terça-feira, 24 de outubro de 2017

O Problema Bíblico e seu princípio de solução (Capítulo 1 - Parte 2/2)


O PRINCÍPIO DE SOLUÇÃO

Os capítulos que se seguem, visam introduzir os fiéis na leitura do livro sagrado, fornecendo noções que lhes tornem possível desfrutar o rico conteúdo das páginas inspiradas. Impõe-se, porém, uma observação prévia, que será também um princípio geral de solução para as dificuldades acima apontadas. Quem quer que se apreste a ler a Escritura, recorde-se de que uma atitude de fé sobrenatural é condição absoluta para penetrar o âmago da mesma. E isto, por dois motivos:

a) o tema da Sagrada Escritura.

Através dos seus setenta e quatro variados livros, a Bíblia, em última análise, trata de um só objeto, a saber, as disposições da Providência em vista da salvação do homem. Apresenta-nos em suas fases sucessivas, desde os primórdios até o fim dos tempos, o mistério de um Deus que desce até o homem para elevar o homem ao consórcio de Deus. E - note-se bem - tal descida não é simplesmente uma vinda; ela tem o caráter quase paradoxal de uma condescendência 5  de Deus para com o homem, de uma adaptação da Majestade do Criador aos moldes pequeninos do pensamento e da vida da criatura. Essa descida de Deus ao homem é também o mistério de um Amor que, embora soberano e independente, se quer dar derramado o bem sobre os indigentes, mas que é, de diversos modos, mal entendido, rejeitado; não obstante, mostra-se invencível na arte de procurar o indigente ingrato. Por tratar de tal tema, a Bíblia tem necessariamente passagens quase desconcertantes para o leitor que a queira julgar unicamente à luz da sabedoria humana: a sua linguagem é simples e pobre, semelhante à de um judeu antigo; e a figura de Deus 4ue ela apresenta, embora seja inconfundível, está por vezes adaptada à mentalidade oriental e aos costumes, às tradições dos semitas antigos. Não há dúvida, os planos de Deus as vias pelas quais Ele procura o homem transcendem 'infinitamente o bom-senso da criatura. Disto se segue que a chave para se penetrar na Bíblia há de ser uma fé coerente no mistério da Encarnação do Verbo, Encarnação que se deu na plenitude dos tempos, mas que tem seus prenúncios nos séculos anteriores (entre os quais, os livros sagrados do Antigo Testamento) e que continua a se manifestar em toda a história do cristianismo.

A atitude de fé já por si desfaz muitos dos problemas que o conteúdo e a forma literária da Sagrada Escritura apresentam; tais 'problemas" na realidade não são maiores enigmas do que a proposição de um Deus pregado à cruz; quem na fé aceita o aniquilamento do Filho de Deus até a morte de servo (cf. Fl 2,8), já não se admira diante das múltiplas formas da condescendência divina sugeridas pela Bíblia. Assim como não podemos indicar a última razão por que Deus se fez homem na plenitude dos tempos, assim também não sabemos dizer porque se quis adaptar à linguagem do homem no livro sagrado nem porque quis incluir no seu plano providencial tantos instrumentos rudes e imperfeitos. O Deve-se mesmo observar que, quanto mais a fé é viva e forte no leitor, quanto mais a vida sobrenatural nele está arraigada, tanto mais também ele experimenta afinidade com os dizeres da Escritura; longe de se deixar desnortear por textos difíceis, tal cristão discerne cada vez melhor o que é contingente e o que é mensagem perene, em cada urna das passagens da Bíblia; é que lhe fala mais claramente o Mestre interior, o próprio Autor das Escrituras.

S. Gregório Magno (f 604) exprimia esta verdade numa frase incisiva: "Os dizeres de Deus crescem com aquele que os lê." 7

Destas considerações decorre que, ao abordar a Escritura, ninguém se prometerá chegar um dia a compreendê-la como compreende um livro ditado unicamente pela sabedoria humana; ao contrário, tenha consciência de que encontrará passagens diante das quais, até o fim da vida, deverá simplesmente adorar, os juízos de Deus, renunciando a exercer o espírito de crítica, a proferir algum juízo. 8 

b) a Escritura, patrimônio da Igreja.

A penetração da Sagrada Escritura, sendo função da fé na Encarnação, não pode deixar de estar também 'intimamente associada à fé na Igreja. Com efeito, para os católicos, é na Igreja que o Verbo Encarnado prolonga a sua vida e a sua obra de iluminar e salvar os homens. Quem admite isto, há de reconhecer que à Igreja compete, em última análise, dar a genuína interpretação da Escritura; já que pela Igreja Cristo ensina aos homens, é pela Igreja que lhes dá a saber o sentido da Palavra escrita de Deus, que é a Bíblia. Por conseguinte, seria incoerente o católico que procurasse estudar a Sagrada Escritura independentemente do magistério da Igreja, seguindo apenas as insinuações da ciência ou o seu bom-senso pessoal.

