segunda-feira, 29 de julho de 2013

Papa Francisco conversou com jornalistas sobre diversos temas. Confira na íntegra a entrevista


A Igreja não pode julgar os gays por sua opção sexual e nem marginalizá-los. O alerta é do papa Francisco que, quebrando um verdadeiro tabu, deixa claro que estende sua mão a esse segmento da sociedade. “Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu pra julgá-lo”, declarou. “O catecismo da Igreja explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser marginalizados por causa disso, mas devem ser integrados na sociedade”, insistiu. 

As declarações foram dadas em uma entrevista concedida pelo papa aos jornalistas que o acompanharam no avião entre o Rio e Roma, entre eles a reportagem do Estado. Na conversa, a garantia do argentino de que o Vaticano tem como papa uma “pessoa normal”, um “pecador” e que vive junto com os demais religiosos porque morar no Palácio Apostólico o geraria problemas psicológicos. Trinta minutos depois de o voo decolar do Rio, o papa deixou sua primeira classe e cumpriu uma promessa que havia feito no voo de ida de Roma ao Brasil: responderia perguntas dos jornalistas. Mas poucos imaginaram que a conversa duraria quase uma hora e meia.

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Para o papa, o problema não é a existência do “lobby gay” dentro da Igreja, mas de qualquer lobby. “O problema não é ter essa tendência. Devemos ser como irmãos. O problema é o lobby dessas tendências de pessoas gananciosas, lobby político, mações e tantos outros lobbies. Esse é o principal problema”, disse.

Pela primeira vez, Francisco ainda deixou claro que, para ele, abusos sexuais contra menores por parte de religiosos não são apenas pecados, mas crimes que devem ser julgados.

Mas se a posição sobre os gays e sobre o abuso sexual pode representar uma mudança, Francisco deixou claro que não haverá uma nova opinião do Vaticano sobre a presença das mulheres na Igreja, sobre o aborto ou sobre o casamento homossexual.

O papa aproveitou a conversa para anunciar que vai exigir transparência e honestidade no Vaticano e garantiu que sua reforma vai continuar. “Esses escândalos fazem muito mal”, disse.

Antes de responder às perguntas, ele elogiou o “grande coração dos brasileiros”, disse que a viagem “fez bem para sua espiritualidade” e ainda disse que a organização do evento foi excelente. “Parecia um cronômetro”. Eis os principais trechos da entrevista:


Nestes quatro meses de pontificado, o senhor criou várias comissões. Que tipo de reforma do Vaticano o sr. tem em mente? O sr. quer suprimir o Banco do Vaticano?

Papa Francisco – Os passos que eu fui dando nestes quatro meses e meio vão em duas vertentes. O conteúdo do que quero fazer vem da congregação dos cardeais. Me lembro que os cardeais pediam muitas coisas para o novo papa, antes do conclave. Lembro-me que tinha muita coisa. Por exemplo, a comissão de oito cardeais, a importância de ter uma consulta de alguém de fora, e não uma consulta apenas interna. Isso vai na linha do amadurecimento da sinonalidade e do primado. Os vários episcopados do mundo vão se expressando e muitas propostas foram feitas, como a reforma da secretaria dos sínodos, para que a comissão sinodal tenha característica consultativa, como o consistório cardinalício com temáticas específicas, como a canonização. A vertente dos conteúdos vem dai.

A segunda é a oportunidade. A formação da primeira comissão não me custou mais de um mês. Já A parte econômica, eu pensava em tratar no ano que vem, porque não é a mais importante. Mas a agenda mudou devido a circunstâncias que vocês conhecem que é domínio público. O primeiro é o problema do Ior (Banco do Vaticano), como encaminhá-lo, como reformá-lo, como sanear o que há de ser sanado. E essa foi então a primeira comissão. Depois tivemos a comissão dos 15 cardeais que se ocupam dos assuntos econômicos da Santa Sé. E por isso decidimos fazer uma comissão para toda a economia da Santa Sé, uma única comissão de referência. Se notou que o problema econômico estava fora da agenda. Mas estas coisas acontecem. Quando estamos no governo, vamos por um lado, mas se chutam e fazem um golaço por outro lado, temos que atacar. A vida é assim. Eu não sei como o Ior vai ficar. Alguns acham melhor que seja um banco, outros acham que deveria ser um fundo, uma instituição de ajuda. Eu não sei. Eu confio no trabalho das pessoas que estão trabalhando sobre isso. O presidente do Ior permanece, o tesoureiro também, enquanto o diretor e o vice-diretor pediram demissão. Não sei como vai terminar essa história. E isso é bom. Não somos máquinas. Temos que achar o melhor. Mas o fato é que, seja o que for, tem que ser feita com transparência e honestidade.

Uma fotografia do sr. deu a volta ao mundo, quando o sr. desceu as escadas do helicóptero em Roma para embarcar para o Brasil carregando sua mala preta. Reportagens levantaram hipóteses também sobre o conteúdo da mala. Porque o sr. saiu carregando a maleta preta e não um de seus colaboradores? E o sr. poderia dizer o que tinha dentro?

Papa Francisco - Não tinha a chave da bomba atômica. Eu sempre fiz isso, Quando viajo, levo minhas coisas. E dentro o que tem? Um barbeador, um breviário (livro de liturgia), uma agenda, tinha um livro para ler, sobre Santa Terezinha. Sou devoto de Santa Terezinha. Eu sempre levei eu mesmo minha maleta. É normal. Nós temos que ser normais. É um pouco estranho isso que você me diz que a foto deu a volta ao mundo. Mas temos de nos habituar a sermos normais, à normalidade da vida.

Por que o senhor pede tanto para que rezem pelo senhor? Não é habitual ouvir de um papa que peça que rezem por ele. 

Papa Francisco - Sempre pedi isso. Quanto era padre pedia, mas nem tanto e nem tão frequentemente. Comecei a pedir mais frequentemente quando passei a ser bispo. Porque eu sinto que se o senhor não ajuda nesse trabalho de ajudar aos outros, não se pode realizá-lo. Preciso da ajuda do senhor. Eu de verdade me sinto com tantos limites, tantos problemas, e também pecador. Peço a Nossa Senhora que reze por mim. É um hábito, mas que vem da necessidade. Eu sinto que devo pedir. Não sei…

Na busca de fazer as mudanças no Vaticano, o sr. disse que existem muitos santos que trabalham e outros um pouco menos santos. O sr. enfrenta resistências a essa sua vontade de mudar as coisas no Vaticano? O sr. vive num ambiente muito austero, de Santa Marta. Os seus colaboradores também vivem essa austeridade? Isso é algo apenas do sr. ou da comunidade?

