugar que a obediência teve na
vida de Jesus, no seu cotidiano. “Meu alimento – diz Jesus no Evangelho de João
– é fazer a vontade do Pai” e “Eu faço sempre o que é do seu agrado” (Jo 4, 34;
8, 29). A vida de Jesus é guiada por uma trilha luminosa formada pelas palavras
escritas para ele na Bíblia: "Está escrito ... Está escrito". Dessa
forma ele vence as tentações no deserto. Jesus deduz das Escrituras o
"deve-se" (dei)
que rege toda a sua vida.
A grandeza da obediência de Jesus é medida objetivamente
"pelas coisas que sofreu" e subjetivamente pelo amor e pela liberdade
com que ele obedeceu. Nele, a obediência filial brilha ao mais alto grau. Também
nos momentos mais extremos, como quando o Pai lhe entrega o cálice da paixão
para ser bebido, em seus lábios nunca se apaga o grito filial: “Abba! Meu Deus,
meu Deus, por que me abandonastes?", exclamou na cruz (Mt 27, 46); mas ele
imediatamente acrescentou, de acordo com Lucas: "Pai, em suas mãos entrego
o meu Espírito" (Lc 23, 46). Na cruz, Jesus "se entregou ao Deus que
o abandonava" (independente do que signifique este abandono do Pai). Esta
é a obediência até a morte; esta é "a rocha da nossa salvação".
3. A obediência como graça: o
batismo
No quinto capítulo da Carta aos Romanos, São Paulo nos apresenta
Cristo como o arquétipo dos obedientes, em oposição a Adão que foi o arquétipo
dos desobedientes. No capítulo seguinte, o sexto, o Apóstolo revela como
entramos na esfera deste evento, isto é, através do batismo. Em primeiro lugar,
São Paulo coloca um princípio: se você se colocar livremente sob a jurisdição
de alguém, então você deve servi-lo e obedece-lo:
"Não sabeis que, quando vos ofereceis a alguém para lhe
obedecer, sois escravos daquele a quem obedeceis, quer seja do pecado para a
morte, quer da obediência para a justiça?" (Rm 6,16).
Agora, estabelecido o princípio, São Paulo lembra o fato: os
cristãos, na realidade, colocaram-se livremente sob a jurisdição de Cristo, no
dia em que, no batismo, aceitaram-no como seu Senhor: "Depois de terdes
sido escravos do pecado, obedecestes de coração à regra da doutrina na qual
tendes sido instruídos" (Rm 6,17). No batismo houve uma mudança de padrão,
uma passagem de campo: do pecado à justiça, da desobediência à obediência, de
Adão a Cristo. A liturgia expressou tudo isso, através da oposição:
"Renuncio – Creio".
Portanto, para a vida cristã, a obediência é algo constitutivo;
é a implicação prática e necessária da aceitação do senhorio de Cristo. Não há
senhorio em ato, se não houver, por parte do homem, obediência. No batismo nós
aceitamos um Senhor, um Kyrios, mas um Senhor "obediente", que se
tornou Senhor precisamente por causa de Sua obediência (cf Fl 2, 8-11), cujo
senhorio é, por assim dizer, eivado de obediência. A obediência aqui não é
tanto sujeição, mas sim semelhança; obedecer a um tal Senhor é se assemelhar a
ele, porque é precisamente por causa da sua obediência até a morte, que ele
obteve o nome de Senhor que está acima de todos os outros nomes (cf Fl 2, 8-9).
Deste modo, descobrimos que a obediência, antes que virtude, é
dom, antes que lei, é graça. A diferença entre as duas coisas é que a lei diz fazer,
enquanto a graça doa fazer.
A obediência é, acima de tudo, obra de Deus em Cristo, que depois é apontada ao
crente para que, por sua vez, a expresse na vida com uma fiel imitação. Nós não
temos, em outras palavras, somente o dever de obedecer, mas temos também a
graça de obedecer!
A obediência cristã está enraizada, portanto, no batismo; pelo
batismo todos os cristãos são "votados" à obediência, fizeram, em
certo sentido, "voto". A redescoberta deste dado comum, fundado no
batismo, atende uma necessidade vital dos leigos na Igreja. O Concílio Vaticano
II enunciou o princípio do “chamado universal à santidade” do povo de Deus (LG,
40) e, uma vez que não há santidade sem obediência, dizer que todos os
batizados são chamados à santidade é como dizer que todos são chamados à
obediência, que também existe um chamado universal à obediência.
