O PROBLEMA
É fato inegável que bom número dos católicos de hoje, mesmo
dentre os mais fiéis à vida cristã, não estão familiarizados com a Sagrada
Escritura. Esta é, para eles, um livro mais ou menos cerrado, onde não têm o
costume de procurar o nutrimento da vida espiritual; para revigorar sua
piedade, servem-se, com prazer, e quase que exclusivamente, de obras e
opúsculos religiosos posteriores à Bíblia.
Tal verificação não pode deixar de impressionar a quem sobre
ela reflita... Todo católico professa que a Bíblia é livro inspirado por Deus
para a santificação dos leitores; consequentemente, esperar-se-ia que fôsse a
obra mais lida e explorada pelos cristãos, o primeiro manancial de
espiritualidade dos fiéis, pois, dir-se-ia em linguagem popular, "Deus não
se terá abalado por pouca coisa.
As páginas inspiradas por Deus certamente não excluem o que
os santos e justos escreveram de verídico e belo, mas, quase que por definição,
exigem para si a primazia na biblioteca ou na cabeceira do cristão. O fato de
que a Bíblia não é devidamente conhecida causa pesar semelhante ao que suscita
o esquecimento de alguns cristãos em relação à S. Eucaristia. Em um e outro
caso observa-se que os maiores dons de Deus não são suficientemente procurados;
são subestimados em favor de objetos e práticas menos ricas e eficazes para a
santificação.
Conscientes de tal anomalia, alguns núcleos de fiéis têm
tentado explorar os tesouros da Sagrada Escritura, empreendendo a leitura
sistemática da mesma.
Contudo, ainda que animados pelas mais sinceras disposições,
não se podem furtar, perante certas páginas do texto sagrado, à impressão de
mal-estar ou mesmo de escândalo ou à conclusão de que a Escritura é livro
obscuro, difícil demais para ser alimento da vida espiritual; ela lhes parece
arcaica, alheia às ideias e à terminologia que os cristãos costumam ter na mente
e nos lábios. E, quando se lembra ao leitor, desapontado ou escandalizado, que,
para entender as páginas bíblicas, se requerem certas noções introdutórias, o
mesmo se sente como que atemorizado pelas exigências que a técnica exegética
moderna lhe parece impor.
A solução, em vez de o satisfazer, faz-lhe perder o ânimo,
porque a Sagrada Escritura se lhe afigura então objeto de estudo científico
antes do que livro de edificação sobrenatural; e, como se sabe, para o estudo
erudito, nem todos têm tempo ou aptidão! Um inquérito recém-realizado na França
nos dá a conhecer com exatidão as opiniões de fiéis que têm procurado ler a
Escritura. Vão aqui transcritos alguns destes testemunhos, a fim de se perceber
mais ao vivo o doloroso realismo do problema:
"A Bíblia é objeto de museu, não coisa viva, atual. É
livro antediluviano, onde os homens do séc. XX nada encontram que possam
aproveitar. A história desse obscuro povo hebreu parece tão longínqua que se
torna meio-irreal.
O Antigo Testamento procede de um espírito totalmente
diverso do Evangelho. Ora é o espírito do Evangelho só que devemos procurar.
Devo dizer que não li Daniel-Rops, que meu pároco dá cursos
de Sagrada Escritura, que jamais frequentei. É esta uma forma de resistência...
Alguma coisa dentro de mim se recusa a crer que minha vida
possa ser ajudada, iluminada, por essas narrativas pré-históricas."
"Noto, escreve uma dirigente da Ação Católica, que em
minha infância e juventude só me falaram do Antigo Testamento em termos
negativos: encerra histórias demasiado realistas para poder ser colocado nas
mãos de qualquer leitor."
"Há na Bíblia uma série de histórias horrendas, escreve
outra pessoa. Não quero defender a hipocrisia da nossa sociedade contemporânea,
que à Bíblia prefere a literatura "de água de rosas", ou que só
admite a literatura escandalosa quando esta se apresenta com aparato e fama;
não obstante, é muito difícil perceber como julgar todas essas histórias."
Eis o depoimento de um grupo de casais:
"Salvo algumas passagens esparsas cá e lá, não se
compreende quase nada na Sagrada Escritura... A leitura frutuosa da Bíblia
exige árduo trabalho literário, ao menos para se recolocar o texto no seu
contexto e no seu clima de origem (exegese, estudo dos gêneros literários, de história,
de nomes e datas, etc.). Não temos tempo para fazer isto tudo: cada família se
acha sobrecarregada com obrigações profissionais, materiais e educativas. E,
mesmo se tivéssemos tempo, não sentiríamos atrativo por esse estudo árido.