Papa Francisco - As mudanças vem de duas vertentes: do que pediram os cardeais e também o que vem da minha personalidade. Você falou que eu fico na Santa Marta. Eu não poderia viver sozinho do Palácio, que não é luxuoso. O apartamento pontifício é grande, mas não é luxuoso. Mas eu não posso viver sozinho. Preciso de gente, falar com gente, trabalhar com as pessoas. Porque é que quando os meninos da escola jesuíta me perguntaram se eu estava aqui pela austeridade e pobreza, eu respondi: não, não. Psicologicamente, não posso. Cada um deve levar adiante sua vida, seguir seu modo de vida. Os cardeais que trabalham na Cúria não vivem como ricos. Tem apartamentos pequenos. São austeros. Os que eu conheço tem apartamentos pequenos. Cada um tem que viver como o senhor disse que tem que viver. A austeridade é necessária para todos. Trabalhamos à serviço da Igreja. É verdade que há sacerdotes e padres santos, gente que prega, que trabalha tanto, que trabalha e vai aos pobres, se preocupam garantir que os pobres comam. Tem santos na Cúria. Também tem alguns que não são muito santos. E são estes que fazem mais barulho. Faz mais barulho uma árvore que cai do que uma floresta que nasce. Isso me dói. Porque são alguns que causam escândalos. Temos o monsenhor que foi para a cadeia (por lavagem de dinheiro). São escândalos que fazem mal. Uma coisa que nunca disse : a Cúria deveria ter o nível que tinham os velhos padres, pessoas que trabalham. Os velhos membros da Cúria. Precisamos deles. Precisamos do perfil do velho da Cúria. Sobre a resistência, se tem, eu ainda não vi. É verdade que aconteceram muitas coisas. Mas eu preciso dizer: eu encontrei ajuda, encontrei pessoas leais. Por exemplo, eu gosto quando alguém me diz: “eu não estou de acordo”. Esse é um verdadeiro colaborador. Mas quando vejo alguém que diz: “ah, que belo, que belo”, e depois dizem o contrario por trás, isso não ajuda.

O mundo mudou, os jovens mudaram. Temos no Brasil muitos jovens, mas o senhor não falou de aborto, sobre a posição do Vaticano sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo. No Brasil foram aprovadas leis que ampliam os direitos para estes casamentos em relação ao aborto. Por que o senhor não falou sobre isso?

Papa Francisco - A Igreja já se expressou perfeitamente sobre isso. Eu não queria voltar sobre isso. Não era necessário, como também não falei sobre outros assuntos. Eu também não falei sobre o roubo, sobre a mentira. Para isso, a Igreja tem um doutrina clara. Queria falar de coisas positivas, que abrem caminho aos jovens. Além disso, os jovens sabem perfeitamente qual a posição da igreja.

E qual é a do Papa?

Papa Francisco - É a da Igreja, eu sou filho da Igreja.

Qual o sentido mais profundo de se apresentar como o bispo de Roma?

Papa Francisco - Não se deve andar mais adiante do que o que se fala. O papa é bispo de Roma e por isso é papa, que é o sucessor de Pedro. Pensar que isso quer dizer que é o primeiro, não é o caso. Não é esse o sentido. O primeiro sentido do papa é ser o bispo de Roma.

O sr. teve sua primeira experiência de massas no Rio. Como o sr. se sente como papa? É muito trabalho?

Papa Francisco - Ser bispo é lindo. O problema é quando um pessoa busca ter esse trabalho. Assim não é tão belo. Mas quando um senhor chama para ser bispo, isso é belo. Tem sempre o perigo e pecado de pensar com superioridade, como ser um príncipe. Mas o trabalho é belo. Ajudar o irmão a ir adiante. Tem o filtro da estrada. O bispo tem que indicar o caminho. Eu gosto de ser bispo. Em Buenos Aires, eu era tão feliz. Como padre eu era feliz. Como bispo, eu era feliz e isso me faz bem.

E como papa?

Papa Francisco - Se você faz o que o Senhor quer, é feliz. Isso é meu sentimento.

Vimos o sr. cheio de energia e, agora, enquanto o avião se mexe muito, vemos agora com muita tranquilidade de pé. Fala-se muito das próximas viagens. O sr. já tem um calendário?

Papa Francisco - Definido, definido não há nada. Mas posso dizer algumas coisas que estamos pensando. No dia 22 de setembro, Cagliari. Depois, no 4 de outubro, para Assis. Tenho em mente, dentro da Itália, ir ver minha família. Pegar um avião pela manhã e voltar com outro pela noite. Meus familiares, pobres, me ligam. Temos uma boa relação com eles. Fora da Itália o patriarca Bartolomeu I quer fazer um encontro para comemorar os 50 anos do encontro Atenágoras e Paulo VI em Jerusalém. O governo israelense nos fez um convite especial. O governo da Autoridade Palestina acredito que fez o mesmo. Isso está sendo pensado. Na América Latina, acredito que há possibilidades de voltar, porque o papa latino-americano, que acaba de fazer sua primeira viagem à América Latina….Adeus! Devemos esperar um pouco. Acredito que se possa ir à Ásia, mas está tudo no ar. Tive convites para ir ao Sri Lanka e Filipinas. Para a Ásia precisamos ir. Bento XVI não teve tempo.

E para a Argentina?

Papa Francisco - Isso pode esperar um pouco. As outras viagens tem prioridade.

No encontro com os argentinos, o sr. disse que se sentia enjaulado. Por quê?

Papa Francisco - Vocês sabem que eu tenho vontade de passear pelas ruas de Roma? Adoro andar pelas ruas. E por isso me sinto um pouco enjaulado. Mas tenho que dizer que a Gendarmeria vaticana é boa. Agora me deixam fazer algumas coisas mais. Mas seu dever é garantir minha segurança. Enjaulado nesse sentido, de que gostaria de estar nas ruas. Mas entendo que não é possível. Em Buenos Aires, eu era um sacerdote das ruas.

A igreja no Brasil está perdendo fiéis. A Renovação Carismática é uma possibilidade para evitar que eles sigam para as igrejas pentecostais?

Papa Francisco - É verdade, as estatísticas mostram. Falamos sobre isso ontem com os bispos brasileiros. E isso é um problema que incomoda os bispos brasileiros. Eu vou dizer uma coisa: nos anos 1970, início dos 1980, eu não podia nem vê-los. Uma vez, falando sobre eles, disse a seguinte frase: eles confundem uma celebração musical com uma escola de samba. Eu me arrependi. Vi que os movimentos bem assessorados trilharam um bom caminho. Agora, vejo que esse movimento faz muito bem à igreja em geral. Em Buenos Aires, eu fazia uma missa com eles uma vez por ano, na catedral. Vi o bem que eles faziam. Neste momento da igreja, creio que os movimentos são necessários. Esses movimentos são um graça para a igreja. A Renovação Carismática não serve apenas para evitar que alguns sigam os pentecostais. Eles são importantes para a própria igreja, a igreja que se renova.

