segunda-feira, 26 de março de 2018

Por que não se pode comer carne vermelha na Sexta-Feira Santa?


Abster-se de carne e jejuar na sexta-feira é uma prática plurissecular da Igreja e tem argumentos fortes em seu favor. O primeiro deles é que todos os cristãos precisam levar uma vida de ascese. Esta é uma regra básica da espiritualidade cristã.

Por meio de tal prática é que se pode alcançar com frutos a virtude da temperança, definida pelo Catecismo da Igreja Católica como sendo a "virtude moral que modera a atração pelos prazeres e procura o equilíbrio no uso dos bens criados". Ela assegura o "domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos dentro dos limites da honestidade".

Santo Tomás de Aquino diz que o “jejum foi estabelecido pela Igreja para reprimir as concupiscências da carne, cujo objeto são os prazeres sensíveis da mesa e das relações sexuais”. Importante recordar que, na época de Santo Tomás, a disciplina exigia esta prática não só na sexta-feira, mas também na quarta e, além da carne, englobava os ovos e os laticínios.

Historicamente, fazer da sexta-feira um dia penitencial é algo que afunda suas raízes na época apostólica.

A Didaqué, uma espécie de catecismo dos primeiros cristãos, dá conta de que o jejum era feito na quarta e na sexta-feira. A Igreja do Oriente, inclusive, permanece com esse costume.

Os Santos Padres também incentivaram sobremaneira este hábito que acabou se consolidando. No entanto, na Idade Média, o Papa Nicolau I, no século IX, instituiu como lei aquilo que era somente um costume. E, assim, a penitência passou a ser obrigatória para todos os cristãos a partir da idade da razão (sete anos).

Ainda no período medieval, em honra à Nossa Senhora, as pessoas passaram a jejuar também aos sábados. Deste modo, o domingo, grande Dia do Senhor, era precedido por dois dias de penitência, em preparação à Páscoa semanal.

O jejum é uma tradição que surgiu na Idade Antiga e se consolidou na Idade Média, época em que pessoas humildes raramente provavam carne.

Na época, o povo vivia em terras alheias e a carne vermelha era consumida só em banquetes, nas cortes e nas residências dos nobres. Ela tornou-se, então, símbolo da gula, associado ao pecado. Dessa forma, a Igreja orientava os fiéis a comerem carne à vontade antes da quaresma – o que deu origem aos banquetes chamados “carne vale” e ao nosso carnaval – e depois se absterem de carne, durante os 40 dias que antecediam a Páscoa. O peixe não chegou a entrar na lista da abstinência porque sua presença era irrelevante nos banquetes medievais.

Como a Igreja tem seus altos e baixos, tal costume se arrefeceu com o tempo e, inclusive, os fiéis passaram a se questionar acerca da obrigatoriedade da abstinência na sexta e se a não observância desse preceito se constituía um pecado mortal ou leve. Diante disso, o Papa Inocente III, no século XIII, decretou que realmente é pecado grave. E no século XVII, o Papa Alexandre VII anatematizou quem dissesse que não era pecado grave.

Essa foi a disciplina até 1983, quando houve a promulgação do novo Código de Direito Canônico. No cânon 1251, lemos que é obrigatório fazer “abstinência de carne ou de outro alimento [...] em todas as sextas-feiras do ano, a não ser que coincidam com algum dia enumerado entre as solenidades”. Com relação a este cânon, a CNBB afirma que o fiel católico brasileiro pode substituir a abstinência de carne por uma obra de caridade, um ato de piedade ou ainda trocar a carne por um outro alimento.

A orientação atual é que os católicos se abstenham na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa. Pessoas enfermas, idosas e crianças são isentas dessa orientação, conforme o cânon 1252 do mesmo Código.

domingo, 25 de março de 2018

No Domingo de Ramos, Papa adverte sobre contradições na fé


CELEBRAÇÃO DO DOMINGO DE RAMOS
NA PAIXÃO DO SENHOR

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Praça São Pedro
XXXIII Jornada Mundial da Juventude
Domingo, 25 de março de 2018

Jesus entra em Jerusalém. A liturgia convidou-nos a intervir e participar na alegria e na festa do povo que é capaz de aclamar e louvar o seu Senhor; alegria que esmorece, dando lugar a um sabor amargo e doloroso depois que acabamos de ouvir a narração da Paixão. Nesta celebração, parecem cruzar-se histórias de alegria e sofrimento, de erros e sucessos que fazem parte da nossa vida diária como discípulos, porque consegue revelar sentimentos e contradições que hoje em dia, com frequência, aparecem também em nós, homens e mulheres deste tempo: capazes de amar muito... mas também de odiar (e muito!); capazes de sacrifícios heroicos mas também de saber «lavar-se as mãos» no momento oportuno; capazes de fidelidade, mas também de grandes abandonos e traições.

