quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Como a Igreja acompanha quem sente atração por pessoas do mesmo sexo?


Embora se fale muito, nos últimos anos, sobre a homossexualidade, o conhecimento sobre o tema ainda é muito aproximativo e cheio de estereótipos. Entre as muitas pessoas que constatam este panorama deficiente de entendimento sério está o padre norte-americano John F. Harvey. Sim, um padre; um sacerdote dessa Igreja tão tachada de retrógrada e obscurantista no tocante à moral sexual.

Durante mais de 50 anos, ele cuidou de pessoas que queriam viver a fé católica sem que a sua atração sexual fosse um obstáculo. Com paciência e compreensão, o pe. Harvey as ajudou a vislumbrar com mais clareza um caminho de serenidade à luz da doutrina.

Desde 1980 ele tem trabalhado como diretor da iniciativa de apostolado “Courage”, uma associação fundada pelo cardeal Terence J. Cooke naquele mesmo ano, em Nova Iorque, e hoje presente em muitas dioceses de todo o mundo, a fim de oferecer cuidado pastoral às pessoas homossexuais. Algumas reflexões do pe. John, bem como orientações pastorais concretas, foram recopiladas no livro “Truthabout Homosexuality: The Cry of the Faithful” [“A verdade sobre a homossexualidade: o clamor dos fiéis”, em livre tradução do título – a obra ainda não está disponível em português].

O arcebispo de Bolonha, dom Matteo Zuppi, escreve no prefácio: “A Igreja não levanta muros nem cria categorias de pessoas em função da sua orientação sexual, porque, antes de terem uma atração sexual particular, elas são pessoas (…) O chamado à santidade é para todos”.

O foco mais na pessoa do que na sua tendência homossexual é a premissa. Por isso, desde o princípio, o pe. Harvey também corrige a terminologia que normalmente se usa: para ele, é mais esclarecedor falar de “pessoas com atração pelo mesmo sexo” do que usar a palavra “homossexuais”, já que essa palavra envolve “o risco, pelo menos implícito, de considerar a homossexualidade como a característica essencial da pessoa”, quando, na verdade, “uma pessoa é muito mais que um conjunto de inclinações sexuais”. Além disso, “as considerações sobre a atração por pessoas do mesmo sexo se tornam mais confusas quando pensamos nos ‘homossexuais’ como uma categoria à parte entre os seres humanos”.

O pe. Harvey observa que, “em geral, as pessoas ‘heterossexuais’ não compreendem quem sente uma atração persistente pelo mesmo sexo”: ele mesmo precisou de “anos para entender a natureza desta condição”, mas enfrenta com clareza alguns pontos delicados.

Ele diz, por exemplo, que, no caso dos adolescentes, não se pode falar de “homossexualidade”, que é uma condição adulta, e que é preciso ter muita cautela quanto à atitude sexual ambígua típica da idade, sem a confundir com uma tendência homossexual.

A própria atração por pessoas do mesmo sexo tem matizes diferentes em cada pessoa. Para começar, é uma tendência, não um pecado em si mesma; no entanto, não justifica moralmente a prática dos atos homossexuais. 

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A vocação de Santo Antão


Depois da morte de seus pais, tendo ficado com uma irmã ainda pequena, Antão, que tinha uns dezoito ou vinte anos, tomou conta da casa e da irmã.

Não tinham passado ainda seis meses do falecimento de seus pais, quando um dia em que se dirigia, segundo o seu costume, para a igreja, ia refletindo sobre a razão que levara os Apóstolos a abandonar tudo para seguir o Salvador e por que motivo também aqueles homens de que se fala nos Atos dos Apóstolos vendiam tudo o que possuíam e depunham o preço aos pés dos Apóstolos para que o distribuíssem aos pobres; e ia pensando na grande e maravilhosa esperança que lhes estava reservada nos Céus.

Meditando nestas coisas, entrou na igreja mesmo no momento em que se lia o Evangelho e ouviu o que o Senhor disse ao jovem rico: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres. Depois vem e segue-me, e terás um tesouro nos Céus.

