Sem intenção de polemizar contra ninguém,
retorno a esta questão já abordada por mim por ocasião da publicação do
Instrumentum laboris (IL) do Sínodo. Pelo que observamos são duas as razões
apresentadas pelos que defendem a ordenação de padres casados: se
possibilitaria a celebração da Missa nas aldeias, hoje inviabilizada pela
normativa do celibato e, por outra parte, se superaria a rejeição intrínseca ao
mesmo que desde a antropologia indígena, desde a absoluta impossibilidade para
uma “compreensão” da situação pelo que se refere ao caso do padre indígena
solteiro na Amazônia de hoje.
A primeira razão fica invalidada pelo fato
evidente de que a ausência de padre para celebrar a Eucaristia é um problema
comum a toda a Igreja e não só das comunidades indígenas. Pertenceria,
portanto, não ao âmbito de uma problemática a ser discutida por um Sínodo.
Queremos aqui nos debruçar sobre a questão
cultural indígena que, segundo alguns, deve prevalecer de modo absoluto sobre a
atual legislação, “caso os católicos queiram ter membros do clero provenientes
das comunidades indígenas”.
O ar descristianizado que sopra ao longo de
muitas páginas do IL se evidencia com toda a crueza por ocasião da ordenação de
indígenas não vinculados pelo sagrado dom do celibato. “Não há outra
possibilidade. Os povos indígenas não entendem”. Uma visão profundamente
secularista tomou conta do documento. O que aqui se evidencia com a máxima
clareza. Vejamos.
“A cultura não é a medida do Evangelho. É
Jesus Cristo a medida de toda a cultura e de toda obra humana” (SD, DI 6).
Não é a cosmovisão indígena a que determina a
evangelização e estabelece o que pode ou não ser aceito do Evangelho de Jesus
Cristo. Essa cultura seria um “novo evangelho”, como inúmeras vezes se dá a
entender no IL, evangelho surgido dos indígenas, das suas culturas ou de sua
análise sobre as necessidades do homem também na área do celibato, das
famílias, da sexualidade, realidades estas que determinam intrinsecamente a
personalidade e a sua história.
A necessidade de “nascer de novo”, “ser um
homem novo”, “no único Homem novo” (Ef 2, 15-16), também portanto na área da
sexualidade, não seria efetivada pelo Evangelho. Seria pura salvação humana,
portanto não salvação. O indígena, sua família, sua afetividade e sexualidade
ficariam entregues a si mesmos, a sabedoria dos ancestrais, as cosmovisões da
sua cultura, as interpretações da realidade do seu povo.
A evangelização da Amazônia não pode nascer do
desejo de “agradar aos homens”, ou de “procurar o seu favor” (Gl 1, 10), nem
dos Cardeais, nem tampouco do Sínodo. Ela tem que nascer da responsabilidade da
Igreja pelo Dom que Deus nos faz em Cristo, aos indígenas tanto como a nós. Dom
que não extingue, tampouco humilha, nem se sobrepõe a nenhuma cultura, nem
nação. É “a riqueza insondável” (Ef 3, 8) que antes de tudo é o próprio Cristo,
sua Pessoa, sua Igreja, porque Ele mesmo é a nossa salvação e a da Amazônia.
A Cristologia reducionista que perpassa o IL
não marcará nunca “os caminhos novos para a Igreja na Amazônia, nem para uma
ecologia integral”. Se assim fosse o Sínodo seria eliminado porque Jesus de
Nazaré, Filho de Deus ficaria assim fora do centro (ibidem 6-7).
Por outra parte, a mensagem do Novo Testamento
sobre a sexualidade humana e suas consequências, ponto de partida para a
compreensão do celibato não é um empecilho intransponível para os povos
indígenas. Assim como tampouco o foi para os gregos e romanos (1 Cor 6; Ef 5;
Gal 5; Rm 1). Como tampouco para os judeus (Mt 19). Todos eles tiveram a mesma
dificuldade de compreensão, mas ao mesmo tempo experimentaram a alegria
incontida de “glorificar a Cristo no seu corpo” (sexo, genitalidade) (1 Cor 6,
20), assim como também a experiência única da libertação sexual “pelo alto
preço do sangue de Cristo” (ibidem) pelo sacramento do Batismo e do sacramento
do Matrimônio, mistério grande em Cristo e na Igreja (Ef 5, 32).