Vê-se claramente em toda a narração evangélica que, para alguns, a alegria suscitada por Jesus é motivo de fastídio e irritação.

Jesus entra na cidade rodeado pelos seus, rodeado por cânticos e gritos rumorosos. Podemos imaginar que são a voz do filho perdoado, a do leproso curado ou o balir da ovelha extraviada que ressoam, intensamente e todos juntos, nesta entrada. É o cântico do publicano e do impuro; é o grito da pessoa que vivia marginalizada da cidade. É o grito de homens e mulheres que O seguiram, porque experimentaram a sua compaixão à vista do sofrimento e miséria deles... É o cântico e a alegria espontânea de tantos marginalizados que, tocados por Jesus, podem gritar: «Bendito seja o que vem em nome do Senhor!» (Mc 11, 9). Como deixar de aclamar Aquele que lhes restituíra a dignidade e a esperança? É a alegria de tantos pecadores perdoados que reencontraram ousadia e esperança. E eles gritam. Rejubilam. É a alegria.

Estas aclamações de alegria aparecem incômodas e tornam-se absurdas e escandalosas para aqueles que se consideram justos e «fiéis» à lei e aos preceitos rituais [cf. R. Guardini, Il Signore (Brescia-Milão 2005), 344-345]. Uma alegria insuportável para quantos reprimiram a sensibilidade face à angústia, ao sofrimento e à miséria. Mas, destes, muitos pensam: «Olha que povo mal educado!» Uma alegria intolerável para quantos perderam a memória e se esqueceram das inúmeras oportunidades por eles usufruídas. Como é difícil, para quem procura justificar-se e salvar-se a si mesmo, compreender a alegria e a festa da misericórdia de Deus! Como é difícil, para quantos confiam apenas nas suas próprias forças e se sentem superiores aos outros, poder compartilhar esta alegria! (cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 94).

E daqui nasce o grito da pessoa a quem não treme a voz para bradar: «Crucifica-O!» (Mc 15, 13). Não é um grito espontâneo, mas grito pilotado, construído, que se forma com o desprezo, a calúnia, a emissão de testemunhos falsos. É o grito que nasce na passagem dos fatos à sua narração, nasce da narração. É a voz de quem manipula a realidade criando uma versão favorável a si próprio e não tem problemas em «tramar» os outros para ele mesmo se ver livre. Trata-se duma [falsa] narração. O grito de quem não tem escrúpulos em procurar os meios para reforçar a sua posição e silenciar as vozes dissonantes. É o grito que nasce de «maquilhar» a realidade, pintando-a de tal maneira que acabe por desfigurar o rosto de Jesus fazendo-O aparecer como um «malfeitor». É a voz de quem deseja defender a sua posição, desacreditando especialmente quem não se pode defender. É o grito produzido pelas «intrigas» da autossuficiência, do orgulho e da soberba, que proclama sem problemas: «crucifica-O, crucifica-O!»

E deste modo, no fim, silencia-se a festa do povo, destrói-se a esperança, matam-se os sonhos, suprime-se a alegria; deste modo, no fim, blinda-se o coração, resfria-se a caridade. É o grito do «salva-te a ti mesmo» que pretende adormecer a solidariedade, apagar os ideais, tornar insensível o olhar... O grito que pretende cancelar a compaixão, aquele «padecer com», a compaixão, que é o «ponto fraco» de Deus.

sexta-feira, 23 de março de 2018

5ª Pregação da Quaresma 2018: "Usemos as armas da luz - A pureza cristã".



"USEMOS AS ARMAS DA LUZ - A PUREZA CRISTÃ"

Em nosso comentário à parênese da Carta aos Romanos, chegamos ao ponto em que se diz:

"A noite vai adiantada, e o dia vem chegando. Despojemo-nos das obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz. Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de contendas, nada de ciúmes. Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites" (Rm 13,12-14).

Santo Agostinho, nas Confissões, nos diz o lugar que esta passagem teve em sua conversão. Ele já havia alcançado uma quase completa adesão à fé; as suas objeções haviam sido aniquiladas uma após a outra e a voz de Deus se tornara cada vez mais urgente. Mas havia uma coisa que o detinha: o medo de não ser capaz de viver casto. Ele vivia, como sabemos, com uma mulher sem ser casado.

Estava no jardim da casa que o abrigava, nas garras dessa luta interior e com lágrimas nos olhos, quando, de uma casa próxima, ouviu uma voz, como um menino ou menina, que repetia: "Tolle, lege!, Pegue, leia; pegue, leia!". Ele interpretou estas palavras como um convite de Deus e, tendo ao alcance das mãos o livro das Epístolas de São Paulo, abriu-o ao acaso, determinado a considerar como vontade de Deus a primeira frase em que seu olhar se fixasse.

