As reações à reunião ministerial vazada pelo
juiz do Supremo deixaram patente, pela enésima vez, o golfo que separa no
Brasil a cabeça dos donos do poder e a experiência vivida pela classe-média e
pela arraia-miúda. Uma linha espessa segmenta o nosso corpo social, dividindo
culturalmente o topo da pirâmide, dois ou três por cento dos habitantes, se
tanto, do restante da população.
Esse fenômeno não chega a ser inédito, pelo
contrário, é comum às estruturas hierárquicas a existência de alguma variação
na concepção geral de mundo das classes. Nunca, porém, o hiato entre a
percepção geral dos fatos e a versão difundida no pequeno círculo das elites
nacionais se revelou tão grande como no Brasil atual. Os altos escalões da
República vivem hoje em Marte, num delírio louco, mais despegados do chão do
que estariam mil Marias Antonietas.
Basta percorrer os olhos rapidamente pelo
perfil social dos figurões da mídia e da política para constatar o fato.
Enquanto manifestavam pesar e um rechaço uniforme aos palavrões presidenciais
muito bem empregados para nomear a substância mesma de prefeitos e
governadores, as tias do zap e os caminhoneiros do país afora festejavam numa
exaltação jubilosa, felizes como pinto no lixo, lavados no corpo e na alma.
Um mesmo acontecimento, duas versões
antagônicas. Isso não ocorre somente por “diferenças políticas”. As adesões
partidárias são somente a parte visível de uma separação de fundo, uma cisão
irreconciliável, resultado da coexistência de duas verdadeiras culturas, no
sentido antropológico do termo — duas moralidades, dois universos de crenças,
premissas, símbolos, valores, regras de conduta, modos de falar etc – em suma,
dois sistemas completamente distintos de interpretação dos fatos e de ação na
realidade.
A cultura da elite, dos brasileiros que, por
burrice, masoquismo, hábito vicioso, orgulho ou teimosia, ainda insistem em
consumir a mídia tradicional, é um circuito de informação fechado e
auto-referente. Essa gente vive afastada mentalmente e fisicamente das outras
classes, encastelada em prédios e condomínios fechados, hipnotizada pelas
próprias palavras e enfeitiçada pela competição dos seus hábitos de consumo.
Muito embora, sob o prisma sociológico, a
constituição dessa elite possa em muito variar, sendo ela composta de
burocratas, banqueiros, grandes empresários e industriais, cardeais, generais,
profissionais liberais, jornalistas, editores, artistas, sindicalistas e
professores universitários; do ponto de vista espiritual, são todos
inescapavelmente burgueses, isto é, seres pequeninos nos quais, como diz
Berdiaev, “a sede de poder, de bem-estar e de riqueza triunfa sobre o anseio de
santidade e genialidade”, ou, na definição mais ácida e precisa de Leon Bloy, é
uma gente “que não faz qualquer uso da faculdade de pensar, e que vive sem
jamais, sequer por um dia, ter sido solicitad[a] pela necessidade de
compreender o que quer que seja”.
O juízo moral dessas pessoas é cem por cento
baseado em aparência. A preocupação deles é frívola. São blogueirinhas e reis
do camarote. Ocupam-se somente de intrigas, roupas de grife, restaurantes e viagens.
Suas conversas em mesa de jantar não passam de um eufórico despejo mútuo de
informações sobre consumo de luxo. Falam todos ao mesmo tempo e, no fundo,
ninguém ouve propriamente o que o interlocutor diz. É só pavoneio e vazão
emocional.