O “cancelamento cultural” ou “perseguição educada”, como chama o Papa Francisco, é grande causa de escândalo para muitos cristãos na atualidade. Ouvimos e lemos continuamente posicionamentos de líderes e influenciadores cristãos denunciando essa realidade. A bem da verdade, temos que reconhecer que sofremos, nas democracias ocidentais, muito menos que os cristãos que são perseguidos e martirizados em outras partes do mundo. Não deixa de ser estranho, contudo, que uma sociedade que foi construída a partir de valores cristãos, agora pareça se voltar contra eles. Muitos tentam reduzir o problema a um efeito da propaganda ideológica. Esse é um dos fatores, mas não podemos aceitar que a força da mentira seja maior do que aquela da verdade. Outros fatores devem estar envolvidos nesse cancelamento cultural do qual os cristãos são vítimas na sociedade atual.
A teoria do “bode expiatório”
René Girard (1923-2015), acadêmico consagrado e católico polêmico, formulou a teoria do “bode expiatório”, que pode, ao menos em parte, explicar o processo de cancelamento cultural dos cristãos no Ocidente atual. Em linhas gerais, Girard propõe que os grupos sociais, para se manterem unidos, a despeito das diferenças e oposições internas entre seus membros, precisam de um “bode expiatório”, uma pessoa ou algumas pessoas, com características diferentes daquelas do grupo social, que são estigmatizadas e excluídas. Cria-se assim uma maioria de iguais, considerados bons e sadios, que devem se manter unidos, em contraposição aos diferentes, considerados maus e corruptos, que devem ser afastados e condenados.
Esses diferentes devem ter características físicas ou culturais que os distinguem dos demais, facilitando sua identificação; e, nos casos mais emblemáticos, terem praticado algum gesto reprovável, que legitime sua condenação. Importante notar que as características distintas podem ser positivas ou negativas, o bode expiatório pode ser considerado assustadoramente feio ou perigosamente bonito, como vemos entre adolescentes vítimas de bullying; e a exclusão pode se basear num dado real, como acontecia com os leprosos no tempo de Jesus, ou ser um preconceito totalmente infundado, como aquele contra os cristãos na Roma Antiga. Não é a culpa dos segregados, mas a necessidade dos segregacionistas que causa a condenação.
Minorias frequentemente se tornam “bodes expiatórios” de uma sociedade. Os migrantes e refugiados vindos dos países pobres frequentemente são apontados como causa do desemprego em nações ricas, apesar de poucas vezes disputarem empregos com a população local – geralmente trabalham em empregos de baixa qualificação que não interessam aos trabalhadores nativos do país. Os judeus foram, de fato, segregados pela sociedade cristã, sob a alegação de terem matado Jesus, mas sabemos que Cristo morreu por toda a humanidade e sua condenação teria sido sancionada por qualquer multidão naquela situação, fosse qual fosse sua etnia.