A palavra em que seu olhar caiu foi, de fato, aquela da Carta aos Romanos que acabamos de mencionar. Uma luz de segurança brilhou dentro dele (lux securitatis), o que fez desaparecer toda a escuridão da incerteza. Ele sabia agora que, com a ajuda de Deus, poderia ser casto[1].

As coisas que o Apóstolo, naquela passagem, chama “obras das trevas” são as mesmas que em outros lugares define "desejos, ou obras, da carne" (cf. Rm 8,13; Gl 5,19) e as coisas que chama "armas da luz" são as mesmas que em outros lugares chama de "obras do Espírito", ou "frutos do Espírito" (cf. Gl 5, 22). Entre essas obras da carne é enfatizada, com dois termos (koite e aselgeia), a devassidão sexual, à qual se opõe a arma da luz que é a pureza.

O Apóstolo não se ocupa, no presente contexto, em falar desse aspecto da vida cristã; mas da lista dos vícios, colocada no início da Carta (cf. Rm 1, 26ss), sabemos quão importante era isso para os seus olhos. São Paulo estabelece uma ligação muito estreita entre pureza e santidade e entre pureza e Espírito Santo:

"Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação; que eviteis a impureza; que cada um de vós saiba possuir o seu corpo santa e honestamente, sem se deixar levar pelas paixões desregradas, como os pagãos que não conhecem a Deus; e que ninguém, nesta matéria, oprima nem defraude a seu irmão, porque o Senhor faz justiça de todas estas coisas, como já antes vo-lo temos dito e asseverado. Pois Deus não nos chamou para a impureza, mas para a santidade. Por conseguinte, desprezar estes preceitos é desprezar não a um homem, mas a Deus, que nos deu o seu Espírito Santo." (1 Ts 4, 3-8)

Por isso, procuremos reunir esta última "exortação" da palavra de Deus, aprofundando o fruto do Espírito que é a pureza.

1. As motivações cristãs da pureza

Na Carta aos Gálatas, São Paulo escreve: "O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio" (Gl 5, 22). O termo grego original, que traduzimos com "autodomínio” é enkrateia e tem uma gama muito ampla de significados; pode-se exercer, de fato, o domínio de si no comer, no falar, no controle da ira, etc.

Aqui, porém, como nos demais, quase sempre no Novo Testamento, isso significa o domínio de si em uma esfera bem precisa da pessoa, ou seja, no âmbito da sexualidade. Deduzimos isso do fato de que, pouco acima, elencando as “obras da carne”, o Apóstolo chama porneia , ou seja, impureza, aquilo que se opõe ao domínio de si (é o mesmo termo do qual deriva “pornografia”!).

Nas traduções modernas da Bíblia, o termo porneia é traduzido ora como prostituição, ora como impureza, ora como fornicação ou adultério, e ora como outros vocábulos. A ideia de fundo, contida no termo é, todavia, aquela de “vender-se”, de alienar o próprio corpo, portanto, de prostituir-se (pernemi, em grego, significa “me vendo”).

Usando este termo para indicar quase todas as manifestações de desordem sexual, a Bíblia diz que todo pecado de impureza é, em certo sentido, um prostituir-se, um vender-se.

Os termos usados ​​por São Paulo nos dizem, portanto, que são possíveis, com relação ao nosso próprio corpo e a própria sexualidade, duas atitudes opostas, uma atitude do Espírito e a outra obra da carne; uma, virtude e a outra vício.

A primeira atitude é conservar o controle de si e do próprio corpo; a segunda é, pelo contrário, vender ou alienar o próprio corpo, ou seja, dispor da sexualidade à vontade, para fins utilitaristas e diversos daqueles para os quais foi criada; um transformar o ato sexual em um ato venal, mesmo que o útil em questão não seja sempre constituído pelo dinheiro, como no caso da prostituição verdadeira e real, mas também pelo prazer egoísta como um fim em si mesmo.

Quando falamos da pureza e da impureza em simples listas de virtudes ou de vícios, sem aprofundar a matéria, a linguagem do Novo Testamento não é muito diferente da linguagem dos moralistas pagãos, por exemplo, dos Estoicos.

Até os moralistas pagãos exaltavam o domínio de si, mas somente em função da quietude interior, da impassividade (apatheia), do autodomínio; a pureza era governada, para eles, pelo princípio da "reta razão".

Na realidade, porém, dentro desses velhos vocabulários pagãos, existe um conteúdo totalmente novo que brota, como sempre, do querigma. Isso já é visível em nosso texto, onde a devassidão é contraposta, de modo muito significativo, como seu contrário, do “revestir-se do Senhor Jesus Cristo”.