4. A obediência como
"dever": a imitação de Cristo
Na primeira parte da Carta aos Romanos, São Paulo apresenta-nos
Jesus Cristo como dom a ser acolhido com a fé, enquanto na segunda parte - a
parenética – nos apresenta Cristo como modelo a ser imitado com a vida. Estes
dois aspectos da salvação também estão presentes dentro das virtudes
individuais ou frutos do Espírito. Em toda virtude cristã, há um elemento
misterioso e um elemento ascético, uma parte confiada à graça e uma parte
confiada à liberdade. Agora chegou o momento de considerar este segundo
aspecto, ou seja, a nossa imitação real da obediência de Cristo. A obediência
como dever.
Assim que tentamos encontrar, através do Novo Testamento, em que
consiste o dever da obediência, fazemos uma descoberta surpreendente, a saber,
que a obediência é quase sempre vista como obediência a Deus. Fala-se,
certamente, também de todas as outras formas de obediência: aos pais, aos
chefes, aos superiores, às autoridades civis, “a toda instituição humana” (1 Pd
2,13), mas muito menos frequentemente e de maneira muito menos solene. O
próprio substantivo "obediência" é usado sempre e apenas para indicar
a obediência a Deus ou, em qualquer caso, a instâncias que estão do lado de Deus,
exceto em uma única passagem da Carta a Filêmon (v. 21), onde indica a
obediência ao Apóstolo.
São Paulo fala de obediência à fé (Rm 1, 5; 16, 26), de
obediência ao ensinamento (Rm
6,17), de obediência ao Evangelho (Rm
10, 16; 2 Ts 1, 8), de obediência à Verdade (Gl 5, 7), de
obediência a Cristo (2
Cor 10, 5). Encontramos a mesma linguagem também em outros lugares no Novo
Testamento (cf. At 6, 7; 1 Pd 1, 2. 22).
Mas é possível e faz sentido falar hoje de obediência a Deus,
depois que a nova e viva vontade de Deus, manifestada em Cristo, foi
completamente expressa e objetivada em toda uma série de leis e hierarquias? É
lícito pensar que existam ainda, depois de tudo isso, “livres” vontades de Deus
para serem recolhidas e cumpridas? Sim, sem dúvida! Se a viva vontade de Deus
pudesse ser fechada e objetivada plena e definitivamente em uma série de leis,
normas e instituições, em uma "ordem" estabelecida e definida de uma
vez por todas, a Igreja acabaria ficando petrificada.
A redescoberta da importância da obediência a Deus é uma
conseqüência natural da redescoberta da dimensão pneumática - ao lado da
dimensão hierárquica - da Igreja e do primado, nela, da Palavra de Deus. A
obediência a Deus, em outras palavras, é concebível apenas quando se afirma,
como faz o Concílio Vaticano II, que o Espírito Santo "guia a Igreja a
toda a verdade, a unifica na comunhão e no ministério, a instrui e a orienta
com diversos dons hierárquicos e carismáticos, a embeleza com seus frutos, com
o poder do Evangelho rejuvenesce a Igreja, renova-a continuamente e a leva a
uma união perfeita com o seu esposo" (LG, 40).
Somente se acreditarmos em um "Senhorio" atual e
pontual do Ressuscitado sobre a Igreja, somente se estamos convencidos, no
íntimo, que até hoje - como diz o Salmo - "fala o Senhor, Deus dos deuses,
e não está silencioso" (Sl 50, 1), só então pode-se entender a necessidade
e a importância da obediência a Deus. Essa é um prestar ouvidos ao Deus que
fala, na Igreja, através do seu Espírito, o qual ilumina as palavras de Jesus e
de toda a Bíblia e lhe dá autoridade, tornando-os canais da viva e atual
vontade de Deus para nós.
Mas, como na Igreja instituição e mistério não são opostos, mas
unidos, então agora devemos mostrar que a obediência espiritual a Deus não
distrai da obediência à autoridade visível e institucional, mas, pelo
contrário, renova-a, fortalece-a e vivifica-a, até o ponto em que a obediência
aos homens se torna o critério para julgar se existe, e se é autêntica, a
obediência a Deus. Acontece exatamente como para a caridade. O primeiro
mandamento é amar a Deus, mas o seu banco de prova é amar o próximo. “Quem não
ama o próprio irmão que vê - escreve São João - , como pode amar a Deus que não
vê?" (1 Jo 4, 20). O mesmo deve ser dito da obediência: se você não
obedecer ao superior que vê, como pode dizer obedecer a Deus, que não vê?
