Uma mulher de 61 anos, testemunha de Jeová, faleceu a alguns anos em Sevilha (Espanha),
após ter sofrido um acidente de carro, porque em um documento de vontades
antecipadas, rejeitava receber qualquer tipo de transfusão sanguínea devido às
suas convicções religiosas.
Está baseada na Bíblia a proibição de comer ou receber sangue, inclusive
por transfusão, ou de qualquer outra forma? A esta questão responde nesta
análise Vicente Jara Vera, membro da Rede Ibero-americana de Estudo das Seitas
(RIES), diretor do programa “Conheça as seitas”, emitido quinzenalmente pela
Rádio Maria na Espanha.
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O problema
São numerosas as notícias sobre negativas de
membros da seita das Testemunhas de Jeová para realizar transfusões de sangue,
e de complicações, às vezes com o falecimento do paciente, ao não poder
atendê-los devidamente em um hospital diante de uma cirurgia ou um transplante
de órgão. Muitos destes acontecimentos podem ser conhecidos na documentação da
Rede Ibero-americana de Estudo das Seitas (RIES), especialmente no boletim
eletrônico Info-RIES.
Sobre a seita das Testemunhas de Jeová
Recordemos que as Testemunhas de Jeová não são
cristãs. São uma seita, já que se fazem passar pelo que não são, por cristãos.
E não podem ser uma igreja cristã porque não acreditam no dogma da Trindade e
na divindade de Jesus como Filho de Deus encarnado, a quem consideram como
criatura excelsa, primeira no plano de Deus, que para eles é similar ao arcanjo
Miguel.
As Testemunhas de Jeová mudaram várias
passagens da Bíblia para adaptá-las às suas próprias ideias, que nenhum
estudioso, crente ou não, poderia encontrar nos textos originais. Portanto, são
um grupo com expressões e formas religiosas parecidas com as cristãs, mas que
tentam fazer-se passar por uma igreja cristã sem sê-lo. Em definitivo, são uma
seita, que pretende ter mais e mais adeptos e mais e mais dinheiro deles e,
assim, maior influência.
Em que as Testemunhas de Jeová baseiam sua
negativa de receber sangue?
Os textos que eles utilizam para negar-se a
receber sangue são os seguintes, principalmente do Antigo Testamento, e um do
Novo Testamento – este último analisaremos posteriormente em outra parte; vamos
agora aos textos do Antigo Testamento:
Gênesis 9, 3-6: “Tudo o que se move e
possui vida vos servirá de alimento, tudo isso eu vos dou, como vos dei a
verdura das plantas. Mas não comereis a carne com sua alma, isto é, o sangue.
Pedirei contas, porém, do sangue de cada um de vós. Pedirei contas a todos os
animais e ao homem, aos homens entre si, eu pedirei contas da alma do homem.
Quem derrama o sangue do homem, pelo homem terá seu sangue derramado. Pois à
imagem de Deus o homem foi feito”.
Levítico 3, 17: “É para todos os vossos descendentes uma lei perpétua, em qualquer
lugar onde habitardes: não comereis gordura nem sangue”.
Levítico 17, 10: “Todo homem da casa de Israel ou estrangeiro residente entre vós, que
comer sangue, qualquer que seja a espécie de sangue, voltar-me-ei contra esse
que comeu sangue e o exterminarei do meio do seu povo”.
Levítico 17, 13-14: “Qualquer pessoa, filho de Israel ou estrangeiro residente entre vós,
que caçar um animal ou ave que é permitido comer, deverá derramar o seu sangue
e recobri-lo com terra. Pois a vida de toda carne é o sangue, e eu disse aos
israelitas: ‘Não comereis o sangue de carne alguma, pois a vida de toda carne é
o sangue, e todo aquele que o comer será exterminado’”.
Deuteronômio 12, 23: “Sê firme, contudo, para não comeres o sangue, porque o sangue é a
vida. Portanto, não comas a vida com a carne”.