Os primeiros cristãos foram capazes de compreender este conteúdo novo, porque isso era objeto específico de catequese em outros contextos.

Vamos agora examinar uma dessas catequeses específicas sobre pureza, para descobrir o verdadeiro conteúdo e as verdadeiras motivações cristãs dessa virtude que derivam do evento pascal de Cristo. Trata-se do texto de 1 Cor 6, 12-20. Parece que os Coríntios - talvez deturpando uma frase do Apóstolo - alegassem o princípio: "tudo me é lícito", para justificar também os pecados da impureza.

Na resposta do Apóstolo está contida uma motivação absolutamente nova da pureza que brota do mistério de Cristo. Não é lícito - diz ele – entregar-se à impureza (porneia), não é lícito vender-se, ou dispor de si à vontade, pelo simples fato de que nós não nos pertencemos mais, não somos nossos, mas de Cristo. Não se pode dispor do que não é nosso: "Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo [...] e que não pertenceis a vós mesmos?" (1 Cor 6, 15.19).

A motivação pagã é, em certo sentido, invertida; o valor supremo a ser salvaguardado não é mais o domínio de si, mas o “não domínio de si”. “O corpo não é para a impureza, mas para o Senhor!” (1 Cor 6, 13): a motivação última da pureza é, portanto, que “Jesus é o Senhor!”. A pureza cristã, em outras palavras, não consiste tanto em estabelecer o domínio da razão sobre os instintos, mas em estabelecer o domínio de Cristo sobre toda a pessoa, razão e instintos.

Esta motivação cristológica da pureza torna-se mais convincente com aquilo que São Paulo acrescenta no mesmo texto: não somos apenas genericamente “de” Cristo, como sua propriedade ou sua coisa; nós somos o próprio corpo de Cristo, os seus membros! Isso torna tudo imensamente mais delicado, porque significa que, ao cometer a impureza, eu prostituo o corpo de Cristo, realizo uma espécie de sacrilégio odioso; uso da "violência" ao corpo do Filho de Deus. Diz o Apóstolo: "Tomarei então os membros de Cristo e torná-los-ei membros de uma prostituta?" (1 Cor 6, 15).

A esta motivação cristológica, acrescenta-se em seguida aquela pneumatológica, isto é, relativa ao Espírito Santo: "Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós?" (1 Cor 6, 19). Abusar do próprio corpo é, portanto, profanar o templo de Deus; mas se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá (cf. 1 Cor 3, 17). Cometer impureza é "entristecer o Espírito Santo de Deus" (cf. Ef 4, 30).

Juntamente com as motivações cristológicas e pneumatológicas, o Apóstolo também menciona uma motivação escatológica, que se refere ao destino final do homem: "Deus, que ressuscitou o Senhor, também nos ressuscitará" (1 Cor 6, 14). O nosso corpo está destinado à ressurreição; está destinado a participar, um dia, na bem-aventurança e na glória da alma. A pureza cristã não se baseia no desprezo do corpo, mas, ao contrário, na grande estima de sua dignidade.

O Evangelho - diziam os Padres da Igreja ao combater os gnósticos - não prega a salvação "de" carne, mas a salvação "da" carne. Aqueles que consideram o corpo um "traje estrangeiro", destinado a ser abandonado aqui, não possuem os motivos que o cristão tem para mantê-lo imaculado.

O Apóstolo conclui a sua catequese sobre a pureza com o convite apaixonado: "Glorificai, pois, Deus no vosso corpo" (1 Cor 6, 20). O corpo humano é, portanto, para a glória de Deus e expressa essa glória quando a pessoa vive a própria sexualidade e toda a sua corporeidade em obediência amorosa à vontade de Deus, que é como dizer: em obediência ao próprio sentido da sexualidade, à sua natureza intrínseca e originária que não é aquela de vender-se, mas aquela de doar-se.

Tal glorificação de Deus através do seu próprio corpo não exige necessariamente a renúncia ao exercício da própria sexualidade. No capítulo imediatamente seguinte, isto é, em 1 Cor 7, São Paulo explica, de fato, que tal glorificação de Deus é expressa de duas maneiras e em dois carismas diferentes: ou através do casamento, ou através da virgindade. Glorifica a Deus em seu corpo a virgem e o celibatário, mas também o glorifica quem se casa, desde que todos vivam as exigências do próprio estado. 

quinta-feira, 22 de março de 2018

Semana Santa, a Semana Maior



A semana santa é para os cristãos a Semana maior. E diz-se assim não porque seja cronologicamente maior do que as outras, como se tivesse mais dias, mas porque nela os cristãos celebram com intensidade o mistério mais profundo e mais importante a partir do qual toda a realidade adquire sentido. Mais ainda: cada dia da semana santa, e muito especialmente o tríduo pascal, tem uma tal densidade que concentra em si todo o sentido da história.

