segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Vencendo a Serpente



Obedecer significa escutar de verdade. Mas quem pensa bastar-se a si mesmo jamais escuta. Está destinado a morrer na solidão. A serpente introduziu o veneno da morte na história humana. E o veneno é este: "não deves obediência a ninguém, és deus. A felicidade consiste em fazeres de tua vida o que quiseres. Não haverá limites para teus desejos, estarás livre do jugo de um Deus que não admite rivais". E assim a história humana tomou rumos inesperados: uma incessante luta pelo poder e o desejo insaciável de vestir a própria nudez com as vestes da riqueza e de preencher a solidão com a ruidosa orgia dos prazeres que jamais umedecem a aridez do deserto dos exilados. A serpente que se interpôs no caminho do ser humano a quem Deus estava oferecendo o paraiso recebe na Bíblia o nome de Satanás, um vocábulo de origem hebraica que significa adversário, acusador, obstáculo. Foi nesse sentido que Jesus advertiu Pedro: "vai para trás de mim, satanás."(Mc 8,33). Mas o adversário por excelência de Deus e do homem, o personagem que criou o vazio do mal e o introduziu em nossa história, o chefe dos anjos rebeldes, concentra em si tudo o que pode significar ser adversário, inimigo, acusador, obstáculo. Satanás é chamado também de diabo, palavra de origem grega com a qual a tradução dos Setenta do Antigo testamento traduziu a palavra hebraica Satã.

"Diábolos" significa caluniador, aquele que semeia a divisào através da mentira. No Novo Testamento sua figura aparece e parece poderosa na narrativa das tentaçòes de Cristo depois dos quarenta dias de jejum e oração no deserto. Peço ao leitor ler em Mateus e em Lucas essa narartiva (Lc 4,1-13; Mt 4,1-11). A narartiva de Lucas termina assim: "Terminadas todas as tentações, o diabo afastou-se dele até o tempo oportuno". Seu retorno se dará na paixão de Jesus (Lc 22,3). Sem entrar em detalhes exegéticos, fica evidente que a missão de Jesus é confrontar-se com as tentações que continuamente ameaçam a humanidade.
Ele as vencerá pela Cruz. Diante das três tentações Jesus responde: a) "Não se vive somente de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus"; b) "Não porás à prova o Senhor teu Deus"; c) "Afasta-te, Stanás, pois está escrito; "Adorarás o Senhor teu Deus  e só a Ele prestarás culto"(cf Mt 4,1-11). Não resisto ao impulso de colocar o texto da terceira tentação. Assim: "O diabo o levou ainda para uma montanha muito alta. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua riqueza, e lhe disse: 'Eu te darei tudo isso, se caíres de joelhos para me adorar. Jesus lhe disse: 'Vai embora, Satanás, pois está escrito: 'Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a ele prestarás culto'. Por fim, o diabo o deixou, e os anjos se aproximaram para servi-lo."( Mt 4,8-11). Eis o pecado radical, uma verdadeira monstruosidade: o desejo de ser adorado, a tentativa de destronar Deus. Foi o mesmo veneno destilado no paraíso: "sereis como Deuses". Satanás não é um anti-deus, apenas uma miserável e abjeta criatura, que, tomada por ódio eterno, tenta arrastar para a destruição o ser humano. Todos os que o seguem, os anjos decaídos - demônios -  e os seres humanos na terra, são também autores da desgraça que perpassa a história. No livro do Apocalipse, através de imagens  muito fortes,  é descrita a guerra  que a serpente antiga, agora descrita como um dragão de sete cabeças, move contra a Mulher, que "deu à luz um Filho, um menino, aquele que deve reger todas as nações pagãs com cetro de ferro". A proteção dada por Deus à Mulher enfurece o Dragão : "Este, então, se irritou contra a Mulher e foi fazer guerra ao resto de sua descendência, aos que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus". (cf. Ap 12). A descrição do Apocalipse tem diante dos olhos a perseguição movida pelo Império Romano aos cristãos. Ao fazê-lo projeta luz sobre o mistério do mal que perpassa toda a história. O ser humano tem em Cristo a salvação, a real possibilidade construir uma história na justiça e no amor, para, enfim, participar da plenitude da vida para além da história.Na sua liberdade, entretanto, o ser humano pode escolher o caminho insinuado permanentemente pela serpente: "serás como um deus", acima do bem e do mal, absolutamente livre para quaisquer escolhas. Interessante , o caminho que o Verbo Eterno, o Filho de Deus, fez para chegar até nós foi o caminho inverso: "Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até  a morte, e morte de cruz"(Flp 2,6-8).
Em outra passagem São Paulo afirma: "Aquele que não conheceu o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornássemos justiça de Deus"( II Cor 5,21). Ressuscitado, Cristo é nossa salvação. Mas é preciso fazer com Ele o caminho da obediência: escutar de verdade o Pai.

Dom Eduardo Benes
Arcebispo de Sorocaba (SP)

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