Então, considerando que a recordação dos santos exemplos lhe tinha sido enviada por Deus e que aquelas palavras eram dirigidas pessoalmente para ele, logo que voltou da Igreja, Antão distribuiu pelos habitantes da região as propriedades que herdara da família (possuía trezentos campos muito férteis e amenos), para que aquelas não fossem motivo de inquietação para si e para a sua irmã. Vendeu também todos os móveis e distribuiu pelos pobres a grande quantia que assim obtivera, conservando apenas uma pequena parte por causa da irmã.

Tendo entrado outra vez na igreja, ouviu o Senhor dizer no Evangelho: Não vos inquieteis com o dia de amanhã. Não conseguiu permanecer ali mais tempo. Saiu, e até aquele pouco que guardara distribuiu pelos pobres. Confiou a irmã a uma comunidade de virgens consagradas que conhecia e considerava fiéis, para que fosse educada no Pártenon. Quanto a ele, livre já de cuidados alheios, entregou-se a uma vida de ascese e rigorosa mortificação nas imediações da sua casa.

Trabalhava com as suas mãos, pois ouvira a palavra da Escritura: Quem não quiser trabalhar não coma. Do fruto do seu trabalho destinava uma parte para comprar o pão que comia; o resto distribuía-o pelos pobres.

Rezava constantemente, pois aprendera que é preciso rezar interiormente sem cessar; era tão atento à leitura que nada lhe esquecia do que tinha lido na Escritura: tudo retinha de tal maneira que a sua memória acabou por substituir o livro.

Todos os habitantes do lugar e os homens honrados que tratavam com ele, vendo um homem assim, chamavam-lhe amigo de Deus; e uns amavam-no como filho, outros como irmão.



Da Vida de Santo Antão, escrita por Santo Atanásio, bispo (Cap. 2-4: PG, 26, 842-846) (Sec. IV)

Ele nos deu tudo; de nós espera tudo!


"Cristo não entrou num santuário feito por mão humana, imagem do verdadeiro, mas no próprio Céu, a fim de comparecer, agora, na presença de Deus, em nosso favor. E não foi para Se oferecer a Si muitas vezes, como o sumo sacerdote que, cada ano, entra no Santuário com sangue alheio. Porque, se assim fosse, deveria ter sofrido muitas vezes, desde a fundação do mundo. Mas foi agora, na plenitude dos tempos, que, uma vez por todas, Ele Se manifestou para destruir o pecado pelo sacrifício de Si mesmo. O destino de todo homem é morrer uma só vez e, depois, vem o julgamento. Do mesmo modo, também Cristo, oferecido uma vez por todas, para tirar os pecados da multidão, aparecerá uma segunda vez, fora do pecado, para salvar aqueles que O esperam" (Hb 9,24-28).


Neste texto, o Autor sagrado imagina o santuário verdadeiro, isto é, o Céu, do qual o Santo dos Santos do Templo de Jerusalém seria somente uma imagem. No Dia do Perdão, o Sumo Sacerdote entrava no Santo dos Santos para oferecer o sangue de um bode pelos pecados de Israel.

Cristo é o verdadeiro nosso Sumo Sacerdote: Ele não entrou no Santo dos Santos do Templo de Jerusalém, mas no próprio Céu, diante do Senhor Deus. E entrou para oferecer o Seu próprio sangue, isto é, Sua própria vida de Filho eterno feito homem! Esta ideia é importante e esta imagem é preciosa: o Cristo imolado e ressuscitado entrando na Glória do Pai, como Cordeiro vivo, vitorioso e, ao mesmo tempo, em estado de gloriosa e terna imolação (cf. Ap 5,6), para eternamente apresentar Seu sacrifício em nosso favor diante de Deus.


O nosso Senhor não é somente o Sacerdote eterno, mas também o Cordeiro eterno, que oferece o Seu sacrifício eternamente no próprio altar da Sua natureza humana imolada. Sua entrega sacrifical na cruz até a morte e Sua ressurreição estão e estarão para sempre diante do Pai. Jesus, o vitorioso, é também Aquele que trará para sempre as marcas da paixão.