Não é a cultura indígena que encontra
dificuldades intransponíveis na compreensão do celibato. Acontece que não houve
uma verdadeira inculturação do Evangelho entre eles. Tem sido por muitas razões
uma transmissão da fé “que não se fez cultura, uma fé que não foi plenamente
recebida, não inteiramente pensada, não fielmente vivida” (Rm 10). Isso! Numa
palavra: as dificuldades das culturas indígenas para compreender o celibato e
vivenciá-lo, também no sacramento da ordem sacerdotal, não são diferentes as
das culturas afroamazônicas, ribeirinhas, caboclas, nem urbanas da Amazônia.
Aliás, nem as culturas ibéricas na primeira evangelização das mesmas, como a da
inculturação das germânicas ou asiáticas, como qualquer cultura experimenta
fundamentalmente a mesma dificuldade para compreender, vivenciar, encontrar o
verdadeiro sentido da estrutura afetiva, sexual, genital e, portanto, do
celibato que nasce necessariamente do Batismo e da Eucaristia (1 Cor 6, 9-11).
Sem uma autêntica inculturação do Evangelho
num processo longo, complexo e difícil, não tem possibilidade nenhuma nenhum
povo da Terra de compreensão, aceitação agradecida, nem de vivência fiel, nem
nas culturas indígenas, nem em outras quaisquer.
O primeiro passo para a solução do problema do
celibato não é abolição do mesmo. É, pelo contrário, inculturar o Evangelho com
os valores profundos, aspirações vitais, raízes antropológicas (Rm, 24; At 14,
11-17; 17, 22-31) de determinada cultura. É Jesus Cristo e seu Espírito que
transcende toda a cultura, mas simultaneamente se encarna nos valores e nas
expressões mais profundas de cada cultura. Ele é o início, meio e fim da
inculturação.
Paulo, na Carta aos Gálatas, proclama: “não
anulo a graça de Deus; porque se é pela Lei que vem a justiça então Cristo
morreu em vão” (2, 21). Não podemos colocar a cultura contra a Graça, nem a
sabedoria indígena contra a Cruz.
O celibato no sacerdócio, por outra parte,
facilita o trato assíduo com o Senhor, com um coração indiviso (1 Cor 7).
Constitui uma característica específica e incomparável do kairós e da situação
profética para o exercício do profetismo mais arriscado na Amazônia de nossos
dias.
Ele define, proclama abertamente e com alegria
a característica essencialmente escatológica do nosso tempo profético
incomparável.
Vejamos agora o específico do celibato a
partir do Novo Testamento. Este é incompreensível se não é trilhado o caminho
de Jesus. Sua vida celibatária é o germe do qual brota necessariamente a
virgindade e o celibato na Igreja. Não é de estranhar, portanto, que num
documento como o IL que sequestra o Crucificado do texto preparatório do
Sínodo, “não compreenda” o celibato de Jesus, nem o da Igreja .
Mateus 19, 10-12 destaca que o mesmo é
incompreensível como o foi para os judeus que o insultavam com a palavra:
“eunuco, impotente”. Jesus aceita o insulto e explica a sua condição de celibe:
“o Reino dos Céus”. Como entre os indígenas da Amazônia o celibato também hoje
é tido como impossível por não poucos homens” (PO, 16). Por isto, com tanta
mais humildade e perseverança, nós presbíteros somos convidados a implorar com
toda a Igreja a graça da fidelidade (ibidem). Numa cristologia e eclesiologia
desprovidas da experiência da graça, o celibato não tem sentido nenhum. Assim
como é evidente no IL a ausência total da alegria pascal e da autêntica
esperança cristã.
Em Mateus, o celibato é tão incompreensível
como o camponês do Evangelho que cheio de alegria vende tudo para comprar o
único campo (Mt 13, 44ss). O celibatário, como Jesus, vivencia com entusiasmo e
alegria o despojamento de tudo “pelo Reino dos Céus”. Esta é a única
justificativa. Quem não estiver evangelizado, aquele a quem o Reino de Deus não
foi anunciado, não compreende nada. Como os indígenas da Amazônia que pensam
desde si mesmos, não desde o Evangelho, não desde o Reino dos Céus. A Igreja
mateana que nasce do judaísmo acolhe, admira e acompanha grupos de pessoas que
no seu seio permaneciam celibatárias imitando a Jesus.