O senhor disse que está cansado. Há algum tratamento especial neste voo?

Papa Francisco - Sim, estou cansado. Não há nenhum tratamento especial neste voo. Na frente, tem uma bela poltrona. Escrevi para dizer que não queria tratamento especial.

A igreja sem a mulher perde a fecundidade? Quais as medidas concretas? 

Papa Francisco - Uma igreja sem as mulheres é como o colégio apostólico sem Maria. O papal da mulher na igreja não é só maternidade, a mãe da família. É muito mais forte. A mulher ajuda a igreja a crescer. E pensar que a Nossa Senhora é mais importante do que os apóstolos! A igreja é feminina, esposa, mãe. O papel da mulher na igreja não deve ser só o de mãe e com um trabalho limitado. Não, tem outra coisa. O papa Paulo XI escreveu uma coisa belíssima sobre as mulheres. Creio que se deva ir adiante com esse papel. Não se pode entender uma igreja sem uma mulher ativa. Um exemplo histórico: para mim, as mulheres paraguaias são as mais gloriosas da América Latina. Sobraram, depois da guerra (1864-1870), oito mulheres para cada homem. E essas mulheres fizeram uma escolha um pouco difícil. A escolha de ter filhos para salvar a pátria, a cultura, a fé, a língua. Na igreja, se deve pensar nas mulheres sob essa perspectiva. Escolhas de risco, mas como mulher. Acredito que, até agora, não fizemos uma profunda teologia sobre a mulher. Somente um pouco aqui, um pouco lá. Tem a que faz a leitura, a presidente da Cáritas, mas há mais o que fazer. É necessário fazer uma profunda teologia da mulher. Isso é o que eu penso.

O que sr. pensa sobre a ordenação das mulheres?

Papa Francisco - Sobre a ordenação, a Igreja já falou e disse que não. João Paulo II disse com uma formulação definitiva. Essa porta está fechada. Nossa senhora, Maria, é mais importante que os apóstolos. A mulher na igreja é mais importante que os bispos e os padres. Acredito que falte uma especificação teológica.

Queremos saber qual a sua relação de trabalho com Bento XVI, não a amistosa, a de colaboração. Não houve antes uma circunstância assim. Os contatos são frequentes?

Papa Francisco - A última vez que houve dois ou três papa, eles não se falavam. Estavam brigando entre si, para ver quem era o verdadeiro. Eu fiquei muito feliz quando se tornou papa. Também, quando renunciou, foi, pra mim, um exemplo muito grande. É um homem de Deus, de reza. Hoje, ele mora no Vaticano. Alguns me perguntam: como dois papas podem viver no Vaticano? Eu achei uma frase para explicar isso. É como ter um avô em casa. Um avô sábio. Na família, um avô é amado, admirado. Ele é um homem com prudência. Eu o convidei para vir comigo em algumas ocasiões. Ele prefere ficar reservado. Se eu tenho alguma dificuldade, não entendo alguma coisa, posso ir até ele. Sobre o problema grave do Vatileaks [vazamento de documentos secretos], ele me disse tudo com simplicidade. Tem uma coisa que não sei se vocês sabem: em 8 de fevereiro, no discurso, ele falou: “Entre vocês está o próximo papa. Eu prometo obediência”. Isso é grande.

Nesta viagem, o sr. falou de misericórdia. Sobre o acesso aos sacramentos dos divorciados, existe a possibilidade de mudar alguma coisa na disciplina da igreja?

Papa Francisco - Essa é uma pergunta que sempre se faz. A misericórdia é maior do que o exemplo que você deu. Essa mudança de época e também tantos problemas na igreja, como alguns testemunhos de alguns padres, problemas de corrupção, do clericalismo… A igreja é mãe. Ela cura os feridos. Ela não se cansa de perdoar. Os divorciados podem fazer a comunhão. Não podem quando estão na segunda união. Esse problema deve ser estudado pela pastoral matrimonial. Há 15 dias, esteve comigo o secretário do sínodo dos bispos, para discutir o tema do próximo sínodo. E posso dizer que estamos a caminho de uma pastoral matrimonial mais profunda. O cardeal Guarantino disse ao meu antecessor que a metade dos matrimônios é nula. Porque as pessoas se casam sem maturidade ou porque socialmente devem se casar. Isso também entra na Pastoral do Matrimônio. A questão da anulação do casamento deve ser revisada. Também é preciso analisar os problemas judiciais de anular um matrimônio. Porque os…eclesiástico não bastam para isso. É complexo o problema da anulação do matrimônio.

Como Papa, o senhor ainda pensa como um jesuíta? 

Papa Francisco - É uma pergunta teológica. Os jesuítas fazem votos de obedecer ao Papa. Mas se o Papa se torna um jesuíta, talvez devem fazer votos gerais dos jesuítas. Eu me sinto jesuíta na minha espiritualidade, a que tenho no coração. Não mudei de espiritualidade. Sou Francisco franciscano. Me sinto jesuíta e penso como jesuíta.

Em quatro meses de Pontificado, pode nos fazer um pequeno balanço e dizer o que foi o pior e o melhor de ser Papa? O que mais o surpreendeu neste período? 

Papa Francisco - Não sei como responder isso, de verdade. Coisas ruins, ruins, não aconteceram. Coisas belas, sim. Por exemplo, o encontro com os bispos italianos, que foi tão bonito. Como bispo da capital da Itália, me senti em casa com eles. Uma coisa dolorosa foi a visita a Lampedusa, me fez chorar. Mas me fez bem. Quando chegam estes barcos (com imigrantes), e que os deixam a algumas milhas de distância da costa e eles têm que chegar (à costa) sozinhos, isso me dói porque penso que estas pessoas são vítimas do sistema sócio-econômico mundial. Mas a coisa pior é um dor ciática, é verdade, tive isso no primeiro mês. É verdade! Para uma entrevista, tive que me acomodar numa poltrona e isso me fez mal, doía muito, não desejo isso a ninguém. O encontro com os seminaristas religiosos foi belíssimo. Também o encontro com os alunos do colégio jesuíta foi belíssimo. As pessoas…conheci tantas pessoas boas no Vaticano. Isso é verdade, eu faço justiça. Tantas pessoas boas, mas boas, boas, boas.

O senhor se assustou quando viu o informe sobre o Vatileaks? 