Depois da labuta de cada dia, desejamos repouso, paz, calma, oração, e não
livros de erudição. Julgamos poder encontrar esta paz, esta respiração profunda
em Deus, ou por meio de reflexão pessoal sobre alguns textos prediletos ou pela
meditação de alguns pensamentos familiares ou pela leitura de excertos, densos
e curtos, em que as verdades religiosas não se encontram ocultas sob uma
multidão de imagens e de fatos, mas se acham luminosamente expressas." 1
Tais depoimentos encontram eco espontâneo fora mesmo da
França; são a expressão fiel do que muitas vezes se pensa também no Brasil.
A situação assim esboçada pede ser revolvida, transformada.
Contribuir para a renovação, é o que se propõem os capítulos seguintes. Antes,
porém, de estudarmos algumas vias de solução do problema, interessa-nos
considerar mais atentamente as causas do distanciamento dos fiéis em relação à
Escritura. A tal fim, recordaremos alguns fatos da história religiosa moderna.
Uma das raízes remotas da desconfiança dos católicos frente
à Sagrada Escritura é, sem dúvida, a Ps. Reforma Protestante.
No séc. XVI, irrompeu o movimento luterano, que abusivamente
fez da Bíblia a principal fonte de seus erros religiosos; a Escritura, assiduamente
manejada pelos protestantes, passou a ser o arsenal de argumentos dos hereges.
Ora, para impedir fossem seduzidos os fiéis, as autoridades eclesiásticas
viram-se obrigadas a lhes restringir de certo modo o uso da Sagrada Escritura:
no Concílio de Trento (1545-1563), o texto latino da Vulgata foi declarado
autêntico e aos fiéis se proibiu a leitura de traduções vernáculas da Bíblia
não acompanhadas de notas explicativas conformes a doutrina católica.
Tais normas (em si muito sábias e oportunas), assim como o
continuado abuso dos protestantes, foram suficientes para criar entre os
católicos uma atmosfera de pouca "simpatia" para com a Bíblia; esta
passou a ser julgada livro perigoso, escola de heresias, manual de
protestantismo, obra colocada no Índice dos livros proibidos pela Igreja!...
Tais opiniões se foram disseminando através dos tempos sem grandes
dificuldades, de mais a mais que na Bíblia há realmente expressões e narrativas
cujo sentido não é evidente à primeira leitura, e que, por isto mesmo, se
prestam a mal-entendidos ou escândalos.
A história do séc. XIX veio corroborar a desconfiança. Com
efeito, aconteceu que, por todo o século passado, a Bíblia, tendo deixado de
ser o manual daqueles que visavam a piedade, se tornou o objeto de exploração
dos homens de ciência, eruditos muitas vezes sem fé.
Descobrindo no Oriente manuscritos e monumentos
pré-cristãos, os sábios puseram-se a compará-los com a antiga literatura
religiosa de Israel. As suas pesquisas não raro tiveram por resultado ilustrar
maravilhosamente o sentido de passagens bíblicas obscuras.
Muitas vezes, porém, os estudiosos não se conseguiram
emancipar de preconceitos filosóficos ou racionalistas; quiseram mesmo
confirmá-los por seus trabalhos científicos, e isto os fez chegar a conclusões
estranhas à Bíblia, errôneas e ímpias. Em torno da Escritura formaram-se
escolas diversas, correntes eruditas de pensamento, em boa parte norteadas por
protestantes liberais. 2 Ora isto contribuiu naturalmente para que se acentuasse
mais ainda nos católicos a impressão de que a Escritura é livro reservado:
reservado aos protestantes ou, se não a estes, àqueles que têm muita ciência...
livro perigoso a novo título, já que, ao estudá-lo no séc. XIX, tantos se
perderam nos mais variados erros do liberalismo e da impiedade.
Assim a recente história da exegese parecia confirmar o
preconceito de que a leitura do texto sagrado constitui um risco para a
verdadeira religiosidade; seria necessária muita fé, para não se cair na
infidelidade ao ler a Bíblia!
A situação se complicou mais ainda em virtude de um terceiro
fator. O cientificismo bíblico, inovador, provocou uma reação imediata. Perante
a confusão suscitada pelos eruditos, alguns círculos católicos se fecharam por
completo à utilização dos recentes dados da ciência na exegese bíblica; caíram
assim numa atitude simplória, infantil, lendo e expondo as passagens da Sagrada
Escritura sem muito discernimento das regras de estilo, vocabulário, sem
consideração do respectivo panorama histórico, que as pesquisas modernas
desvendaram.
Desta atitude resultou em não poucos dos contemporâneos a
ideia de que a Bíblia é livro retrógrado em relação à ciência, ótimo repertório
de histórias para crianças, de modo nenhum, porém, sustento de um espírito
esclarecido.
