O PRINCÍPIO DE
SOLUÇÃO
Os capítulos que se seguem, visam introduzir os fiéis na
leitura do livro sagrado, fornecendo noções que lhes tornem possível desfrutar
o rico conteúdo das páginas inspiradas. Impõe-se, porém, uma observação prévia,
que será também um princípio geral de solução para as dificuldades acima
apontadas. Quem quer que se apreste a ler a Escritura, recorde-se de que uma
atitude de fé sobrenatural é condição absoluta para penetrar o âmago da mesma.
E isto, por dois motivos:
a) o tema da Sagrada
Escritura.
Através dos seus setenta e quatro variados livros, a Bíblia,
em última análise, trata de um só objeto, a saber, as disposições da
Providência em vista da salvação do homem. Apresenta-nos em suas fases
sucessivas, desde os primórdios até o fim dos tempos, o mistério de um Deus que
desce até o homem para elevar o homem ao consórcio de Deus. E - note-se bem -
tal descida não é simplesmente uma vinda; ela tem o caráter quase paradoxal de
uma condescendência 5 de Deus
para com o homem, de uma adaptação da Majestade do Criador aos moldes
pequeninos do pensamento e da vida da criatura. Essa descida de Deus ao homem é
também o mistério de um Amor que, embora soberano e independente, se quer dar
derramado o bem sobre os indigentes, mas que é, de diversos modos, mal entendido,
rejeitado; não obstante, mostra-se invencível na arte de procurar o indigente
ingrato. Por tratar de tal tema, a Bíblia tem necessariamente passagens quase
desconcertantes para o leitor que a queira julgar unicamente à luz da sabedoria
humana: a sua linguagem é simples e pobre, semelhante à de um judeu antigo; e a
figura de Deus 4ue ela apresenta, embora seja inconfundível, está por vezes
adaptada à mentalidade oriental e aos costumes, às tradições dos semitas
antigos. Não há dúvida, os planos de Deus as vias pelas quais Ele procura o
homem transcendem 'infinitamente o bom-senso da criatura. Disto se segue que a
chave para se penetrar na Bíblia há de ser uma fé coerente no mistério da
Encarnação do Verbo, Encarnação que se deu na plenitude dos tempos, mas que tem
seus prenúncios nos séculos anteriores (entre os quais, os livros sagrados do
Antigo Testamento) e que continua a se manifestar em toda a história do
cristianismo.
A atitude de fé já por si desfaz muitos dos problemas que o
conteúdo e a forma literária da Sagrada Escritura apresentam; tais
'problemas" na realidade não são maiores enigmas do que a proposição de um
Deus pregado à cruz; quem na fé aceita o aniquilamento do Filho de Deus até a
morte de servo (cf. Fl 2,8), já não se admira diante das múltiplas formas da
condescendência divina sugeridas pela Bíblia. Assim como não podemos indicar a
última razão por que Deus se fez homem na plenitude dos tempos, assim também
não sabemos dizer porque se quis adaptar à linguagem do homem no livro sagrado
nem porque quis incluir no seu plano providencial tantos instrumentos rudes e
imperfeitos. O Deve-se mesmo observar que, quanto mais a fé é viva e forte no
leitor, quanto mais a vida sobrenatural nele está arraigada, tanto mais também
ele experimenta afinidade com os dizeres da Escritura; longe de se deixar
desnortear por textos difíceis, tal cristão discerne cada vez melhor o que é
contingente e o que é mensagem perene, em cada urna das passagens da Bíblia; é
que lhe fala mais claramente o Mestre interior, o próprio Autor das Escrituras.
S. Gregório Magno (f 604) exprimia esta verdade numa frase
incisiva: "Os dizeres de Deus crescem com aquele que os lê." 7
Destas considerações decorre que, ao abordar a Escritura,
ninguém se prometerá chegar um dia a compreendê-la como compreende um livro
ditado unicamente pela sabedoria humana; ao contrário, tenha consciência de que
encontrará passagens diante das quais, até o fim da vida, deverá simplesmente
adorar, os juízos de Deus, renunciando a exercer o espírito de crítica, a
proferir algum juízo. 8