Papa Francisco - Não. Vou contar uma anedota sobre o informe do Vatileaks. Quando fui ver o Papa Bento, ele disse: aqui está uma caixa com tudo o que disseram as testemunhas. Havia ainda um envelope com o resumo. E ele sabia tudo de memória. Mas não, não me assustei. São problemas grandes, mas não me assustei.

O sr. tem a esperança de que esta viagem ao Brasil contribua para trazer de volta os fiéis? 

Papa Francisco - Uma viagem Papa sempre faz bem. E creio que a viagem ao Brasil fará bem, não apenas a presença do Papa. Esta Jornada da Juventude, eles (os brasileiros) se mobilizaram e vão ajudar muito a Igreja. Tantos fiéis que foram se sentem felizes (por terem ido). Acho que vai ser positivo não só pela viagem, mas pela Jornada, que foi um evento maravilhoso.

Os argentinos se perguntam: o sr. não sente falta de estar em Buenos Aires, pegar um ônibus? 

Papa Francisco - Buenos Aires, sim, sinto falta. Mas é uma saudade serena.

Hoje os ortodoxos festejam mil anos do cristianismo. Seu comentário. 

Papa Francisco - As igrejas ortodoxas conservaram a liturgia tão bem, no sentido da adoração. Eles louvam Deus, adoram Deus, cantam Deus. O tempo não conta. O centro é Deus e isso é uma riqueza. Luz é oriente. E o ocidente, luxo. O consumismo nos faz tão mal. Quando se lê Dostoievski, que acho que todos nós devemos ler, precisamos deste ar fresco do oriente, desta luz do oriente.

O que o senhor pretende fazer em relação ao monsenhor Ricca (acusado de ter amantes) e como o sr. pretende enfrentar toda esta questão do lobby gay? 

Papa Francisco - Sobre monsenhor Ricca, fiz o que o direito canônico manda fazer, que é a investigação prévia. E nesta investigação, não tem nada do que o acusam. Não achamos nada. É a minha resposta. Mas eu gostaria de dizer outra coisa sobre isso. Vejo que muitas vezes na Igreja se busca os pecados de juventude, por exemplo. Abuso de menores é diferente. Mas, se uma pessoa, seja laica ou padre ou freira, pecou e esconde, o Senhor perdoa. Quando o senhor perdoa, o senhor esquece. E isso é importante para a nossa vida. Quando vamos confessar e nós dizemos que pecamos, o senhor esquece e nós não temos o direito de não esquecer. Isso é um perigo. O que é importante é uma teologia do pecado. Tantas vezes penso em São Pedro, que cometeu tantos pecados e venerava Cristo. E este pecador foi transformado em Papa. Neste caso, nós tivemos uma rápida investigação e não encontramos nada.


Vocês vêm muita coisa escrita sobre o gay lobby. Eu ainda não vi ninguém no Vaticano com uma carteira de identidade do Vaticano dizendo que é gay. Dizem que há alguns. Acho que quando alguém se vê com uma pessoa assim deve distinguir entre o fato de que uma pessoa é gay e fazer um lobby gay, porque todos os lobbys não são bons. Isso é o que é ruim. Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, pra julgá-la? O catecismo da Igreja católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados por causa disso, mas devem ser integrados na sociedade. O problema não é ter essa tendência. Não! Devemos ser como irmãos. O problema é fazer lobby, o lobby dos avaros, o lobby dos políticos, tantos lobbys. Esse é o pior problema.

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Fonte: CNBB

Papa Francisco dá entrevista exclusiva ao programa 'Fantástico', da Rede Globo de Televisão




O Fantástico deste domingo (28) exibiu entrevista exclusiva com o Papa Francisco, a primeira a um jornalista desde sua eleição. Na sua visita ao Brasil, o sumo pontífice encontrou tempo na agenda para receber o repórter Gerson Camarotti, da GloboNews, para uma conversa franca.

Na entrevista, o papa abordou assuntos difíceis, como os escândalos no Vaticano e os desafios da Igreja Católica para atrair fiéis. Comentou também a acolhida que teve no Brasil, durante a Jornada Mundial da Juventude, e deu lições de humildade, solidariedade e humanidade.

Francisco também explicou a atitude que toma em relação a sua segurança.

“Eu não sinto medo. Sei que ninguém morre de véspera. Quando acontecer, o que Deus permitir, será. Eu não poderia vir ver este povo, que tem um coração tão grande, detrás de  uma caixa de vidro. As duas seguranças (do Vaticano e do Brasil) trabalharam muito bem. Mas ambas sabem que sou um indisciplinado nesse aspecto.”

Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida pelo Papa a Gerson Camarotti.


Rivalidade entre Brasil e Argentina

“O povo brasileiro tem um grande coração. Quanto à rivalidade, creio que já está totalmente superada. Porque negociamos bem: o Papa é argentino e Deus é brasileiro.”

Pobreza x ostentação

“Penso que temos que dar testemunho de uma certa simplicidade - eu diria, inclusive, de pobreza. O povo sente seu coração magoado quando nós,  as pessoas consagradas, são apegadas a dinheiro.”

Perda de fiéis

“Não saberia explicar esse fenômeno. Vou levantar uma hipótese. Pra mim é fundamental a proximidade da Igreja. Porque a Igreja é mãe, e nem você nem eu conhecemos uma mãe por correspondência. A mãe... dá carinho, toca, beija, ama. Quando a Igreja, ocupada com mil coisas, se descuida dessa proximidade, se descuida disso e só se comunica com documentos, é como uma mãe que se comunica com seu filho por carta. Não sei se foi isso o que aconteceu no Brasil. Não sei, mas sei que em alguns lugares da Argentina que conheço isso aconteceu.”

Escândalos no Vaticano

“Agora mesmo, temos um escândalo de transferência de 10 ou 20 milhões de dólares de monsenhor. Belo favor faz esse senhor à Igreja, não é? Mas é preciso reconhecer que ele agiu mal, e a Igreja tem que dar a ele a punição que merece, pois agiu mal. No momento do conclave, antes temos o que chamamos congregações gerais - uma semana de reuniões dos cardeais. Naquela ocasião, falamos claramente dos problemas. Falamos de tudo. Porque estávamos sozinhos, e para saber qual era a realidade e traçar o perfil do novo Papa. E dali saíram problemas sérios, derivados em parte de tudo o que vocês conhecem: do Vatileaks e assim por diante. Havia problemas de escândalos. Mas também havia os santos. Esses homens que deram sua vida para trabalhar pela Igreja de maneira silenciosa no Conselho Apostólico.”