Todos estes textos são claros e rotundos em
sua proibição: não é lícito comer sangue animal porque é comer a vida.
Analisaremos a seguir seu sentido e os situaremos em seu contexto, deixando
para mais adiante o texto do Novo Testamento, que também utilizam para apoiar
suas ideias.
O significado do sangue para os povos semíticos
Nos povos semitas do Oriente, o sangue era
visto como o elemento onde residia a vida, o elemento vital e vitalizante dos
seres vivos. Ao matar um animal, na morte de qualquer pessoa ou em um
sacrifício, o sangue vertido indicava claramente que a vida ia embora conforme
o sangue ia saindo.
A perda de sangue era também sintoma de
fraqueza, de perda de vitalidade, de vida. Para os antigos, o sangue brotava do
coração e a parada cardíaca indicava a morte da pessoa. Recordemos, além disso,
como a mitologia da Mesopotâmia conta que o deus Marduk (deidade babilônica), o
principal dos deuses, propôs-se a criar os homens para que adorassem as
divindades; para isso, amassou argila com o sangue de um deus rebelde –
posteriormente considerado um demônio – de nome Kingu.
Com este transfundo mesopotâmico, fica claro
que nos antigos sacrifícios animais do povo de Israel se oferecia a vida a Deus
e isso significava derramar o sangue do animal sacrificado. O sangue era a vida
e ela era propriedade de Deus; daí que não se podia tomar o que pertencia a
Deus. O pecado, a infração, estava, portanto, em tomar pelo homem o que não lhe
correspondia, o que é de Deus.
Esta visão do sangue como vida é também a
razão pela qual do mais terrível dos demônios mesopotâmicos, Lilitu ou Labartu
– que no Poema de Gilgamesh se denomina como Lillake – se dizia que matava as
crianças e bebia o sangue delas, isto é, seu pecado era arrancar-lhes a vida,
propriedade de Deus, sendo por isso a primeira figura vampírica conhecida da
história.
E não nos esqueçamos como, “na noite em que
foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e
disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isso em memória de mim’. Do
mesmo modo, após a ceia, também tomou o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a Nova
Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de
mim’”. (1 Cor 11,24-25).
Recordemos que, na Antiga Aliança, o pão e o
vinho eram oferecidos como sacrifício entre as primícias da terra, em sinal de
oferenda a Deus. Também o sacerdote Melquisedeque, figura de Cristo, ofereceu
pão e vinho (Gn 14, 18). Junto a isso, a saída de Israel do Egito e o contexto
do Êxodo dão ao vinho – no qual nos centramos – um caráter festivo no final do
banquete judaico e uma dimensão escatológica de espera messiânica. O vinho é
“verdadeira bebida” e bebê-lo é “ter a vida em Cristo, que é Deus, e permanecer
n’Ele” (cf. Jo 6, 53-56).
Na antropologia semita, o princípio vital do
sangue se relaciona com o suspiro ou a respiração, é o “ser vivente”, a vida, e
se designa como nefesh. A nefesh ainda permanece na carne morta, no cadáver –
daí que se possa tomar essa vitalidade quando se toma o sangue do animal ou da
pessoa morta. Uma coisa diferente ocorre com seu espírito, o ruaj que, ao
morrer o homem, vai para o além ou sheol. Daí que na antropologia semítica
exista tanta unidade entre a carne (basar) e o princípio vital ou nefesh, mas é
a ausência da ruaj que, ao não estar presente após a morte do ser humano,
torna-o não-vivo.
Por outro lado, os animais não têm ruaj, mas
basar e nefesh. Recordemos que os gregos traduziram nefesh como psykhé e este
termo passou ao latim como anima, que é a nossa “alma”, ainda que é mais
correto dizer que a alma está na ruaj (que se transformou em “espírito”) e não
no psíquico, no nefesh que, como dizemos, ainda permanece no cadáver.