Entendida de maneira demasiado humana, fantasista, a Bíblia
veio a ser objeto de desprezo daqueles mesmos que procuravam uma religiosidade
elevada, digna do verdadeiro Deus!
Pois bem; é no mundo herdeiro de tais preconceitos que se
procura despertar hoje um movimento católico de volta à Escritura. Poderá esta
iniciativa contar com alguma probabilidade de sucesso? A resposta afirmativa se
impõe.
O movimento bíblico é portador de um título, ao menos, capaz
de lhe assegurar pleno êxito. O homem dos nossos tempos tem acentuada sede de
tudo que é genuíno, autêntico; procura tomar consciência da razão de ser de
todas as coisas, e rejeita o que lhe pareça destituído de fundamento objetivo,
tudo que seja fruto de mera convenção. Isto se dá também no setor religioso, e
entre os próprios católicos.
Os nossos fiéis têm procurado praticar a sua religião
imediatamente à luz dos grandes dogmas; manifestam o desejo de viver as
consequências práticas dos mistérios da SS. Trindade, da Encarnação e do Corpo
Místico, reavivando em si uma mentalidade mais tipicamente cristã, menos
superficial ou desvirtuada pelas influências não católicas que sofreu a partir
do séc. XVI. 3
Em outros termos: nota-se uma sede de voltar às fontes da
verdade e da vida cristãs, a fim de que o sal da terra seja sal ainda mais
autêntico, numa fase da história em que diversas facções humanas se chocam,
mobilizando tudo que elas possuem de vital.
Ora entre as fontes de revigoramento da vida cristã está
certamente a Escritura Sagrada; é por esta e pela tradição oral que a Igreja se
orienta. De modo particular se sentem os católicos contemporâneos impelidos a
tomar conhecimento da genuína mensagem da Bíblia, por verificarem que se vai
multiplicando o número de confissões religiosas (seitas protestantes,
espíritas, teosofistas, etc.) que, cada qual do seu modo, falam em nome da
Sagrada Escritura, procurando deduzir da mesma as ideias mais desconexas
possíveis.4
É, pois, a sede do autêntico, bem característica da nossa
época, que, humanamente falando, permite prever todo o êxito ao movimento
bíblico contemporâneo.
Dom Estêvão Bettencourt, OSB
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1 Como se compreende, os
depoimentos são anônimos; foram colhidos no artigo de Henry, "Les
catholiques lisent-ils la Bible?" em La Vis Epiritucue - Stipplément 12
(1950) • 84-98.
2 Principalmente a Escola alemã de Tuebingen, tendo à frente
Bruno Bauer (t1882), se distinguiu por suas teses hipercríticas. Fomentou uma
onda de cepticismo que se propalou pela Holanda (Pierson, Naber), a inglaterra
(Johnson, Robertson), a França (Couchoud), a Suíça (Steck), a Itália (Bossi),
os Estados Unidos da América (Smlth). As figuras de Jesus e S. Paulo foram
reduzidas a ficções literárias; aos Evangelhos e aos escritos paulinos se
denegou toda autenticidade; o cristianismo passou por produto da filosofia
religiosa de Alexandria e da sabedoria popular dos romanos! Alguns autores de
Tuebingen, mais moderados, admitiam que no séc. 1 a cristandade estava dividida
em facção petrina e facção paulina; o livro dos Atos dos Apóstolos, no séc. II,
teria tentado conciliá-las; o Evangelho de S. João, depois de 160, seria a
expressão da conciliação já obtida. Assim, por exemplo, Cristiano Baur (t1860).
3 O Santo Padre Pio XII, por
seus escritos, tem estimulado tão louvável tendência: a encíclica de S.
Santidade sobre a S. Liturgia (Mediator Dei, de 20 de novembro de 1947) apela
frequentemente para os dogmas da Encarnação e da Redenção, dos quais deduz
conclusões atinentes à vida de oração; é do âmago do dogma que Pio XII deseja
se nutra a espiritualidade crista. Os comentadores consideram a Mediator Dei
como o segundo capitulo de uma única obra que começou com a encíclica sobre o
Corpo Místico de Cristo (Mystiet Ccrporis, de 29 de junho de 1943).
4 Cc nwuveme,zt irrésistible
qui, dans ia mêlée actueile, force la conscicift de chacun d présenter les
piêces authentiques de ia croyancc, amênera les catholiques à tire de pias cii
pias la Bibie. C'cst da moins cc que nous pouvons espérer lopalement. (Henry,
art. cit., 98.)
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Para Entender o Antigo
Testamento
Livraria Agir Editora
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