Os jovens

“Com toda a franqueza lhe digo: não sei bem por que os jovens estão protestando. Esse é o primeiro ponto. Segundo ponto: um jovem que não protesta não me agrada. Porque o jovem tem a ilusão da utopia, e a utopia não é sempre ruim. A utopia é respirar e olhar adiante. O jovem é mais espontâneo, não tem tanta experiência de vida, é verdade. Mas às vezes a experiência nos freia. E ele tem mais energia para defender suas ideias. O jovem é essencialmente um inconformista. E isso é muito lindo! É preciso ouvir os jovens, dar-lhes lugares para se expressar, e cuidar para que não sejam manipulados.”

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Fonte: Rede Globo
Vídeo disponível em: Católicos na veia

Papa Francisco ou Bento XVI?


Nestes dias ouvimos muito falar do Papa Francisco, que abençoou nossa Terra de Santa Cruz com sua presença paternal. Mas este meu pequeno texto não é sobre ele.

Nestes dias também ouvimos muito falar do Papa Emérito Bento XVI. Gostaria de dizer que ouvimos falar bem, mas nem sempre foi assim. Durante toda a JMJ, várias pessoas - para nossa vergonha, católicos inclusive - tentaram por diversas vezes opor o Papa Bento XVI ao Papa Francisco. Adotaram com isso o discurso da mídia anticatólica e laicista, que odiava Bento XVI por sua firme defesa dos valores cristãos. Se aliaram aos lobos, contra os quais Bento XVI pediu orações no dia que foi eleito.

Há quem diga que o Papa Francisco mostra mais simplicidade, enquanto Bento XVI só mostrava luxo e pompa. É bom ressaltar que Bento XVI tinha com uma de suas maiores preocupações a beleza da liturgia. Os paramentos que usava, os objetos litúrgicos e tudo o mais eram expressão de uma preocupação não consigo, mas com Deus. Era o princípio da liturgia aplicado: para Deus sempre o melhor e o mais bonito. Isso não quer dizer uma preocupação com pompa e luxo, mas preocupação com fazer o melhor para Deus - portanto, humildade diante do Criador. Papa Francisco, se tem um estilo litúrgico diferente, não deixa, nem por isso, de prezar pela beleza da liturgia, como fazia seu antecessor. Por outro lado, todos os que convivem com Bento XVI dão mostra de sua incrível simplicidade, amabilidade e ternura - inclusive o próprio Papa Francisco!

Ouvimos também dizer que Papa Francisco é simpático e carismático, enquanto Bento XVI era orgulhoso e pedante. Parece que não existem pessoas tímidas no mundo! Fala-se como se os tímidos fossem necessariamente orgulhosos. Bento XVI nunca escondeu que era tímido e, mesmo assim, se esforçou sempre por estar com o povo, cumprindo todas as obrigações do ministério petrino, estando próximo a eles. Um tímido fazer isso é um esforço tremendo! E ele fez.


Disseram ainda que Papa Francisco atraía gente e Bento XVI não. Esquecem dos 4 milhões de jovens que, na chuva em Madri, ficaram com Bento XVI na JMJ de 2011? Bento XVI foi um Papa que soube falar aos ateus, aos agnósticos, converteu 400 mil anglicanos, foi responsável pelo diálogo com a União Européia, com a ONU, com a Casa Branca... Era um Papa que sabia falar com filosofia a políticos e homens de ciência, um Papa professor. Agora temos um Papa que tem outro estilo, pregador. Qual o problema? Qual a oposição? São os dois complementares.

Por fim, ouvi também dizerem que o Papa Francisco mostra uma entrega mais total ao Cristo, enquanto Bento XVI não mostrava isso. Creio que se o Papa Francisco ouvisse isso, ele próprio perderia a compostura com quem o dissesse... Bento XVI queria terminar sua vida - ele disse - como um professor escrevendo livros (esse é o soberbo de que falam?) e aos 78 anos foi chamado para o Papado e aceitou, por amor da Igreja, até se esgotarem todas as suas forças e renunciar dizendo que "já tinha chegado ao seu limite". Dizer desse homem que sua entrega não foi total é não só uma maledicência, como uma injustiça tremenda. 


Católicos, hoje o Papa Francisco pediu que não fôssemos "cristãos de fachada". Parem de adotar esse discurso da mídia anticatólica, de ficar opondo um Papa a outro - quando o próprio Papa Francisco sempre fala do seu amor a Bento XVI - porque isso é não só indigno de um verdadeiro cristão, como é uma tentação do próprio Demônio.

Queria dizer outras coisas, mas esta postagem ia ser pequena e já vai longe. Talvez depois escreva mais. Fico por aqui agora.


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Texto extraído do perfil do facebook de Taiguara Fernandes de Sousa.
Título nosso. Imagem: web

Discurso do Papa à Comissão de Coordenação do CELAM


Viagem Apostólica ao Brasil
Discurso do Papa Francisco
Encontro com os dirigentes do CELAM
Domingo, 28 de julho de 2013


1.    Introdução

Agradeço ao Senhor por esta oportunidade de poder falar com vocês, Irmãos Bispos responsáveis do CELAM no quadriênio 2011-2015. Há 57 anos que o CELAM serve as 22 Conferências Episcopais da América Latina e do Caribe, colaborando solidária e subsidiariamente para promover, incentivar e dinamizar a colegialidade episcopal e a comunhão entre as Igrejas da Região e seus Pastores.

Como vocês, também eu sou testemunha do forte impulso do Espírito na V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, em Aparecida no mês de maio de 2007, que continua animando os trabalhos do CELAM para a anelada renovação das Igrejas particulares. Em boa parte delas, essa renovação já está em andamento. Gostaria de centrar esta conversação no patrimônio herdado daquele encontro fraterno e que todos batizamos como Missão Continental.

2.    Características peculiares de Aparecida

Existem quatro características típicas da referida V Conferência. Constituem como que quatro colunas do desenvolvimento de Aparecida que lhe dão a sua originalidade.

1)    Início sem documento

Medelín, Puebla e Santo Domingo começaram os seus trabalhos com um caminho preparatório que culminou em uma espécie de Instrumentum laboris, com base no qual se desenrolou a discussão, a reflexão e a aprovação do documento final. Em vez disso, Aparecida promoveu a participação das Igrejas particulares como caminho de preparação que culminou em um documento de síntese. Este documento, embora tenha sido ponto de referência durante a V Conferência Geral, não foi assumido como documento de partida. O trabalho inicial foi pôr em comum as preocupações dos Pastores perante a mudança de época e a necessidade de recuperar a vida de discípulo e missionário com que Cristo fundou a Igreja.