Por isso mesmo o Seu sacrifício é irrepetível: além de ser o sacrifício perfeito e pleno do Filho eterno do Pai feito homem, este sacrifício não passa, pois tornou-se eterno no Céu, na tenda não feita por mãos humanas, onde Cristo Se oferece eternamente!

Aqui podemos compreender como a Missa é o sacrifício de Cristo: em cada Eucaristia o Cristo imolado e glorioso, sacerdote e vítima, coloca-Se no Altar exatamente como está no Céu (com a diferença de estar entre nós debaixo do véu do sacramento, nas aparências de pão que não é mais pão e vinho que não é mais vinho), de modo que nos é dado neste mundo participar realmente, verdadeiramente, da oferta sacrifical que o Cristo faz de Si ao Pai na Glória eterna!

Eis por que o sacrifício oferecido uma vez por todas no Calvário, que agora se encontra eternamente no Céu, torna-se realmente presente nos nossos altares! É-nos dado participar ainda na terra das coisas do Céu!
 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Homem ataca imagens religiosas na Catedral de Niterói


A Arquidiocese de Niterói (RJ) lamentou o ataque perpetrado por um homem contra imagens religiosas da Catedral de São João Batista, no centro da cidade.

Em nota, a Arquidiocese informou que o fato aconteceu na tarde de sábado, 14 de janeiro, quando um homem identificado como Yannes José, “que alegou não ter religião, atacou as imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Cabeças”.

Na ocasião, funcionários da Catedral e um diácono tentaram imobilizar o agressor e, em seguida, a polícia foi chamada, levando o homem para a delegacia.

O comunicado explica ainda que, “segundo informações da polícia, o homem tem passagem por clínica psiquiátrica”. Dessa maneira, “após apresentação na delegacia, ele foi liberado, por tratar-se de uma pessoa com problemas mentais”.

“Manifestamos nossa indignação por tal fato, que revela o desrespeito para com o sagrado e uma crise profunda de valores, ao mesmo tempo em que o colocamos em oração”, conclui a nota da Arquidiocese de Niterói.

Confira a nota na íntegra:

Homilética: 3º Domingo do Tempo Comum - Ano A: "Discipulado: esforço contínuo para configurar-se a Jesus de Nazaré"


Jesus, depois de ter deixado Nazaré e de ter sido batizado no Jordão, vai a Cafarnaum para iniciar o seu ministério público.

Ele é apresentado como grande luz (cf. Mt 4, 12-23) de que fala o Profeta Isaías (Is 9, 1-4).

No caminho do mar, junto ao lago, que Jesus começa a pregar e a dizer: “Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” ( Mt 4, 17). Da pregação em geral, Jesus passa ao convite pessoal: “Segui-Me e Eu vos farei pescadores de homens. Eles deixaram imediatamente as redes e O seguiram”.

O Evangelho nos apresenta o chamamento dos primeiros Apóstolos: “Ele chamou enquanto caminhava junto ao mar da Galiléia. Estes homens experimentaram o fascínio da luz secreta que emanava dEle e seguiram-na sem demora para que iluminasse com o seu fulgor o caminho das suas vidas. Mas essa luz de Jesus resplandece para todos.

Jesus Cristo, luz do mundo, chamou primeiro uns homens simples da Galiléia, iluminou as suas vidas, ganhou-os para a sua causa e pediu-lhes uma entrega sem condições. Aqueles pescadores da Galiléia saíram da penumbra de uma vida sem relevo nem horizonte para seguirem o Mestre, tal como outros o fariam logo após, e depois já não cessariam de fazê-lo inúmeros homens e mulheres ao longo dos séculos. Seguiram-no até darem a vida por Ele. Nós também O seguimos!