Verdade é que o magistério eclesiástico não dita normas positivas para o entendimento de todo e qualquer texto bíblico, mas ao menos indica verdades de fé às quais nenhum exegeta pode derrogar sem cair no erro. - É esta fé na Igreja que, dos demais leitores da Bíblia (protestantes, espíritas, racionalistas, etc.), distancia radicalmente o católico. Pode acontecer mesmo que a autoridade da Igreja seja o único argumento decisivo para que o católico tome tal posição exegética em vez de outra.9

Sendo assim, tenham os fiéis consciência de que não poderão sempre por argumentos filológicos, arqueológicos, literários provar a protestantes e racionalistas que a interpretação dada pelos católicos a tal passagem bíblica é a autêntica; deverão, pois, não raro, professar que é a voz da Igreja que os leva a optar entre duas explicações que, à luz dos critérios literários, seriam igualmente plausíveis.10

Pergunta-se, porém: não será constrangedora, pouco digna da inteligência humana, esta atitude dos católicos? Não; pode-se dizer que ela é não apenas imposta pela Igreja, mas exigida pela índole mesma da Escritura Sagrada, de sorte que subtrair-se a essa posição vem a ser infidelidade para com o texto mesmo que se quer elucidar.

Como isto?

É preciso não esquecer que os livros da Escritura tiveram origem ocasional ou esporádica.

No tocante ao Novo Testamento, sabe-se que Jesus Cristo comunicou todo o seu ensinamento aos Apóstolos por via meramente oral. Por sua vez, os Apóstolos não se preocuparam grandemente com a redação da doutrina recebida de Cristo; foram-na transmitindo de viva voz pela pregação. 11

Acontecia, porém, que esporadicamente os fiéis desta ou daquela região propunham questões particulares (de índole dogmática ou moral) aos Apóstolos ou pediam que lhes enviassem uma súmula escrita do que haviam pregado; atendendo a essas necessidades contingentes é que os Apóstolos e Evangelistas redigiram suas cartas e suas biografias de Jesus (Evangelhos); ao abordar pontos de doutrina em tais escritos, de modo nenhum intencionavam expô-los de maneira sistemática ou exaustiva; apenas elucidavam os aspectos que davam lugar a mal-entendidos entre os fiéis, pressupondo de resto os ensinamentos que de viva voz haviam transmitido. 12 

Daqui se segue que muitos temas da autêntica pregação de Jesus ou do depósito revelado não passaram para o papiro, mas ficaram na tradição meramente oral da cristandade; é preciso mesmo dizer que só pequena parte das verdades de fé foi explicitamente consignada por escrito. E, como se vê, esta pequena parte não constitui um bloco fechado e completo em si, mas é inseparável da tradição oral; depende desta, pois se originou dentro da tradição oral, como modalidade nova da mesma. Semelhantemente, tiveram origem ocasional, esporádica, os escritos do Antigo Testamento. 13 

É o que faz que, na exegese da Sagrada Escritura, o primeiro elemento a ser consultado seja o conjunto de ensinamentos que sempre se transmitiram ao lado da Escritura no povo de Deus ou na Igreja; é, em outros termos, a tradição oral, que ainda hoje vive entre os cristãos e tem seu autêntico órgão de expressão no magistério da Igreja.

De tudo isto resulta claramente que o recurso à tradição, longe de ser imposição arbitrária da autoridade eclesiástica, é exigência decorrente da índole mesma da Sagrada Escritura. Por fim, não se pode deixar de salientar que, embora a atitude de fé seja a atitude primária para uma profícua leitura do texto sagrado, ela de modo nenhum dispensa certo estudo ou esforço que vise penetrar e entender o aspecto literário, humano, da Bíblia. Esta é, sem dúvida, um livro divino, portador de mensagem sobrenatural, e, enquanto tal, é o espírito sobrenatural do leitor que a deve perscrutar. Ao mesmo tempo, porém, é obra de autores humanos, que, para a redação das páginas sagradas, contribuíram com seu cabedal de cultura, e cultura oriental antiga; ora não resta dúvida de que este outro aspecto da Escritura só pode ser entendido mediante o recurso às noções de cultura pressupostas pelos autores bíblicos.

Tendo em vista as disposições habituais da Providência, ninguém pretenderá apreender a mensagem divina da Escritura, sem previamente tomar conhecimento exato do veículo humano a que se quis ligar a Palavra de Deus. Errôneo, pois, seria desprezar, em nome da fé ou da piedade, o recurso aos resultados da ciência moderna empreendido pelos bons exegetas contemporâneos.