2)    Ambiente de oração com o Povo de Deus

É importante lembrar o ambiente de oração gerado pela partilha diária da Eucaristia e de outros momentos litúrgicos, tendo sido sempre acompanhados pelo Povo de Deus. Além disso, realizando-se os trabalhos na cripta do Santuário, a “música de fundo” que os acompanhava era constituída pelos cânticos e as orações dos fiéis.

3)    Documento que se prolonga em compromisso, com a Missão Continental

Neste contexto de oração e vivência de fé, surgiu o desejo de um novo Pentecostes para a Igreja e o compromisso da Missão Continental. Aparecida não termina com um documento, mas prolonga-se na Missão Continental.

4)    A presença de Nossa Senhora, Mãe da América

É a primeira Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe que se realiza em um Santuário mariano.

3.    Dimensões da Missão Continental

A Missão Continental está projetada em duas dimensões: programática e paradigmática. A missão programática, como o próprio nome indica, consiste na realização de atos de índole missionária. A missão paradigmática, por sua vez, implica colocar em chave missionária a atividade habitual das Igrejas particulares. Em consequência disso, evidentemente, verifica-se toda uma dinâmica de reforma das estruturas eclesiais. A “mudança de estruturas” (de caducas a novas) não é fruto de um estudo de organização do organograma funcional eclesiástico, de que resultaria uma reorganização estática, mas é consequência da dinâmica da missão. O que derruba as estruturas caducas, o que leva a mudar os corações dos cristãos é justamente a missionariedade. Daqui a importância da missão paradigmática.

A Missão Continental, tanto programática como paradigmática, exige gerar a consciência de uma Igreja que se organiza para servir a todos os batizados e homens de boa vontade. O discípulo de Cristo não é uma pessoa isolada em uma espiritualidade intimista, mas uma pessoa em comunidade para se dar aos outros. Portanto, a Missão Continental implica pertença eclesial.

Uma posição como esta, que começa pelo discipulado missionário e implica entender a identidade do cristão como pertença eclesial, pede que explicitemos quais são os desafios vigentes da missionariedade discipular. Me limito a assinalar dois: a renovação interna da Igreja e o diálogo com o mundo atual.

Renovação interna da Igreja

Aparecida propôs como necessária a Conversão Pastoral. Esta conversão implica acreditar na Boa Nova, acreditar em Jesus Cristo portador do Reino de Deus, em sua irrupção no mundo, em sua presença vitoriosa sobre o mal; acreditar na assistência e guia do Espírito Santo; acreditar na Igreja, Corpo de Cristo e prolongamento do dinamismo da Encarnação.
Neste sentido, é necessário que nos interroguemos, como Pastores, sobre o andamento das Igrejas a que presidimos. Estas perguntas servem de guia para examinar o estado das dioceses quanto à adoção do espírito de Aparecida, e são perguntas que é conveniente pôr-nos, muitas vezes, como exame de consciência.

1.    Procuramos que o nosso trabalho e o de nossos presbíteros seja mais pastoral que administrativo? Quem é o principal beneficiário do trabalho eclesial, a Igreja como organização ou o Povo de Deus na sua totalidade?

2.    Superamos a tentação de tratar de forma reativa os problemas complexos que surgem? Criamos um hábito proativo? Promovemos espaços e ocasiões para manifestar a misericórdia de Deus? Estamos conscientes da responsabilidade de repensar as atitudes pastorais e o funcionamento das estruturas eclesiais, buscando o bem dos fiéis e da sociedade?

3.    Na prática, fazemos os fiéis leigos participantes da Missão? Oferecemos a Palavra de Deus e os Sacramentos com consciência e convicção claras de que o Espírito se manifesta neles?

4.    Temos como critério habitual o discernimento pastoral, servindo-nos dos Conselhos Diocesanos? Tanto estes como os Conselhos paroquiais de Pastoral e de Assuntos Econômicos são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planejamento pastoral? O bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Acho que estamos muito atrasados nisso.

5.    Nós, Pastores Bispos e Presbíteros, temos consciência e convicção da missão dos fiéis e lhes damos a liberdade para irem discernindo, de acordo com o seu processo de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia? Apoiamo-los e acompanhamos, superando qualquer tentação de manipulação ou indevida submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos interpelar pela busca do bem da Igreja e da sua Missão no mundo?

6.    Os agentes de pastoral e os fiéis em geral sentem-se parte da Igreja, identificam-se com ela e aproximam-na dos batizados indiferentes e afastados?

Como se pode ver, aqui estão em jogo atitudes. A Conversão Pastoral diz respeito, principalmente, às atitudes e a uma reforma de vida. Uma mudança de atitudes é necessariamente dinâmica: “entra em processo” e só é possível moderá-lo acompanhando-o e discernindo-o. É importante ter sempre presente que a bússola, para não se perder nesse caminho, é a identidade católica concebida como pertença eclesial.

Diálogo com o mundo atual

Faz-nos bem lembrar estas palavras do Concílio Vaticano II: As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e atribulados, são também alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo (cf. GS, 1). Aqui reside o fundamento do diálogo com o mundo atual.

A resposta às questões existenciais do homem de hoje, especialmente das novas gerações, atendendo à sua linguagem, entranha uma mudança fecunda que devemos realizar com a ajuda do Evangelho, do Magistério e da Doutrina Social da Igreja. Os cenários e areópagos são os mais variados. Por exemplo, em uma mesma cidade, existem vários imaginários coletivos que configuram “diferentes cidades”. Se continuarmos apenas com os parâmetros da “cultura de sempre”, fundamentalmente uma cultura de base rural, o resultado acabará anulando a força do Espírito Santo. Deus está em toda a parte: há que saber descobri-lo para poder anunciá-lo no idioma dessa cultura; e cada realidade, cada idioma tem um ritmo diferente.

4.    Algumas tentações contra o discipulado missionário

A opção pela missionariedade do discípulo sofrerá tentações. É importante saber por onde entra o espírito mau, para nos ajudar no discernimento. Não se trata de sair à caça de demônios, mas simplesmente de lucidez e prudência evangélicas. Limito-me a mencionar algumas atitudes que configuram uma Igreja “tentada”. Trata-se de conhecer determinadas propostas atuais que podem mimetizar-se em a dinâmica do discipulado missionário e deter, até fazê-lo fracassar, o processo de Conversão Pastoral.