1. Quinta-feira santa: a última Ceia e a agonia de Jesus no jardim da Oliveiras

Na quinta-feira santa, na celebração da Ceia do Senhor, Jesus interpreta o sentido da sua vida e da sua morte, como Corpo entregue e sangue derramado, donde surgem dois grandes sacramentos que serão um o memorial e o outro o serviço deste memorial, a Eucaristia e a Ordem: Estes dois sacramentos constituem a síntese de todos os dons que Deus jamais podia fazer ao homem, porque são o sinal do amor como entrega e como serviço até ao fim. Depois à noite, na vigília de oração, a Igreja contempla a agonia de Jesus no jardim das oliveiras e a prisão, com o sinal tremendo do beijo de Judas. O que se celebra na quinta-feira santa é o que há de mais profundo na existência humana…

2. Sexta-feira santa: amou-nos e entregou-se por nós, morrendo de amor

Na sexta-feira santa, é a condenação de Jesus pelo tribunal judaico, o Sinédrio, e pelos romanos, na pessoa do Procurador Romano, Pôncio Pilatos. A multidão prefere Barrabás e Pilatos lava as mãos, entregando o inocente. A Paixão de Jesus é para nós cristãos o centro e o ponto final para onde tende todo o sentido da história da humanidade, a hora que Deus pensou desde toda a eternidade, na qual manifestou a sua glória, que é o seu amor, que quer que o pecador se converta e viva; a glória de Deus que é que o homem viva, sendo que a vida do homem está na contemplação desta hora, de que tanto fala o Evangelho de S. João: Deus amou de tal modo o homem… levou até ao fim o seu amor por eles… Chegou a hora! Glorifica, Pai, o teu Nome!… São expressões que encontramos em S. João… 

quarta-feira, 21 de março de 2018

4ª Pregação da Quaresma 2018: "Cada qual seja submisso às autoridades constituídas".



"CADA QUAL SEJA SUBMISSO ÀS AUTORIDADES CONSTITUÍDAS”

 A obediência a Deus na vida cristã.

1. O fio do alto

 

Ao delinear os traços, ou as virtudes, que devem resplandecer na vida dos renascidos do Espírito, depois de ter falado da caridade e da humildade, São Paulo, no capítulo 13 da Carta aos Romanos, também fala da obediência:

"Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus" (Rm, 13,1 ss).

O restante da passagem, que fala da espada e dos tributos, bem como a comparação com outros textos do Novo Testamento sobre o mesmo assunto (cf. Tt 3, 1; 1 Pd 2, 13-15), indicam claramente que o Apóstolo não fala aqui da autoridade em geral e de qualquer autoridade, mas apenas da autoridade civil e estatal. São Paulo trata de um aspecto particular da obediência que era particularmente sentido quando ele escrevia e, talvez, também pela comunidade à qual ele escrevia.

Era o momento em que estava amadurecendo, dentro do judaísmo palestino, a revolta zelota contra Roma que terminará, alguns anos depois, com a destruição de Jerusalém. O cristianismo nasceu do judaísmo; muitos membros da comunidade cristã, também de Roma, eram judeus convertidos. O problema de obedecer ou não ao Estado romano colocava-se, indiretamente, também para os cristãos.

A Igreja apostólica estava diante de uma escolha decisiva. São Paulo, como também todo o Novo Testamento, resolve o problema à luz da atitude e das palavras de Jesus, especialmente da palavra sobre o tributo a César (cf. Mc 12, 17). O Reino pregado por Cristo "não é deste mundo", não é, isto é, de natureza nacional e política. Pode, por conseguinte, viver sob qualquer regime político, aceitando suas vantagens (como era a cidadania romana), mas também as suas leis. O problema é, em suma, resolvido no sentido de obediência ao Estado.

A obediência ao Estado é uma conseqüência e um aspecto de uma obediência muito mais importante e abrangente que o Apóstolo chama de "obediência ao Evangelho" (cf. Rm 10, 16). A severa advertência do Apóstolo mostra que pagar impostos e, em geral, cumprir o próprio dever com a sociedade não é apenas um dever civil, mas também um dever moral. Aqueles que o transgridem não só enfrentarão o juízo do Estado, mas também o de Deus.

Tudo isso é muito atual, mas nós não podemos limitar o discurso sobre a obediência somente a este aspecto de obediência ao Estado. São Paulo nos mostra o lugar onde se coloca o discurso cristão sobre a obediência, mas não nos diz, neste único texto, tudo o que se pode dizer sobre essa virtude. Ele traça aqui as consequências de princípios anteriores, na mesma Carta aos Romanos e em outros lugares, e devemos buscar esses princípios para fazer um discurso sobre a obediência que seja útil e atual para nós hoje.