O Senhor chama-nos agora para que O sigamos e para que iluminemos a vida dos homens e as suas atividades nobres com a luz da fé; sabemos bem que o remédio para tantos males que afetam a humanidade é a fé em Jesus Cristo, nosso Mestre e Senhor, razão de ser de nossa existência; sem Ele, os homens caminham às escuras e por isso tropeçam e caem. E a fé que devemos comunicar é luz na inteligência, uma luz incomparável: fora da fé estão as trevas, a escuridão natural diante da verdade sobrenatural…”

Jesus inicia o seu ministério e prega a conversão: “Convertei-vos, porque o reino dos céus está próximo” (Mt 4, 17).

A mensagem de Cristo sempre entrará em choque com uma sociedade contagiada pelo materialismo e por uma atitude conformista e aburguesada perante a vida.

Todo cristão tem a vocação que lhe foi concedida por graça no momento do batismo: todos nós fomos chamados à santidade e ao apostolado. Com o passar do tempo, na escola de Jesus, essa vocação poderia receber uma nova especificação, por exemplo, no caso daqueles que são chamados ao sacerdócio ministerial. No entanto, a vocação à santidade e ao apostolado é igual para padres, para leigos e para religiosos. Todos devem ser santos, todos devem evangelizar. Por quê? Porque foram batizados. Além do mais, não existe uma santidade maior para os padres e uma santidade menor para os leigos, mas todos estão chamados à plenitude da vida cristã, à santidade. Com outras palavras: o padre não é mais santo porque é padre, nem o leigo é menos santo pelo fato de ser leigo. Não! A santidade é medida pela caridade e todos podem chegar ao auge do amor.

Pedro e André, os futuros São Pedro e Santo André, compreenderam isso. Eles seguiram ao Senhor Jesus, andaram com ele, permaneceram sempre perto de Jesus, atenderam os seus apelos de evangelização, fizeram a vontade do seu Mestre e… são santos. Aprenderam a estar com Jesus e a pescar homens. Aprenderam a ser apóstolos.


Deus chama-nos a todos para que sejamos luz do mundo, e essa luz não pode ficar escondida: “Somos lâmpadas que foram acesas com a luz da verdade” (Santo Agostinho).

Cordeiro de Deus


Os antigos judeus costumavam oferecer sacrifícios de animais para mostrar sua adoração, gratidão, petição do perdão dos pecados e outros favores a Deus. Estando para sair da escravidão do Egito, liderados por Moisés, por ordem divina sacrificaram cordeiros de um ano. Com o sangue dos mesmos, tingiam os umbrais das entradas das casas para que, à passagem do anjo exterminador, não morresse ninguém deles, ao contrário dos egípcios que não tinham esse sinal e tiveram mortos os filhos mais velhos.

No entanto, tais sacrifícios não tinham força, por si mesmos, de perdoarem pecados e sim de solicitar a ajuda divina, tentando agradar a Deus. Seu sacerdócio era como mediação de oração e culto. Jesus, no entanto, exerceu a mediação salvadora, ou seja, o sacrifício foi de si mesmo. Ele mesmo foi o cordeiro imolado em nome da humanidade toda e de todos os tempos. Por ser Ele o Filho natural de Deus, seu sacrifício foi de verdadeiro pontífice. Por isso mesmo, realizou a redenção ou salvação de todos os seres humanos.

João Batista, precursor de Jesus, declara, em relação a Ele: “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1,29). De fato, Jesus tem o poder de tirar os pecados. Ele mesmo o atesta quando curou o paralítico, mostrando que tinha poder de perdoar e, da mesma forma, de fazer milagres (Cf. Lc 5,17-26).

Jesus quis dar a própria carne e seu sangue para nos alimentar. Mas o fez da forma miraculosa da Eucaristia. Com o poder divino Ele podia transformar o pão e o vinho em seu corpo e sangue, para termos real possibilidade de nos alimentarmos dele. Não é só símbolo. Ele mesmo disse: “É o meu corpo… fazei isto em memória de mim” (Lucas 22,19). 

