SENDO
CRISTO A LUZ DOS POVOS
Uma releitura cristológica da Lumen Gentium
1. Uma
eclesiologia cristológica
A ocasião propícia do quinquagésimo aniversário da
conclusão do Concílio Vaticano II sugeriu-me a ideia de dedicar as três
meditações do Advento a uma revisitação do evento conciliar, nos seus conteúdos
principais. Especificamente, eu gostaria de fazer algumas reflexões sobre cada
um dos principais documentos do Concílio, que são quatro constituições: sobre a
Igreja (Lumen Gentium), sobre a Liturgia (Sacrosanctum Concilium), sobre a
Palavra de Deus (Dei Verbum) e sobre a Igreja no mundo (Gaudium et Spes).
O que me deu coragem para abordar, em tão pouco
tempo, temas tão amplos e debatidos foi uma constatação: sobre o concílio
tem-se falado e escrito muito, mas quase sempre pelas suas implicações
doutrinais e pastorais; poucas vezes por causa dos seus conteúdos
especificamente espirituais. Portanto, eu gostaria de focar exclusivamente
nesses, procurando ver o que o Concílio ainda tem a dizer-nos como textos de
espiritualidade, úteis para a edificação da fé.
Vamos começar dedicando as três meditações de
Advento à Lumen Gentium, deixando os demais para a próxima quaresma, se Deus
quiser. Os três temas da Constituição sobre os quais eu gostaria de refletir
são: a Igreja corpo e esposa de Cristo, a chamada universal à santidade e a
doutrina sobre a Virgem Maria.
A inspiração para esta primeira meditação sobre a
Igreja surgiu relendo, por acaso, o começo da constituição no texto latino. Diz
assim: “Lumen gentium cum sit Christus...”, “Sendo Cristo a luz dos povos...”.
Devo confessar que, para minha confusão, nunca tinha prestado atenção nas
implicações enormes contidas neste começo. Ter pego como título da constituição
só a primeira parte da frase me fez pensar (e acho que não só a mim) que o
título “luz dos povos” fizesse referência à Igreja, enquanto que ele, como se
pode ver, refere-se a Cristo. É o título com o qual o velho Simão saudou o
Messias criança, levado por Maria e José ao templo: “Luz dos povos e glória do
seu povo Israel” (Lc 2, 32).
Aquela frase inicial contém a chave para
interpretar toda a eclesiologia do Vaticano II. Essa é uma eclesiologia
cristológica, e, portanto, espiritual e mística, antes que social e
institucional. Não se trata, no entanto, de uma relação entre antes e depois,
entre mais e menos; mas sim de uma relação semelhante à que existe entre o
corpo e a alma que lhe dá vida. Ambos são inseparáveis e necessários um para
o outro. É necessário colocar novamente em primeiro lugar esta dimensão
cristológica da eclesiologia do Concílio, também em vista de uma evangelização
mais eficaz. De fato, não se aceita a Cristo por amor a Igreja, mas aceita-se a
Igreja por amor a Cristo. Até mesmo uma Igreja desfigurada pelo pecado de
muitos de seus representantes.
Desde já devo dizer que, certamente, eu não sou o
primeiro a destacar a dimensão essencialmente cristológica da eclesiologia do
Vaticano II. Relendo os muitos escritos do então cardeal Ratzinger sobre a
Igreja, percebi com quanta insistência ele tentou manter viva esta dimensão da
doutrina sobre a Igreja da Lumen Gentium. A mesma chamada às implicações
doutrinárias da frase de abertura: "Lumen gentium cum sit
Christus...", "sendo Cristo a luz dos povos”, já está em seus
escritos, seguida da afirmação: "Se alguém quiser compreender corretamente
o Vaticano II, deve sempre começar de novo desta frase inicial"[1].
Devemos assinalar de imediato, para evitar
mal-entendidos: essa visão espiritual e interior da Igreja nunca foi negada por
ninguém; mas, como sempre acontece nas coisas humanas, o novo corre o risco de
ofuscar o antigo, o atual faz perder de vista o eterno e o urgente toma o lugar
do importante. Assim aconteceu que as ideias de comunhão eclesial e de povo de
Deus foram desenvolvidas, por vezes, só no sentido horizontal e sociológico, ou
seja, tendo como pano de fundo a oposição entre koinonia e hierarquia,
insistindo mais na comunhão dos membros da Igreja entre si do que na comunhão
de todos os membros com Cristo.
Isso era, talvez, uma prioridade do momento e um
ganho; como tal São João Paulo II o acolhe e o valoriza na sua carta apostólica
Novo millennio ineunte[2]. Mas cinquenta anos após o fim do Concílio, talvez
seja útil procurar restabelecer o equilíbrio entre esta visão da Igreja
condicionada pelos debates do momento, e a visão espiritual e mistérica do Novo
Testamento e dos Padres da Igreja. A pergunta fundamental não é "O que é a
Igreja", mas é "quem é a Igreja[3]" e é a partir dessa pergunta
que eu gostaria de deixar-me guiar nesta meditação.