A obediência a Deus geralmente acontece dessa maneira. Deus faz
com que sua vontade brilhe em seu coração; é uma "inspiração" que
geralmente nasce de uma palavra de Deus ouvida ou lida em oração. Você se sente
"chamado" por aquela palavra ou por aquela inspiração; sente que ela
lhe “pede” algo novo e você diz “sim”. Caso se trate de uma decisão que terá
consequências práticas, você não pode agir apenas com base em sua inspiração.
Você deve depositar seu chamado nas mãos dos superiores ou daqueles que têm, de
alguma forma, uma autoridade espiritual sobre você, acreditando que, se é de
Deus, ele a fará reconhecer pelos seus representantes.
Mas o que fazer quando há um conflito entre as duas obediências
e o superior humano pede para fazer algo diferente ou oposto ao que você acha
que é pedido por Deus? Basta perguntar-se o que Jesus fez neste caso. Ele
aceitou a obediência externa e se sujeitou aos homens, mas, ao fazê-lo assim,
não negou, mas realizou a obediência ao Pai. Precisamente isso, de fato, o Pai
queria. Sem saber e sem querer - às vezes de boa fé, às vezes não -, os homens,
como aconteceu então, para Caifás, Pilatos e as multidões, tornam-se
instrumentos para se cumprir a vontade de Deus, e não a deles.
Mesmo essa regra não é, no entanto, absoluta. A vontade de Deus
e a sua liberdade podem exigir do homem – como acontece para Pedro diante da injunção
do Sinédrio – que ele obedeça a Deus, em vez de aos homens (cf At 4, 19-20).
Mas quem se depara neste caminho deve aceitar, como qualquer verdadeiro profeta
de morrer para si mesmo (e, muitas vezes, também fisicamente), antes de ver sua
palavra realizada. Na Igreja Católica, a verdadeira profecia sempre foi
acompanhada pela obediência ao papa. Pe. Primo Mazzolari e Pe. Lorenzo Milani
são alguns exemplos recentes.
Obedecer apenas quando o que o superior diz corresponde
exatamente às nossas idéias e às nossas escolhas, não é obedecer a Deus, mas a
nós mesmos; não é fazer a vontade de Deus, mas a própria vontade. Se, no caso
de disparidade, em vez de se auto-questionar, se coloca o superior em dúvida, o
seu discernimento e sua competência, não somos mais obedientes, mas objetores.
5. Uma obediência aberta sempre e a
todos
A obediência a Deus é a obediência que sempre podemos fazer. De
obediências a ordens e autoridades visíveis, acontece apenas ocasionalmente,
três ou quatro vezes na vida, falando de obediências de uma certa seriedade. De
obediências a Deus, no entanto, há muitas. Quanto mais alguém obedece, mais as
ordens de Deus se multiplicam, porque ele sabe que este é o dom mais lindo que
pode fazer, aquele que fez ao seu amado Filho Jesus. Quando Deus encontra uma
alma determinada a obedecer, então ele toma pela mão a sua vida, como se pega o
leme de um barco, ou como se pega as rédeas de um carro. Ele se torna
realmente, e não só na teoria, “Senhor”, ou seja, aquele que “rege”, que
“governa” determinando, pode-se dizer, momento a momento, os gestos, as
palavras daquela pessoa, o seu modo de usar o tempo, tudo.
Eu disse que a obediência a Deus é algo que sempre pode ser
feito. Devo acrescentar que é também a obediência que todos podemos fazer,
tanto súditos quanto superiores. É costume dizer que é preciso saber obedecer
para poder comandar. Não é apenas um princípio de bom senso; há uma razão
teológica nisso. Significa que a verdadeira fonte da autoridade espiritual
reside mais na obediência do que no título ou cargo que se cobre. Conceber a
autoridade como obediência significa não se contentar com a mera autoridade,
mas também aspirar àquela autoridade que vem do fato de que Deus está por trás
de você e apoia a sua decisão. Significa aproximar-se daquele tipo de
autoridade que emanava da ação de Cristo e exortava as pessoas a se perguntarem
maravilhadas: "O que é isso? Uma nova doutrina ensinada com autoridade
"(Mc 1, 27).