Na fé e na caridade de Cristo


Procurai reunir-vos com mais frequência para celebrar a ação de graças e o louvor de Deus. Quando vos reunis com frequência, abatem-se as forças de Satanás e o seu poder destruidor é aniquilado pela concórdia da vossa fé. Nada há mais precioso do que a paz, que desarma todo o inimigo celeste ou terrestre. Nada disto vos ficará escondido, se mantiverdes de modo perfeito em Jesus Cristo a fé e a caridade, que são o princípio e o fim da vida: a fé é o princípio e a caridade é o fim. Ambas unidas são o próprio Deus; delas derivam todas as outras virtudes que conduzem à perfeição. Quem professa a fé não peca; e quem possui a caridade não odeia ninguém. Pelo fruto se conhece a árvore; do mesmo modo, os que professam ser de Cristo reconhecem-se pelas suas obras. O que interessa agora, não é apenas fazer profissão de fé, mas perseverar na prática da fé até ao fim. Melhor é calar-se e ser, do que falar e não ser. É bom ensinar, desde que se pratique o que se ensina. Um só é o mestre que disse e foi feito; mas também é digno do Pai o que Ele fez em silêncio. O que possui a palavra de Jesus é capaz de perceber também o seu silêncio e chegar à perfeição, agindo segundo a sua palavra e fazendo-se reconhecer pelo seu silêncio. Nada se pode ocultar ao Senhor, e até os mais íntimos segredos estão na sua presença. Portanto, façamos tudo com a consciência de que Ele habita em nós, para que sejamos realmente seus templos e Ele seja o nosso Deus em nós. Assim é, de fato, e assim Se há de manifestar aos nossos olhos, se O amarmos perfeitamente. Não vos iludais, meus irmãos. Os que perturbam as famílias não terão como herança o reino de Deus. Se aqueles que o fazem segundo a carne são réus de morte, quanto mais não deverão ser punidos aqueles que pelo seu ensino perverso corrompem a fé que vem de Deus, pela qual Cristo foi crucificado? Tais homens, manchados com tal delito, seguirão para o fogo inextinguível, juntamente com aqueles que lhes dão ouvidos. Se o Senhor recebeu a unção sobre a cabeça, foi para infundir sobre a Igreja a incorruptibilidade. Não vos deixeis ungir com o repugnante odor do ensino do príncipe deste mundo, para que ele não vos conduza à escravidão, para longe da vida que vos é proposta. Porque não nos tornamos todos prudentes, aceitando o conhecimento de Deus, que é Jesus Cristo? Porque havemos de nos perder insensatamente, desconhecendo o dom que o Senhor verdadeiramente nos enviou? O meu espírito é vítima destinada à cruz, que é escândalo para os incrédulos, mas para nós é salvação e vida eterna.


Da Carta de Santo Inácio de Antioquia, bispo e mártir, aos Efésios

(Nn. 13-18: Funk 1, 183-187) (Sec. I)

“Ali haverá pranto e ranger de dentes”: o Inferno na Arte e na Filosofia da Idade Média

O Juízo Final (Das Jüngste Gericht, c. 1467-1472), de Hans Memling (c. 1430-1494). Tríptico, óleo sobre madeira, 221 x 161 (painel central) e 223,5 x 72,5 (painéis laterais), Museu Nacional de Gdansk, Polônia. À esquerda de Deus (direita do espectador), o Inferno.

Temor, medo

Fill, per ço hages paor de l'infernal foc qui tots temps dura, ve a la fornal on fan lo vidre i al forn on coen lo pa, i considera per quant estaries una hora en aquell foc. On, si per tot lo món, qui el te donava, tu no estaries en aquell foc una hora, quant més deus tembre que per un delit temporal que lleugerament passa esties en lo foc infernal, qui tots temps dura!