Devemos ir à descoberta da obediência "essencial", a partir da qual surgem todas as obediências particulares, inclusive aquela às autoridades civis. De fato, há uma obediência que diz respeito a todos - superiores e súditos, religiosos e leigos - , que é a mais importante de todas, que governa e vivifica todas as outras, e esta obediência não é a obediência do homem ao homem, mas a obediência do homem a Deus.

Depois do Concílio Vaticano II, alguém escreveu: "Se há um problema de obediência hoje, não é o da docilidade direta ao Espírito Santo - ao qual, pelo contrário, todos mostram aderir-se voluntariamente - mas sim a submissão a uma hierarquia, a uma lei e a uma autoridade humanamente expressadas". Estou convencido de que este é o caso. Mas é precisamente para tornar possível de novo esta obediência concreta à lei e à autoridade visível que devemos recomeçar da obediência a Deus e ao Seu Espírito.

A obediência a Deus é como "o fio do alto” que mantém a esplêndida teia da aranha pendurada em uma sebe. Descendo do alto por meio do fio que ela própria produz, a aranha constrói a sua teia, perfeita e tensa em cada canto. No entanto, aquele fio do alto que foi usado para construir a teia não é cortado, uma vez interrompida a obra, mas permanece. Pelo contrário, é ele que, do centro, sustenta todo o enredo; sem ele tudo colapsa. Caso se rompa um dos fios laterais (uma vez testei isso), a aranha aparece e repara velozmente a sua teia, mas uma vez cortado aquele fio do alto ela vai embora: não há mais nada a se fazer.

Algo parecido acontece com o enredo das autoridades e das obediências em uma sociedade, em uma ordem religiosa e na Igreja. Cada um de nós vive em uma espessa teia de dependências: das autoridades civis, das eclesiásticas; nestas últimas, do superior local, do bispo, da Congregação do clero ou dos religiosos, do Papa. A obediência a Deus é o fio do alto: tudo é construído sobre ela, mas ela não pode ser esquecida nem mesmo após a conclusão da construção. Pelo contrário, tudo recai sobre si mesmo e não se entende mais por que é preciso obedecer. 

3ª Pregação da Quaresma 2018: "Não façam de si próprios uma opinião maior do que convém”.



"NÃO FAÇAM DE SI PRÓPRIOS
UMA OPINIÃO MAIOR DO QUE CONVÉM”

A exortação à caridade que recolhemos da boca do Apóstolo, na meditação anterior, está encerrada entre duas breves exortações à humildade que se recordam de forma proeminente entre si, de modo a formar uma espécie de marco para o discurso sobre a caridade. Lidas uma atrás da outra, omitindo o que está no meio, as duas exortações soam assim:

"Não façam de si próprios uma opinião maior do que convém, mas um conceito razoavelmente modesto [...] Não aspirem a coisas muito elevadas, mas curvem-se perante às humildes. Não tenham uma ideia muito alta de vocês mesmos” (Rm 12,3.16).

Não é uma questão de pequenas recomendações à moderação e à modéstia; através destas poucas palavras, a parênese apostólica nos abre diante de todo o vasto horizonte da humildade. Ao lado da caridade, São Paulo encontra na humildade o segundo valor fundamental, a segunda direção em que se deve trabalhar para renovar, no Espírito, a própria vida e construir a comunidade.

Nunca, como neste campo, as virtudes cristãs nos aparecem como um fazer próprios "os sentimentos que estavam em Cristo Jesus". Ele, recorda em outro lugar o Apóstolo, embora sendo de natureza divina, "se humilhou fazendo-se obediente até a morte" (Fl 2, 5-8) e aos próprios discípulos, ele disse: "Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração" (Mt 11, 29). Podemos falar da humildade de diferentes pontos de vista, como veremos que o Apóstolo fará, mas em seu significado mais profundo, a humildade é apenas a de Cristo. É verdadeiramente humilde quem se esforça para ter o coração de Cristo. 

