O Juiz Iníquo: a Parábola da Viúva. Aquarela e guache de John Everett Millais, séc. XIX. |
A valente linhagem de
católicos antiliberais dos últimos séculos nos ensina que “não há maior
sectário do que um liberal”, já que ele é “um fanático da liberdade” somente
enquanto ela convém a suas utopias e interesses. Desde o jacobino Saint-Just a
bradar “nenhuma liberdade aos
inimigos da liberdade”, até Sir Karl Popper proclamando “em nome da tolerância, o direito de não
tolerar os intolerantes”, não poucos desses fanáticos fizeram
o involuntário favor de confirmar a justeza de seus adversários católicos.
O dia de hoje deverá
trazer mais uma dessas confirmações, vinda agora de uma das máximas
instituições políticas do país: o Supremo Tribunal Federal está para julgar a
criminalização da “homofobia”. Um dos efeitos da tragédia será transformar em “discurso de ódio” qualquer afirmação um pouco mais assertiva, um pouco
mais firme, da obviedade de que “homem é homem, mulher é mulher”, e fazer
passar por crime o ato de misericórdia espiritual de corrigir os que erram, e
erram grave (Catecismo de São Pio X, nº 941). Mais uma vez, o falso princípio da dignidade da pessoa humana levará à legalização do pecado e à criminalização da
misericórdia.
O STF é conhecido como
um verdadeiro templo do garantismo penal. Garantismo é a tendência de juristas que
reforçam a prevalência das garantias do
acusado sobre as exigências da ordem
pública e da contenção do banditismo. Opõem-se aos punitivistas, alcunha
derrisória que deram aos seus adversários doutrinais. Temas como regime de
cumprimento das penas, nulidades processuais, política de desencarceramento,
legítima defesa do policial e autos de resistência são alguns dos muitos que
dividem esses dois campos.
Como o topo da pirâmide
judiciária brasileira é marcadamente garantista, temos a peculiar situação de
um país assolado pela criminalidade onde algemar um preso em flagrante (mesmo
sem nenhuma violência) pode configurar um abuso de autoridade, ou onde o banho quente ― do qual algumas famílias pobres talvez ainda se privem, e do
qual graças a Deus são privados os acampamentistas de São Domingos Sávio ― é
considerado um direito inalienável do presidiário em razão de sua dignidade humana. E se
nossa Corte Suprema ainda não virou o apertado escore que assegura a execução
da pena após a condenação em segunda instância, é apenas por um equilíbrio instável e provisório, que aparentemente resultou de uma pressão dos nossos militares.
Mas é preciso fazer as
devidas distinções: nem toda garantia é expressão do garantismo. No bojo do
direito penal estão algumas regras que, nutridas pelas raízes longínquas do
direito romano, são verdadeiras conquistas civilizacionais. Um dos melhores
exemplos é o direito que tem o acusado de se defender, regra justa que a
própria Sabedoria Divina chancelou na Sagrada Escritura: “Parece ter razão o que expõe primeiro a
sua causa; vem depois a parte adversa, e então se examina a fundo a
questão” (Pr 18, 17).
Também assim a norma que
diz: “não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” ― nullum crimen, nulla poena sine
lege praevia. Embora a fórmula latina desse princípio seja recente,
suas origens estão na regra geral da irretroatividade das leis: “omnia constituta non praeteritis
calumniam faciunt, sed futuris regulam ponunt”, na expressão do
Código de Teodósio I (393 AD) ― a propósito, o imperador romano do Edito de
Tessalônica, que definiu a ortodoxia católica como religião oficial. E seria de
perguntar se a regra de aplicação pro
futuro da lei nova não está implícita nos artigos da questão
97 da Suma Teológica (IaIIae), em que Santo Tomás trata
da mudança das leis.
O triste espetáculo que,
salvo milagre, se desenha para a tarde de hoje (ou para um pouco depois, se
houver um pedido de vista) não é só mais um abjeto ataque à Lei Natural, mais
uma zombaria de homens que substituíram o Decálogo pela Declaração dos Direitos
do Homem, que trocaram a Cruz pela constituição (e alguns falam em “redenção
constitucional”). Para avançar a Revolução, os senhores ministros terão desta
vez de se desfazer não apenas dos preceitos da moral (a isto já estão
acostumados), mas até mesmo das garantias penais que se ufanam de resguardar.