1.    A ideologização da mensagem evangélica. É uma tentação que se verificou na Igreja desde o início: procurar uma hermenêutica de interpretação evangélica fora da própria mensagem do Evangelho e fora da Igreja. Um exemplo: a dado momento, Aparecida sofreu essa tentação sob a forma de assepsia. Foi usado, e está bem, o método de “ver, julgar, agir” (cf. n.º 19). A tentação se encontraria em optar por um “ver” totalmente asséptico, um “ver” neutro, o que não é viável. O ver está sempre condicionado pelo olhar. Não há uma hermenêutica asséptica. Então a pergunta era: Com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o olhar de discípulo. Assim se entendem os números 20 a 32. Existem outras maneiras de ideologização da mensagem e, atualmente, aparecem na América Latina e no Caribe propostas desta índole. Menciono apenas algumas:

a)    O reducionismo socializante. É a ideologização mais fácil de descobrir. Em alguns momentos, foi muito forte. Trata-se de uma pretensão interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais. Engloba os campos mais variados, desde o liberalismo de mercado até à categorização marxista.

b)    A ideologização psicológica. Trata-se de uma hermenêutica elitista que, em última análise, reduz o “encontro com Jesus Cristo” e seu sucessivo desenvolvimento a uma dinâmica de autoconhecimento. Costuma verificar-se principalmente em cursos de espiritualidade, retiros espirituais, etc. Acaba por resultar numa posição imanente auto-referencial. Não tem sabor de transcendência, nem portanto de missionariedade.

c)    A proposta gnóstica. Muito ligada à tentação anterior. Costuma ocorrer em grupos de elites com uma proposta de espiritualidade superior, bastante desencarnada, que acaba por desembocar em posições pastorais de “quaestiones disputatae”. Foi o primeiro desvio da comunidade primitiva e reaparece, ao longo da história da Igreja, em edições corrigidas e renovadas. Vulgarmente são denominados “católicos iluminados” (por serem atualmente herdeiros do Iluminismo).

d)    A proposta pelagiana. Aparece fundamentalmente sob a forma de restauracionismo. Perante os males da Igreja, busca-se uma solução apenas na disciplina, na restauração de condutas e formas superadas que, mesmo culturalmente, não possuem capacidade significativa. Na América Latina, costuma verificar-se em pequenos grupos, em algumas novas Congregações Religiosas, em tendências para a “segurança” doutrinal ou disciplinar. Fundamentalmente é estática, embora possa prometer uma dinâmica para dentro: regride. Procura “recuperar” o passado perdido.

2.    O funcionalismo. A sua ação na Igreja é paralisante. Mais do que com a rota, se entusiasma com o “roteiro”. A concepção funcionalista não tolera o mistério, aposta na eficácia. Reduz a realidade da Igreja à estrutura de uma ONG. O que vale é o resultado palpável e as estatísticas. A partir disso, chega-se a todas as modalidades empresariais de Igreja. Constitui uma espécie de “teologia da prosperidade” no organograma da pastoral.

3.    O clericalismo é também uma tentação muito atual na América Latina. Curiosamente, na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade viciosa: o sacerdote clericaliza e o leigo lhe pede por favor que o clericalize, porque, no fundo, lhe resulta mais cômodo. O fenômeno do clericalismo explica, em grande parte, a falta de maturidade adulta e de liberdade cristã em boa parte do laicato da América Latina: ou não cresce (a maioria), ou se abriga sob coberturas de ideologizações como as indicadas, ou ainda em pertenças parciais e limitadas. Em nossas terras, existe uma forma de liberdade laical através de experiências de povo: o católico como povo. Aqui vê-se uma maior autonomia, geralmente sadia, que se expressa fundamentalmente na piedade popular. O capítulo de Aparecida sobre a piedade popular descreve, em profundidade, essa dimensão. A proposta dos grupos bíblicos, das comunidades eclesiais de base e dos Conselhos pastorais está na linha de superação do clericalismo e de um crescimento da responsabilidade laical.

Poderíamos continuar descrevendo outras tentações contra o discipulado missionário, mas acho que estas são as mais importantes e com maior força neste momento da América Latina e do Caribe.

4.    Algumas orientações eclesiológicas

1.    O discipulado-missionário que Aparecida propôs às Igrejas da América Latina e do Caribe é o caminho que Deus quer para “hoje”. Toda a projeção utópica (para o futuro) ou restauracionista (para o passado) não é do espírito bom. Deus é real e se manifesta no “hoje”. A sua presença, no passado, se nos oferece como “memória” da saga de salvação realizada quer em seu povo quer em cada um de nós; no futuro, se nos oferece como “promessa” e esperança. No passado, Deus esteve lá e deixou sua marca: a memória nos ajuda encontrá-lo; no futuro, é apenas promessa… e não está nos mil e um “futuríveis”. O “hoje” é o que mais se parece com a eternidade; mais ainda: o “hoje” é uma centelha de eternidade. No “hoje”, se joga a vida eterna.

O discipulado missionário é vocação: chamada e convite. Acontece em um “hoje”, mas “em tensão”. Não existe o discipulado missionário estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a si mesmo; a sua imanência está em tensão para a transcendência do discipulado e para a transcendência da missão. Não admite a auto-referencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o anúncio dele. Sujeito que se transcende. Sujeito projetado para o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os homens que esperam o anúncio.

Por isso, gosto de dizer que a posição do discípulo missionário não é uma posição de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias… incluindo as da eternidade no encontro com Jesus Cristo. No anúncio evangélico, falar de “periferias existenciais” descentraliza e, habitualmente, temos medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um descentrado: o centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais.

2.    A Igreja é instituição, mas, quando se erige em “centro”, se funcionaliza e, pouco a pouco, se transforma em uma ONG. Então, a Igreja pretende ter luz própria e deixa de ser aquele “mysterium lunae” de que nos falavam os Santos Padres. Torna-se cada vez mais auto-referencial, e se enfraquece a sua necessidade de ser missionária. De “Instituição” se transforma em “Obra”. Deixa de ser Esposa, para acabar sendo Administradora; de Servidora se transforma em “Controladora”. Aparecida quer uma Igreja Esposa, Mãe, Servidora, facilitadora da fé e não controladora da fé.

3.    Em Aparecida, verificam-se de forma relevante duas categorias pastorais, que surgem da própria originalidade do Evangelho e nos podem também servir de orientação para avaliar o modo como vivemos eclesialmente o discipulado missionário: a proximidade e o encontro. Nenhuma das duas é nova, antes configuram a maneira como Deus se revelou na história. É o “Deus próximo” do seu povo, proximidade que chega ao máximo quando Ele encarna. É o Deus que sai ao encontro do seu povo. Na América Latina e no Caribe, existem pastorais “distantes”, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais… obviamente sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se a “revolução da ternura”, que provocou a encarnação do Verbo. Há pastorais posicionadas com tal dose de distância que são incapazes de conseguir o encontro: encontro com Jesus Cristo, encontro com os irmãos. Este tipo de pastoral pode, no máximo, prometer uma dimensão de proselitismo, mas nunca chegam a conseguir inserção nem pertença eclesial. A proximidade cria comunhão e pertença, dá lugar ao encontro. A proximidade toma forma de diálogo e cria uma cultura do encontro. Uma pedra de toque para aferir a proximidade e a capacidade de encontro de uma pastoral é a homilia. Como são as nossas homilias? Estão próximas do exemplo de Nosso Senhor, que “falava como quem tem autoridade”, ou são meramente prescritivas, distantes, abstratas?

