"Quando nasceu..., padeceu, ressuscitou e subiu aos céus, Cristo
abriu o livro do Antigo Testamento, pois realizou por atos quanto ali por
figuras era insinuado". (Berengáudio, séc. IX)
Quem sinceramente procura a Deus, é não raro detido por
dificuldades que lhe provêm do contato com a própria Palavra de Deus, em
particular com os livros sagrados ditos do "Antigo Testamento".
Os problemas surgem, mais avultados talvez, para aqueles que
não possuem a fé, mas em sua lealdade estão dispostos a se render a tudo que
seja bom e belo. Tais pessoas leem o Evangelho, que lhes apresenta a figura do
Cristo, com sua doutrina, e julgam-na muito nobre; sem dificuldade
reconhecem-na como digna e autêntica mensagem de Deus. Mas, desde que se lhes
anuncie o nexo indissolúvel existente entre os Santos Evangelhos e o Antigo
Testamento, arrefecem em seu entusiasmo: o fundo ao qual se sobrepõe a
Revelação cristã, lhes parece muito diverso desta e, por isto, inaceitável.
Em consequência, deixam-se ficar hesitantes diante da porta
da Igreja do Cristo ou vão perder-se por novos "caminhos" de procura
da Verdade, longe do Cristo, que é justamente o Caminho, a Verdade e a Vida
(cf. Jo 14,6)!
Dúvidas existem também na mente de não poucos fiéis
católicos, os quais por vezes se veem um tanto surpresos diante de passagens do
Antigo Testamento; preferem, por isto, deixar fechada a parte inicial, a metade
ou mais da metade da Bíblia Sagrada. Esta - embora a reconheçam como Palavra de
Deus - lhes parece ter quase esgotado em séculos anteriores a sua mensagem; nos
tempos atuais, pouco teria que dizer.
Sugeridas pelo desejo de auxiliar a uns e outros,
originaram-se estas páginas. Têm por finalidade ir ao encontro daqueles que
revolvem problemas de ordem religiosa ou filosófica, problemas capitais entre
todos os demais, e não raro cruciantes, pois tocam as questões de origem, fim,
significado do homem e de sua existência na terra.
Visando, pois, despertar a alegria que jorra do conhecimento
da Verdade, os capítulos deste livro tendem a mostrar que as Escrituras antigas
não contêm apenas episódios complicados, desconcertantes, e que, mesmo quando
apresentam coisas deste gênero, são sempre portadoras, em seu âmago, de
mensagem valiosa, perene como a própria Palavra de Deus (cf. Is 40,8).
Inspirado pelo Espírito Santo antes do Cristo e em vista do
Cristo, o Antigo Testamento não perdeu seu significado após a vinda do Messias;
antes, como diz a tradição cristã, adquiriu novo poder de expressão, tornou-se
o "cântico novo" (cf. Is 42,10), que glorifica o Redentor outrora
aguardado, hoje presente entre nós. 1
Com efeito, os escritores sagrados de Israel se referiam ao
Messias por meio de símbolos e sentenças misteriosas; a vinda do Cristo só fez
tornar patente o significado profundo de tais acenos. Estes agora, num só coro
com os escritos do Novo Testamento, concorrem para ilustrar a figura do Senhor
Jesus, figura que está esculpida sobre a face da história inteira do gênero
humano.
Para melhor dar a entender o valor cristão do Antigo
Testamento, têm-se proposto na literatura moderna comparações assaz
significativas.
Poderia ser assemelhado a um clichê... Este representa um
objeto preciso, gravado sobre a sua superfície, indiscernível, porém, enquanto
o clichê não é revelado, ou submetido a um "revelador' que o torne claro,
luminoso. Ora o "revelador" que deu clareza, luminosidade plena ás
páginas do Antigo Testamento, tornando-as, por assim dizer, coloridas e vivas,
foi o Senhor Jesus com o seu Evangelho.
Pode-se, outrossim, lembrar o caso de um homem que
considerasse uma tela de pintura rematada e depois lançasse os olhos sobre o
esquema ou croqui do mesmo quadro; tal observador saberia descobrir no esboço
muito mais acenos ou riquezas do que aquele que não conhecesse a obra
terminada. Assim fala o Antigo Testamento ao leitor que, depois de conhecer o
Cristo, se aplica aos escritos sagrados de Israel
"A Antiga Aliança
é tão cristã quanto a Nova; há diferença apenas no modo como Deus ensina: modo
ora claro, ora figurado." (C. Spicq, L'Epitre aux Hébreux, I., Paris,
1952, 331.).
Na base destas considerações, vê-se bem que não pode haver
compreensão do Evangelho nem renovação da catequese cristã (renovação que
muitas e belas iniciativas hoje em dia procuram realizar) senão mediante a
devida utilização dos escritos do Antigo Testamento. A vida cristã, para ser
cada vez mais vigorosa, há de saber sempre melhor nutrir-se da Palavra de Deus,
tal como o Senhor a comunicou aos homens. É o que, com sua linguagem, parecem
incutir os acontecimentos mesmos dos últimos decênios.
As escavações arqueológicas no Oriente trouxeram ao
conhecimento do público importantes dados, que permitiram aos estudiosos como
que reviver episódios do Antigo Testamento; as páginas deste parecem aos
eruditos ter sido também recém-descobertas (atesta-o bem o título da obra de H.