2ª Pregação da Quaresma 2018: “Que vossa caridade não seja fingida"


“QUE VOSSA CARIDADE NÃO SEJA FINGIDA”

O amor cristão


1. Indo às fontes da santidade cristã

 

Juntamente com a chamada universal à santidade, o Concílio Vaticano II também deu indicações precisas sobre o que se entende por santidade, no que consiste. Na Lumen gentium se lê: 

"Jesus, mestre e modelo divino de toda a perfeição, pregou a santidade de vida, de que Ele é autor e consumador, a todos e a cada um dos seus discípulos, de qualquer condição: «sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito» (Mt. 5,48) (121). A todos enviou o Espírito Santo, que os move interiormente a amarem a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o espírito e com todas as forças (cfr. Mc. 12,30) e a amarem-se uns aos outros como Cristo os amou (cfr. Jo. 13,34; 15,12). Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados no Senhor Jesus, não por merecimento próprio mas pela vontade e graça de Deus, são feitos, pelo Batismo da fé, verdadeiramente filhos e participantes da natureza divina e, por conseguinte, realmente santos. É necessário, portanto, que, com o auxílio divino, conservem e aperfeiçoem, vivendo-a, esta santidade que receberam."(LG 40).

Tudo isso está resumido na fórmula: "a santidade é a união perfeita com Cristo" (LG, 50). Esta visão reflete a preocupação geral do Concílio de voltar às fontes bíblicas e patrísticas, superando, também neste campo, a postura escolástica dominante durante séculos. Agora é uma questão de tomar consciência dessa renovada visão de santidade e fazê-la passar na prática da Igreja, isto é, na pregação, na catequese, na formação espiritual dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa e - por que não? - também na visão teológica que inspira a prática da Congregação dos Santos[1].

Uma das principais diferenças entre a visão bíblica da santidade e a da escolástica reside no fato de que as virtudes não se fundamentam tanto na "reta razão" (a recta ratio aristotélica), mas no Querigma; ser santo não significa seguir a razão (muitas vezes, é o contrário!), mas seguir a Cristo. A santidade cristã é essencialmente cristológica: consiste na imitação de Cristo e, no seu cume - como diz o Concílio - na "perfeita união com Cristo".

A síntese bíblica mais completa e mais compacta de uma santidade fundada no Querigma é aquela descrita por São Paulo na parte parenética da Carta aos Romanos (capítulos 12-15). No início, o Apóstolo dá uma visão resumida do caminho de santificação do crente, do seu conteúdo essencial e do seu propósito:

"Eu vos exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual. Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito" (Rm 12,1-2).

Na última pregação, nós meditamos estes versículos. Nas próximas meditações, partindo do que se segue no texto paulino e completando-o com o que o Apóstolo diz em outro lugar sobre o mesmo argumento, tentaremos destacar os traços salientes da santidade, aqueles que hoje são chamados de "virtudes cristãs" e que o Novo Testamento define como os "frutos do Espírito", as "obras da luz", ou também "os sentimentos que estavam em Cristo Jesus" (Fl 2, 5).

A partir do capítulo 12 da Carta aos Romanos, todas as principais virtudes cristãs, ou frutos do Espírito, estão listadas: o serviço, a caridade, a humildade, a obediência, a pureza. Não como virtudes a serem cultivadas por si mesmo, mas como necessárias consequências da obra de Cristo e do batismo. A seção começa com uma conjunção que por si só vale um tratado: “Vos exorto, portanto...”. Aquele "portanto" significa que tudo o que o Apóstolo dirá desse momento em diante é a consequência do que escreveu nos capítulos precedentes sobre a fé em Cristo e sobre a obra do Espírito. Refletiremos sobre quatro destas virtudes: caridade, humildade, obediência e pureza, começando com a primeira. 

1ª Pregação da Quaresma 2018: "Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo” (Rm 12,2)


"NÃO VOS CONFORMEIS COM A MENTALIDADE DESTE MUNDO”
(RM 12,2)


"Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito." (Rom 12, 2).

Numa sociedade em que todos se sentem investidos da tarefa de transformar o mundo e a Igreja, cai esta palavra de Deus que nos convida a transformar-nos a nós mesmos. "Não vos conformeis com este mundo”: depois dessas palavras, esperávamos ouvir: "mas transformai-o!"; Em vez disso, se diz: “mas transformai-vos!”. Transformar, sim, o mundo, mas o mundo que está dentro de vós, antes de pensar em transformar o mundo que está fora de vós.

Será esta palavra de Deus, tirada da Carta aos Romanos, que nos introduzirá este ano no espírito da Quaresma. Como fazemos há alguns anos, dedicamos a primeira meditação a uma introdução geral à Quaresma, sem entrar no tema específico do programa, até mesmo por causa da ausência de parte do auditório envolvido nos Exercícios Espirituais.

1. Os cristãos e o mundo

Em primeiro lugar, vejamos como esse ideal de desapego do mundo foi compreendido e vivido desde o Evangelho até nossos dias. É sempre útil ter em conta experiências passadas se quisermos entender as necessidades do presente.