Filho, para que tenhas temor do fogo infernal que dura eternamente, vai à fornalha onde fazem o vidro e ao forno onde cozinham o pão, e imagina ficar uma hora naquele fogo. Logo, se mesmo que eu te desse todo o mundo tu não estarias por um momento naquele fogo, mais deves temer que, por um deleite temporal que rapidamente passa, estejas no fogo infernal que dura por toda a eternidade! - RAMON LLULL. Doctrina pueril, XCIX. “Do Inferno”, 7.2

Detalhe do painel da lateral direita de O Juízo Final (Das Jüngste Gericht, c. 1467-1472), de Hans Memling (c. 1430-1494). Tríptico, óleo sobre madeira, 221 x 161 (painel central) e 223,5 x 72,5 (painéis laterais), Museu Nacional de Gdansk, Polônia. Em destaque na cena, religiosos (tonsurados) que em vida foram fornicadores: estão com suas amantes sendo pisoteados (e elas estranguladas) por terríveis e monstruosos demônios, entre labaredas incandescentes, nus. Memling imagina a cena e a representa artisticamente com tamanha força que pode-se imaginar a intensidade do calor infernal. Seu Inferno é condizente com a imagem que os religiosos de então tinham, como, por exemplo, Dionísio, o Cartuxo (1402-1471), que apresenta o Inferno exclusivamente em termos de pavor e de miséria: “Tenhamos sempre perante nosso espírito o forno mais quente e mais em brasa, e dentro dele um homem nu, que nunca mais será libertado de tal tortura (...) Quão miserável ele se nos apresenta!”, De quatuor hominum novissimis (Opera, t. XLI, p. 545).1

O filósofo catalão Ramon Llull (1232-1316) dedicou um capítulo de sua obra Doutrina para crianças (c.1274-1276) ao Inferno.3 O livro, escrito para seu filho Domingos, é uma espécie de compêndio pedagógico infantil, manual para a vida, e o temor do Inferno a baliza na qual os medievais construíam seus tratados morais.4 Nesse aspecto, eles cumpriam à risca a admoestação de Eclesiástico 7, 40 (“Em tudo o que fazes, lembra-te de teu fim e jamais pecarás”). Pensavam em seus Novíssimos – as quatro últimas coisas que, no pensamento teológico-católico-medieval, acontecem aos homens: a Morte, o Juízo, o Inferno e o Paraíso. As duas primeiras, certas e universais; as duas últimas, para eles, excludentes, pois todos morrem e são julgados, todos vão para o Inferno ou o Paraíso (os que vão para o Inferno não vão para o Paraíso e, consequentemente, os que vão para o Paraíso não vão para o Inferno).5 Sem esse incisivo pano de fundo imagético, perspectiva transcendental, não é possível compreender a mentalidade medieval.6

No entanto – e para muitos de nós, hoje, enigmático – como os medievais não duvidavam da existência de um outro mundo, celebravam a cerimônia de passagem, a morte, com convicção, com a esperança de salvação (um dos poucos a compreender a amplitude dessa concepção existencial foi o historiador Georges Duby [1919-1996]).7 Seja como for como imaginemos essas certezas e dúvidas, a visão do Inferno esteve presente em praticamente todas as manifestações imagéticas – para o papa Gregório Magno (c. 540-604), “Bíblia dos iletrados”8 – durante toda a Idade Média a recordar aos incautos o que estava reservado a eles após a morte corporal (e para gáudio dos justos que procuravam viver uma vida correta neste mundo [9]).

O Inferno. Frontispício do Beato de Santo Domingo de Silos (c. 1091-1109), folio 2. Enquanto Barrabás, na entrada do tetralóbulo infernal (à esquerda), trapaceia a pesagem das almas de São Miguel (localizado do lado de fora do tetralóbulo, na extrema esquerda da iluminura), no centro, em amarelo (cor da falsidade) está a representação de um dos sete pecados capitais, a avareza (a φιλαργυρία, philarguria, o amor ao ouro, ao dinheiro): mesmo no núcleo do Inferno, o ganancioso ainda tenta segurar os sacos de moedas. Acima, dele, amantes se abraçam na cama, embaixo das cobertas: seus antigos prazeres carnais são relembrados enquanto sofrem com as provocações de um demônio (Atimos) com uma enorme genitália verde.10