H. Rowley: The Rediscovery of the Olá Testament, Londres, 1945).
Ora a impressão de que a antiga Lei se tornou nova no setor
das investigações científicas deve suscitar efeito semelhante no espírito
daqueles que consideram os escritos de Israel não apenas como livro de erudição
humana, mas principalmente como código de Sabedoria sobrenatural: mais claramente
apreciado na qualidade de LETRA ou documento literário, o Antigo Testamento não
poderá deixar de ser também mais valorizado como ESPÍRITO e VIDA ou mensagem de
Deus aos homens (cf. 2 Cor 3,3.6; Jo 6,63).
Não seria suficiente, porém, dizer que a situação dos
cristãos peregrinos neste mundo só se entende como prolongamento de uma
história pré-cristã: a própria consumação final é anunciada pela Palavra de
Deus mediante alusões contínuas a tipos e episódios do Antigo Testamento. Assim
o tema da "Cidade Santa, Jerusalém nova, trajada como a noiva que vai ao
encontro de seu noivo" (Apc 21,2), faz ecoar acordes disseminados por todo
o Antigo Testamento; o quadro do paraíso, lugar de felicidade dos primeiros
pais (cf. Gên 2), é reproduzido no Apocalipse ou na cena final dos séculos (cf.
22,2-5); a terra "onde correm leite e mel" (cf. Êx 3,8), prometida ao
povo de Deus nos inícios da história sagrada, é anunciada também por Jesus aos
mansos de coração (cf. Mt 5,5) e só será plenamente concedida quando céu novo e
terra nova forem instaurados na criação (cf. Apc 21,1).
Assim as figuras esquemáticas do Antigo Testamento recebem
nas últimas páginas da Bíblia os matizes mais vivos possíveis e são, já
plenamente desabrochadas, ainda uma vez apresentadas ã consideração do leitor.
As Escrituras israelitas aparecem então qual maqueta (de argila, cera ou
madeira) de edifício futuro, maqueta cujas linhas, longe de ser abandonadas
pelo Arquiteto do mundo e dos séculos, vão sendo reproduzidas lenta e fiel:
mente, em proporções mais amplas e com material definitivo, até se completar a
construção (cf. Hebr 11,8-10). No fim dos tempos, e somente então, o Antigo
Testamento desvendara todo o seu sentido.
Abram-se agora os capítulos no rodapé assinalados sob o eco de famosas palavras de Santo
Agostinho dirigidas ao Senhor Deus:
"Sejam as minhas
castas delícias as tuas Escrituras, nem seja eu por elas enganado, nem por elas
engane... Dá lugar às nossas meditações sobre os mistérios da tua Lei, e não a
feches àqueles que batem; pois não em vão que quiseste fossem escritos os
densos segredos de tantas páginas... Eis que a tua VOZ é a minha alegria, a tua
voz está acima da abundância das volúpias. Dá o que amo; pois amo, e foste Tu
que o deste. Não abandones os teus dons, nem desprezes a tua erva que tem sede.
Louve-Te eu por tudo que encontrar nos teus livros, e ouça a voz de louvor, e
beba a Ti, e considere as maravilhas da tua Lei, desde o princípio, no qual
fizeste o céu e a terra, até o reino perpétuo da tua Cidade Santa."
(Confissões, 11,7.)
Rio de Janeiro, maio de 1956
Dom Estêvão Bettencourt, OSB
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1 "O Antigo Testamento é como que o cântico
novo a significar por Imagens e figuras múltiplas a mesma realidade que o Novo
Testamento." (Ruperto de Deutz, séc. XII, in Apoc 1.9).
Uma vez proposta a finalidade destas páginas, resta indicar
o roteiro que percorrem. Depois de estabelecido um princípio que é chave para a
solução de qualquer dificuldade bíblica (cap. 1), são focalizadas questões de
redação e forma literária dos escritos sagrados: o sentido da inspiração
bíblica (cap. 11), algumas notas características da linguagem semítica ou
israelita (caps. 1H e IV). A seguir, aborda-se o conteúdo mesmo do Antigo
Testamento: Primeiramente, o que há de positivo, a mensagem perene das
Escrituras judaicas, é posto em relevo (caps. V e VI).
Já, porém, que, ao lado das grandes e luminosas linhas,
ficam não poucos pontos obscuros, os caps. VII, VIII e IX procuram mostrar o
que podem significar as narrativas de pecados "escandalosos" nos
livros que Deus inspirou.
Os caps. X, XI e XII tratam de expressões e manifestações da
religiosidade do Antigo Testamento que ao leitor moderno parecem estranhas ou
desprezíveis, por se basearem em pressupostos de medicina e antropologia hoje
carecentes de valor: é, pois, considerada a doutrina religiosa, sempre válida,
que se prendia à utilização do sangue, à conceituação das doenças, dos sonhos,
e às noções de vida póstuma, entre os israelitas. Mais uma fonte de
perplexidade é o caráter maravilhoso que tomam certos episódios narrados pela
história sagrada.
O cap. XIII expõe a interpretação que a tais seções dá a
exegese católica contemporânea, sem recear o "maravilhoso", mas
coadjuvada por melhores instrumentos de trabalho do que os de outrora. iii.
O conjunto se encerra com a apresentação de pequeno guia
prático para a leitura da Bíblia (cap. XIV).
Outros temas do Antigo Testamento que talvez ainda suscitem
ao leitor dificuldades (de menor vulto, porém) foram deixados de parte, por
pertencerem antes à alçada de um comentário do texto sagrado.
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Para Entender o Antigo
Testamento
Livraria Agir Editora
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