4.    Quem guia a pastoral, a Missão Continental (seja programática seja paradigmática), é o Bispo. Ele deve guiar, que não é o mesmo que comandar. Além de assinalar as grandes figuras do episcopado latino-americano que todos nós conhecemos, gostaria de acrescentar aqui algumas linhas sobre o perfil do Bispo, que já disse aos Núncios na reunião que tivemos em Roma. Os Bispos devem ser Pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com grande mansidão: pacientes e misericordiosos. Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham “psicologia de príncipes”. Homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja sem viver na expectativa de outra. Homens capazes de vigiar sobre o rebanho que lhes foi confiado e cuidando de tudo aquilo que o mantém unido: vigiar sobre o seu povo, atento a eventuais perigos que o ameacem, mas sobretudo para cuidar da esperança: que haja sol e luz nos corações. Homens capazes de sustentar com amor e paciência os passos de Deus em seu povo. E o lugar onde o Bispo pode estar com o seu povo é triplo: ou à frente para indicar o caminho, ou no meio para mantê-lo unido e neutralizar as debandadas, ou então atrás para evitar que alguém se desgarre mas também, e fundamentalmente, porque o próprio rebanho tem o seu olfato para encontrar novos caminhos.

Não quero juntar mais detalhes sobre a pessoa do Bispo, mas simplesmente acrescentar, incluindo-me a mim mesmo nesta afirmação, que estamos um pouco atrasados no que a Conversão Pastoral indica. Convém que nos ajudemos um pouco mais a dar os passos que o Senhor quer que cumpramos neste “hoje” da América Latina e do Caribe. E seria bom começar por aqui.


Agradeço-lhes a paciência de me ouvirem. Desculpem a desordem do discurso e lhes peço, por favor, para tomarmos a sério a nossa vocação de servidores do povo santo e fiel de Deus, porque é nisso que se exerce e mostra a autoridade: na capacidade de serviço. Muito obrigado!

Discurso de despedida do Papa no Brasil


VISITA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO BRASIL
POR OCASIÃO DA XXVIII JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
CERIMÔNIA DE DESPEDIDA
DISCURSO DO SANTO PADRE
Aeroporto Internacional do Galeão/Antônio Carlos Jobim, Rio de Janeiro
Domingo, 28 de Julho de 2013


Senhor Vice-Presidente da República,
Distintas Autoridade Nacionais, Estaduais e Locais,
Senhor Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro,
Senhores Cardeais e Irmãos no Episcopado,
Queridos Amigos!


Dentro de alguns instantes, deixarei sua Pátria para regressar a Roma. Parto com a alma cheia de recordações felizes; essas – estou certo – tornar-se-ão oração. Neste momento, já começo a sentir saudades. Saudades do Brasil, este povo tão grande e de grande coração; este povo tão amoroso. Saudades do sorriso aberto e sincero que vi em tantas pessoas, saudades do entusiasmo dos voluntários. Saudades da esperança no olhar dos jovens no Hospital São Francisco. Saudades da fé e da alegria em meio à adversidade dos moradores de Varginha. Tenho a certeza de que Cristo vive e está realmente presente no agir de tantos e tantas jovens e demais pessoas que encontrei nesta inesquecível semana. Obrigado pelo acolhimento e o calor da amizade que me foram demonstrados. Também disso começo a sentir saudades.

De modo particular agradeço à Senhora Presidenta, aqui representada por seu Vice-Presidente, por ter-se feito intérprete dos sentimentos de todo o povo do Brasil para com o Sucessor de Pedro. Cordialmente agradeço a meus Irmãos Bispos e seus inúmeros colaboradores por terem tornado estes dias uma celebração estupenda da nossa fé fecunda e jubilosa em Jesus Cristo. Agradeço, em especial, a Dom Orani Tempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro, seus Bispos Auxiliares, e Dom Raymundo Damasceno, Presidente da Conferência Episcopal. Agradeço a todos os que tomaram parte nas celebrações da Eucaristia e nos restantes eventos, àqueles que os organizaram, a quantos trabalharam para difundi-los através da mídia. Agradeço, enfim, a todas as pessoas que, de um modo ou outro, souberam acudir às necessidades de acolhida e gestão de uma multidão imensa de jovens, sem esquecer de tantas pessoas que, no silêncio e na simplicidade, rezaram para que esta Jornada Mundial da Juventude fosse uma verdadeira experiência de crescimento na fé. Que Deus recompense a todos, como só Ele sabe fazer!


Neste clima de gratidão e saudades, penso nos jovens, protagonistas desse grande encontro: Deus lhes abençoe por tão belo testemunho de participação viva, profunda e alegre nestes dias! Muitos de vocês vieram como discípulos nesta peregrinação; não tenho dúvida de que todos agora partem como missionários. A partir do testemunho de alegria e de serviço de vocês, façam florescer a civilização do amor. Mostrem com a vida que vale a pena gastar-se por grandes ideais, valorizar a dignidade de cada ser humano, e apostar em Cristo e no seu Evangelho. Foi Ele que viemos buscar nestes dias, porque Ele nos buscou primeiro, Ele nos faz arder o coração para anunciar a Boa Nova nas grandes metrópoles e nos pequenos povoados, no campo e em todos os locais deste nosso vasto mundo. Continuarei a nutrir uma esperança imensa nos jovens do Brasil e do mundo inteiro: através deles, Cristo está preparando uma nova primavera em todo o mundo. Eu vi os primeiros resultados desta sementeira; outros rejubilarão com a rica colheita!

O meu pensamento final, minha última expressão das saudades, dirige-se a Nossa Senhora Aparecida. Naquele amado Santuário, ajoelhei-me em prece pela humanidade inteira e, de modo especial, por todos os brasileiros. Pedi a Maria que robusteça em vocês a fé cristã, que é parte da nobre alma do Brasil, como também de muitos outros países, tesouro de sua cultura, alento e força para construírem uma nova humanidade na concórdia e na solidariedade.


O Papa vai embora e lhes diz “até breve”, um “até breve” com saudades, e lhes pede, por favor, que não se esqueçam de rezar por ele. Este Papa precisa da oração de todos vocês. Um abraço para todos. Que Deus lhes abençoe!


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Fonte: Santa Sé