Nos evangelhos sinóticos, a palavra "mundo" (kosmos) é quase sempre compreendida num sentido moralmente neutro. Tomado no sentido espacial,  mundo indica a terra e o universo ("ide ao mundo inteiro"), tomado em um sentido temporal, indica o tempo ou o “século” (aion) presente. É com Paulo e ainda mais com João que a palavra "mundo", é preenchida com um valor moral e significa, na maioria das vezes, o mundo depois do pecado e sob o domínio de Satanás, “o deus deste mundo” (2 Cor 4, 4). Daí a exortação de Paulo da qual nós partimos e, aquela, quase idêntica, de João na sua Primeira Carta:

"Não ameis o mundo nem as coisas do mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai. Porque tudo o que há no mundo - a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida - não procede do Pai, mas do mundo."(1 Jo 2, 15-16).

Essas coisas não nos fazem perder de vista que o mundo em si mesmo, apesar de tudo, é e permanece, a boa realidade criada por Deus, que Deus ama e que veio para salvar, não para julgar: "Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3, 16).

A atitude em relação ao mundo que Jesus propõe a seus discípulos encerra-se em duas preposições: estar no mundo, mas não ser do mundo:  “Já não estou no mundo – diz dirigindo-se ao Pai – ; eles, pelo contrário, ainda estão no mundo [...]. Eles não são do mundo, como também eu não sou do mundo" (Jo 17,11. 16).

Nos primeiros três séculos, os discípulos estão bem cientes de sua posição única. A Carta a Diogneto, um escrito anônimo do final do segundo século, descreve dessa forma o sentimento que os cristãos tinham de si mesmos no mundo:

"Os cristãos não diferem do resto dos homens nem pelo território, nem pela língua, nem pelos hábitos de vida. De fato, não moram em cidades particulares, não usam de uma linguagem estranha, não levam um tipo de vida especial [...]. Moram tanto na cidade grega como na bárbara, como acontece, e apesar de iguais nas roupas, na comida e no resto da vida segundo os costumes do lugar, se propõem uma forma de vida maravilhosa e, segundo todos, paradoxal. Cada um mora na própria pátria, mas como forasteiros; participam de todas as atividades de bons cidadãos e aceitam todos os encargos como convidados passageiros. Toda terra estrangeira é uma pátria para eles, enquanto toda pátria é, para eles, terra estrangeira. Como todos, se casam e têm filhos, mas não expõem seus filhos. Eles têm em comum a mesa, mas não a cama. Vivem na carne, mas não segundo a carne"[1].

Façamos um breve resumo da história. Quando o cristianismo se torna tolerado e depois, em seguida, religião protegida e favorecida, a tensão entre o cristianismo e o mundo tende, inevitavelmente, a diminuir, porque o mundo se tornou, ou pelo menos, é considerado "um mundo cristão". Ocorre, assim, um duplo fenômeno. De uma parte, grupos de cristãos desejosos de permanecerem o sal da terra e não perderem o sabor, fogem, também fisicamente, do mundo e se retiram no deserto. Nasce o monaquismo sob a bandeira do monge Arsênio: “Fuge, tace, quiesce”, “Fuja, cale, viva retirado[2]”

Ao mesmo tempo, os pastores da Igreja e os espíritos mais iluminados tentam adaptar o ideal de desapego do mundo a todos os crentes, propondo uma fuga não-material, mas espiritual, do mundo. São Basílio no Oriente e Santo Agostinho no Ocidente conhecem o pensamento de Platão, especialmente na versão ascética que ele havia tomado com o discípulo Plotino. Neste ambiente cultural, estava vivo o ideal da fuga do mundo. Mas era uma fuga, por assim dizer, vertical, não horizontal, para cima, não para o deserto. Consiste em elevar-se por acima da multiplicidade das coisas materiais e das paixões humanas, para unir-se ao que é divino, incorruptível e eterno.

Os Padres da Igreja - os Capadócios em primeiro lugar - propõem uma ascética cristã que responde a essa exigência religiosa e adota a sua linguagem, sem, contudo, sacrificar os valores próprios do Evangelho. Para começar, a fuga do mundo inculcada por eles é trabalho da Graça mais do que esforço humano. O ato fundamental não está no final do caminho, mas no seu começo, no batismo. Portanto, não é reservada a poucos cultos, mas aberta a todos. Santo Ambrósio escreverá um breve tratado “Sobre a fuga do mundo”, dirigindo-o a todos os neófitos[3]. A separação do mundo que ele propõe é sobretudo afetiva: “A fuga – diz – não consiste no abandonar a terra, mas, permanecendo na terra, em observar a justiça e a sobriedade, em renunciar aos vícios e não ao uso dos alimentos” [4].

Este ideal de desapego e de fuga do mundo acompanhará, em formas diferentes, toda a história da espiritualidade cristã. Uma oração da liturgia resume-o no lema: "terrena despicere et amare caelestia", "desprezar as coisas da terra e amar as do céu".