É claro, porém, que nem todos os leitores da Escritura estão obrigados a fazer os mesmos estudos para desfrutar o conteúdo do texto sagrado; as noções introdutórias na Escritura encontram-se redigidas sob forma breve e simples em opúsculos das diversas línguas modernas; tais opúsculos possibilitam o acesso ao livro sagrado mesmo às pessoas que, por suas circunstâncias de vida, menos se possam dedicar ao estudo.

Deus houve por bem fazer da sua Palavra a mensagem para todos os homens, não somente para aqueles a quem é dado o lazer do estudo.

Em conclusão: espírito sobrenatural muito vivo, que, de um lado, está pronto a exercer a fé renunciando a julgar as autênticas obras de Deus, mas, de outro lado, nada despreza daquilo que de verídico ensina a ciência, eis o pressuposto de uma leitura frutuosa do livro sagrado; eis o princípio geral para a solução dos problemas da Bíblia.

Dom Estêvão Bettencourt, OSB

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5 A expressão é de S. João Crisóstomo, que a usa freqüentemente (ei. in .Gen h. 3,3; 15,2; 11,1; in lo 15,1). • 

6 O significado geral do Antigo Testamento e da História Sagrada será objeto de ulterlores considerações no cap. V.

7 Divina eloquia cum Iegente crescunt (in Ez 1, 7, 85).

8 Como, de resto, o mistério da Encarnação do Verbo sempre exigirá a adoração reverente dos fiéis.

9 Exemplo notório é o do cânon ou catálogo das Escrituras sagradas. Todos sabem que Lutero não reconheceu como inspirados ou canônicos certos livros que os católicos admitem como tais (assim Tob, Jdt, 1 e 2 Mac, Sab, Rolo, Bar; Hebr, T, 2 Pdr, 2 e 3 Jo, Jud, Apc). Os protestantes apresentam razoes, deduzidas da história, para os rejeitar. Os católicos também desenvolvem argumentos para os admitir. As razões de uma parte e de outra não bastam para dirimir a questão. Se os católicos mantêm o seu ponto de vista, isto se dá, em Última análise, porque creem na autoridade infalível cio magistério da Igreja. Donde se vê bem que tal crença é básica para o católico que se proponha ler a sagrada Escritura; ela se exerce já na questão de saber em que consiste a Bíblia.

10 Já que os não-católicos não reconhecem tal magistério, torna-se por vezes vão querer argumentar com eles.

11 Isto bem se entende pelo fato de que escrever era arte difícil na antiguidade; o material respectivo (papiro ou pergaminho) era raro, exigia muito tempo e grande habilidade por parte do autor. Em consequência, o magistério se exercia quase unicamente pela palavra viva.

12 Haja vista, por exemplo, a maneira como se originaram as duas epístolas de S. Paulo aos tessalonicenses. Por volta de 51, o Apóstolo esteve em Tessalônica (Macedônia), onde fundou o primeiro núcleo de cristãos da cidade. Não se pôde, porém, demorar aí tanto quanto necessário para rematar a catequese dos recém-convertidos: um tumulto provocado pelos judeus obrigou-o a procurar refúgio em Atenas e corinto (cf. At 17,1-15). Ora, pouco depois de chegar a Corinto, Paulo teve notícia de que os tessalonicenses nutriam dúvidas a respeito do dia do juízo final e da sorte que então tocaria aos irmãos defuntos; tais dúvidas provocavam agitação entre os fiéis e solicitavam a intervenção do Apóstolo. Foi o que ocasionou a primeira epístola aos tessalonicenses, em que S. Paulo aborda aspectos da doutrina da segunda vinda de Cristo, em termos breves, porém, porque apenas intencionava completar a pregação de viva voz. Já que esta primeira carta não bastou para acalmar os ânimos, Paulo, ciente disto, poucos meses mais tarde, escreveu a segunda epístola aos tessalonicenses, em que de novo só se propunha desfazer os mal-entendidos dos fiéis, apelando, de resto, para o seu ensinamento oral (cf. 2,5s). É o que explica que estas duas epistolas, certamente inteligíveis para os seus primeiros leitores, apresentem hoje dificuldades exegéticas insolúveis; faltam-nos os elementos da pregação oral que deviam esclarecer o que Paulo diz a respeito da aparição do Anticristo e do Obstáculo que o detém (cf. 2 Tes 2,5s: "Não vos lembrais de que eu vos dizia essas coisas quando ainda estava convosco? Agora sabeis o. que o detém, para que se manifeste em seu tempo".) 13

Isto se compreende já pelo fato de que escrever era relativamente pouco usual entre os antigos. Apenas fragmentos de historiografia ou dos oráculos dos profetas ou das máximas dos sábios de Israel nos foram consignados, como se deduz da crítica literária dos livros do Antigo Testamento.
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Para Entender o Antigo Testamento

Livraria Agir Editora

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