É evidente que não se pode pedir ao documento
preparatório do Sínodo Pan-Amazônico uma história da evangelização da Amazônia,
porém o breve capítulo dedicado à “memória histórica eclesial” é muito
insuficiente. Não é verdade o que afirma quando se escreve que “até o século
XX, as vozes em defesa dos povos indígenas eram frágeis, ainda que não
ausentes”, fortalecendo-se somente depois do Concílio Vaticano II.
A Igreja não tem nenhuma dificuldade em
confessar seu “mea culpa” ante os comprometimentos que ofuscaram a
evangelização da América Latina com a conquista e colonização do Novo Mundo e a
opressão e exploração dos povos indígenas. No entanto, ninguém pode negar, por
respeito à verdade histórica, que desde a primeiríssima colonização do Novo
Mundo foi uma legião de missionários quem empreendeu a primeira grande batalha
profética pela justiça em defesa e proteção dos indígenas. A cruz se tornou uma
autocrítica radical da espada. Os próprios bispos exibiam como lema:
“defensores dos índios”. Houve mártires, violências sofridas, todo tipo de
atentados e controvérsias provocadas pelos “encomenderos”, colonos e
bandeirantes. Não houve até hoje na história da Igreja na América Latina um
combate evangélico e profético de tal magnitude como o dos primeiros tempos
fundadores.
No século XVII a Igreja começou a penetrar na
Amazônia. E no dia 22 de abril de 1639, aniversário do descobrimento do Brasil,
o Papa Urbano VIII promulgou um Breve, Commissum Nobis, proibindo, sob pena de
excomunhão, “aprisionar […] os índios, vendê-los, comprá-los, separá-los de
suas mulheres e filhos, privá-los de qualquer modo da liberdade, retê-los na
servidão […]”. Este Breve papal –que está em perfeita continuidade com a bula
Sublimis Deus do papa Paulo III em 1537, que foi a primeira e muito dura
condenação papal da escravidão dos índios e afirmação do respeito devido à sua
dignidade e a seus bens, provocou revoltas lideradas pelas Câmaras Municipais
em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro.
A partir de 1600 a presença da Igreja na
Amazônia, evangelizando e defendendo os índios, foi fundamental. Numerosas
aldeias e missões religiosas, principalmente por obra dos jesuítas, surgiram na
Amazônia. Destacam-se a respeito as fundações de Cametá na foz do Tocantins;
Airão, Carvoeiro, Moura e Barcelos no Rio Negro; Santarém na foz do Tapajós;
Faro no rio Nhamundá; Borba no rio Madeira; Tefé, São Paulo de Olivença e Coari
no Solimões; e no Amazonas, Itacoatiara e Silves.
Como pode-se dizer que eram vozes “frágeis” as
da Companhia de Jesus e sua cadeia de “reduções” indígenas, desde o Alto
Uruguai e Paraná, em combate permanente contra os bandeirantes, escravistas de
índios, às de Moxos e Chiquitos na floresta boliviana e às do oriente peruano e
equatoriano, até os “llanos orientales” da Colômbia (prefigurando o que seria a
rodovia da floresta)?
Depois caberia agregar todo o trabalho de
penetração da Amazônia dos Salesianos a partir do oriente peruano e
equatoriano, criando escolas de arte e ofícios para os indígenas, assim como de
outras congregações religiosas.
Os informes e escritos de Mons. Giovanni
Genocchi, enviado como visitador apostólico à América Latina (1911-1913) e que
visitou as terras amazônicas, são de uma dureza impressionante quando denunciam
em repetidas ocasiões a escravidão que de fato sofrem os indígenas sob a caça
dos seringueiros durante o «boom» da produção de borracha, assim como as
dificuldades e adversidades que sofrem os responsáveis pelas primeiras
prefeituras apostólicas e missões nas regiões amazônicas dependentes de
“Propaganda Fidei”, cuja proteção dos indígenas é vista pelos colonos como
“fumo negli occhi”. Este grave estado de coisas seria retomado e condenado com
muita força por Pio X na Encíclica missionária dirigida à América Latina:
Lacrimabili statu Indorum, ponto de referência para os sucessivos pontificados,
se se tem em conta as frequentes citações desse documento nas instruções
comunicadas aos Representantes Pontifícios na América Latina. Este documento denunciava
os abusos e violências que se cometiam contra os indígenas e apontava o dever
de defender sua vida, liberdade e propriedade, através do desenvolvimento das
missões católicas e da evangelização, junto a todas as iniciativas idôneas para
a promoção humana dos indígenas.
É certo que depois no Concílio Vaticano II e
sobretudo no caminho sinodal de Medellín a Aparecida despertou-se com novas
luzes e vigor profético essa tradição de defesa e custódia dos indígenas, que
nas décadas imediatamente anteriores parecia apagada (mas, por favor, que não
se defina o documento de Puebla como o documento da “participação e comunidades
de base”, pois ele teve uma abrangência muito maior e rica!).
Fazer memória verdadeira da presença e missão
da Igreja na Amazônia durante os últimos séculos é muito importante para
aprender da história os acertos e os erros da missão e para deixar-se contagiar
pela doação total – inclusive até ao martírio – de muitos irmãos e irmãs
nossos que deram suas vidas por Cristo e por amor aos amazônicos.