Na verdade, é uma autoridade diferente, um poder real e eficaz,
não somente nominal ou de ofício, um poder intrínseco, não extrínseco. Quando
uma ordem é dada por um pai ou um superior que se esforça para viver na vontade
de Deus, que orou antes e não tem interesses pessoais para defender, mas apenas
o bem do irmão ou de seu filho, então a própria autoridade de Deus age como um
reforço para essa ordem ou decisão. Se surgir uma disputa, Deus diz a seu
representante o que ele disse um dia a Jeremias: "Eis que eu faço de você
como uma fortaleza, como uma parede de bronze [...]. Eles irão guerrear com
você, mas não vão vencer, porque eu estou com você "(Jr 1, 18s). Santo
Inácio de Antióquia dava este sábio conselho a um de seus discípulos e colega
do episcopado, São Policarpo: "Que nada se faça sem o seu consentimento,
mas você não faça nada sem o consentimento de Deus[1]”.
Este modo de obediência a Deus não tem nada de místico e
extraordinário, mas está aberto a todos os batizados. Consiste em
"apresentar as perguntas a Deus" (cf Ex 18, 19). Eu posso decidir
sozinho fazer ou não fazer uma viagem, um emprego, uma visita, uma despesa e
depois, uma vez decidido, rezar a Deus pelo sucesso do assunto. Mas se nasce em
mim o amor pela obediência a Deus, então, farei diferente: primeiro perguntarei
a Deus com u meio muito simples ao alcance de todos – a oração – se é a sua
vontade que eu faça aquela viagem, aquele trabalho, aquela visita, aquela
despesa, e depois farei, ou não farei, a coisa, mas ela já será, de qualquer
forma, um ato de obediência a Deus, e não mais uma iniciativa livre minha.
Normalmente, é claro que não ouvirei, na minha breve oração,
nenhuma voz e não terei nenhuma resposta explícita sobre o que fazer, ou, pelo
menos, não é necessário que haja para que minha ação seja obediência. Ao atuar
assim, de fato, submeti a questão a Deus, me despi da minha vontade, renunciei
a decidir sozinho e dei a Deus uma possibilidade para intervir, se quiser, na
minha vida. Qualquer coisa que eu decida fazer, regulando-me com os critérios
comuns de discernimento, será obediência a Deus. É dessa forma que se entregam
as rédeas da vida à Deus! A vontade de Deus penetra, desta forma, sempre mais
no tecido de uma existência, embelezando-a e tornando-a um "sacrifício
vivo, santo e agradável a Deus" (Rm 12, 1).
Também desta vez terminamos com as palavras de um salmo que nos
permite transformar em oração o ensinamento que nos foi dado pelo Apóstolo. Um
dia que estava cheio de alegria e de gratidão pelos benefícios de seu Deus
("Esperei, esperei no Senhor e ele se inclinou sobre mim [...]; me tirou
da cova da morte..."), em um verdadeiro estado de graça, o salmista se
pergunta o que pode fazer para responder tanta bondade de Deus: oferecer
holocaustos, vítimas? Compreende imediatamente que isso não é o que Deus quer
dele; é muito pouco para expressar o que está no coração. E eis que surge a
intuição e a revelação: o que Deus deseja dele é uma decisão generosa e solene
de cumprir, a partir de agora, tudo o que Deus deseja dele, de obedecê-lo em
tudo. Então ele exclama:
"Eis que venho.
Sobre mim está escrito no pergaminho do livro, que eu faça a tua
vontade.
Meus Deus, isso eu desejo,
a tua lei está nas profundezas do meu coração”
Entrando
no mundo, Jesus fez suas estas palavras dizendo: "Eis que eu venho fazer,
ó Deus, a vossa vontade" (Hb 10, 5 ss). Agora é a nossa vez. Toda a vida,
dia a dia, pode ser vivida sob essas palavras: "Eis que eu venho, ó Deus,
para fazer a tua vontade!". Na parte da manhã, ao iniciar um novo dia,
depois ao ir a um compromisso, a um encontro, ao começar um novo trabalho: “Eis
que venho, ó Deus, fazer a tua vontade!”
Nós não sabemos o que, naquele dia, aquele encontro, aquele
trabalho nos reservará; sabemos uma coisa somente com certeza: que queremos
fazer neles, a vontade de Deus. Nós não sabemos o que reserva a cada um de nós
o nosso porvir; mas é lindo caminhar em direção a ele com esta palavra nos
lábios: "Eis que eu venho, ó Deus, para fazer a tua vontade!".
Frei Raniero Cantalamessa, OFM Cap
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[1] Santo Inácio de Antioquia, Carta a Policarpo 4, 1.
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Tradução de: Thácio Siqueira
Vatican News
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